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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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CARTAS DE CAMILO MARIA DE SAROLEA

 

Minha Princesa de mim:

 

   Conta frei Luís de Sousa como o papa mandou chamar o arcebispo e das honras que lhe fez, e de algumas particularidades que teve com ele, e da facilidade e amor com que o tratava [o itálico reproduz o título do capítulo XXII do Livro II da Vida de Dom Frei Bartolomeu dos Mártires]. Deste respigo o trecho seguinte:

 

   Levou-o um dia consigo passeando até o jardim famoso dos papas, que chamam Belveder; e, mostrando-lhe as obras que se iam fazendo, disse-lhe, sorrindo-se, como quem lhe sabia já o humor, porque não fazia lá na sua Braga uns paços como aqueles? -  Santíssimo Padre -  respondeu o arcebispo - não é de minha condição ocupar-me de edifícios que o tempo gasta.  Não ignorava o papa que havia de ser esta a resposta, e, contudo, tornou a instar e disse: - Pois que vos parece destas minhas obras?  Então, com maior energia, respondeu:

 

   - O que me parece, Santíssimo Padre, é que não devia curar Vossa Santidade de fábricas que, cedo ou tarde, hão de acabar e cair. E o que digo delas é que, de tudo isto, pouco e muito pouco e nada, e do edifício temporal das igrejas seja mais do que se faz; mas no espiritual, aí sim, que é razão ponha Vossa Santidade toda a força e meta o cabedal de seus poderes.

 

   Lembro-me bem de te ter já contado esta história, em carta remota. Repito-a agora, não só como testemunho da minha contínua fidelidade à leitura e memória dos nossos escritores antigos, mas por me dar o ensejo de pegar, de outro modo, no fio da nossa divagante conversa acerca de história, língua e "identidade" nacional. Esta, enquanto ser, é a comunhão de todos num ideal de solidariedade, ou seja, de união possível, com justiça e paz. Todos temos na vida altos e baixos, melhores e piores momentos, bem feito e mal feito, e omissões, mais ou menos conscientes, quer de um,quer de outro. Lamentar ou vangloriarmo-nos do nosso passado nacional, de pouco, muito pouco ou nada serve: o que nos transforma é um novo olhar sobre a vida e os outros, um olhar mais lúcido e a querer bem. Agora já, neste nosso momento de vida. Não te esqueças, Princesa, de que actualis, em latim, quer dizer ativo. Sabes com que gosto visito e revejo monumentos e obras outras de arte que nos testemunham o engenho criador de tantos que, antes de nós, por cá andaram e procuraram vencer a imperfeição... Livro-me sempre de condenar, ou sequer censurar, a despesa que terão custado, nem me parece que a remuneração do meritório esforço de um artista possa ser, só por si, motivo de escândalo, se não esquecer que é tão justo remunerar o mérito do esforço e do trabalho, como atender a que a distinção não seja razão de injustiça. E também compreendo os modos de tempos idos, em que o preço dos materiais utilizados era como que intrínseco ao valor da obra humana, e traduzia a grandeza do sentimento ou da homenagem prestada.  Mas igualmente tenho de entender que populações que se iam civilmente organizando em espaços e obediências diferentes, se recusassem a pagar obras de sumptuosa arte, em troco da promessa de menos uns anitos no purgatório, fantasia teológica inventada em tempos de pretensiosa clerical mentalidade. A compreensão dessa reação não me inibe de admirar as que recheiam o Vaticano, ainda que possa interrogar a sua pertinência evangélica. Mas não tenho de julgar, esquecer, nem apagar o passado: pensossinto que devo só procurar entendê-lo, e sua circunstância. Sabes bem, Princesa de mim, quanto tanto dou graças a Deus por pensarsentir que a interrogação e a demanda são parte integrante da minha, nossa, condição de imperfeito... Eu que, como tu, no que toca à "produção artística", fui crescendo numa época em que a pobreza dos meios disponíveis e a própria mínima  valorização dos materiais utilizados nos levavam a mais calorosamente apreciar a obra dos  artistas... Ao ponto de termos até caído na tentação de sobrepor a paixão pelo efémero à da tentativa de gerar eternidade... Ilusões ou utopias, que importa? São sinais das nossas contradições, da nossa imperfeição incompreendida, esse ponto íntimo em que começamos o caminho da nossa demanda...

 

   Para mim, o problema da escrita destas cartas que te envio, é deixar-me sempre perdido no percurso dos fios em que pego e hesito tecer. Não ensino nem quero ensinar seja o que for que se entenda como orientação de outros, contento-me com abrir as minhas janelas e deixar adivinhar paisagens que avisto. Convivo muito com o passado, é certo, procuro entender como outros se entendiam noutras circunstâncias, ganho alma para a minha vida ao visitá-los, como se essa comunhão me sustentasse só por deixar ver que a condição humana é este movermo-nos entre um ser e um estar, e as suas divergências, e os seus contrários... Um olhar inocente, isto é, sem convicções prévias, ou preconceitos, quiçá nos revele muito da realidade das coisas. Sempre assim penseissenti o convite de Jesus a sermos como crianças.

 

   Hoje, falamos de um arcebispo português, frade dominicano, padre conciliar em Trento, que o papa respeitava e carinhosamente tratava por "Bracarense", teólogo e pastor admirado que, todavia, numa cristandade latina em plena agitação da Reforma e Contra Reforma, não se coibia de lembrar ao "Santíssimo Padre" a necessidade de a Igreja se dedicar às obras do espírito e da solidariedade fraterna, como também  -  ao discutir-se em Concílio o celibato dos padres  -  quis lembrar os seus párocos perdidos nas serranias de Portugal, que talvez se aliviassem pela dispensa de tal disciplina... [Permite-me este parêntese: lembrei-me disto, da primazia de olhar o real sobre os desideranda de qualquer imaginada doutrina, quando, há pouco ainda, deparei com a atitude do episcopado português relativamente à questão do reconhecimento da paternidade de filhos espúrios de senhores padres... Será que o Deus de que se reclamam não é capaz de enfrentar umas realidades das suas criaturas? Ou será, mesmo, o sacerdócio católico uma espécie de promoção de baptizado=soldado raso a padre=capitão, com mais privilégios e isenções, ou dispensa do cumprimento de obrigações morais juridicamente imputáveis, que, mais, são naturalmente decorrentes da responsabilidade e do afecto dum progenitor? E será mesmo ainda irrevogável ou tão somente inderrogável a determinação canónica - cujo fundamento é, quiçá, mais de ordem cultural do que propriamente teológica - de se reservar aquele ministério pastoral apenas a solteiros (ou viúvos, ou divorciados de anteriores matrimónios civis) de sexo masculino? Digo isto com muita sofrida amizade por tantos padres que vivem a missão  que aceitaram e assumiram... Eles sabem bem que são, como todos nós, pobres muitas vezes fracos. E muito bem entendem como a conversão é uma tentativa de resposta ao apelo do melhor, não é negar o que fizemos, nem achar razão maior para não suportarmos as consequências. Qualquer filho de um padre católico celibatário não é "filho do pecado", não pode nem poderá sê-lo, pela simples razão de que todo o ser humano é sempre filho de Deus. Sobretudo se for um falso-órfão, num modo absurdo de ser abandonado. A primazia dos pobres e mais fracos é regra básica da mensagem evangélica. A tal ponto que até há quem diga que Deus é pobre. E, com muitas ou poucas inquisições, nunca ninguém foi, é, ou poderá ser, pela Mãe-Igreja, condenado por confessar que Deus é pobre. Sei bem, Princesa de mim, que isto que ora digo pode não ser fácil de entender. Mas quem ler atentamente o Novo Testamento talvez conclua que Jesus Cristo é o Deus autodespojado, para incarnar a condição humana. Assim não o entendem os fariseus, quando Ele lhes diz que se destruírem este templo, ele o reconstruirá em três dias: não se referia ao templo de Jerusalém, mas ao seu próprio corpo. O ser humano tem um valor espiritual que nenhum monumento nem regra jurídica ou social poderá atingir. Pensando assim talvez entendamos a misericórdia. Tenho tido esta carta, já há tempo escrita para ti, guardada, nem sei porquê. Sei hoje que lhe acrescento a grata memória do bispo Manuel Martins, nortenho, português de todos os costados, que foi o padre dos pobres na sua diocese de Setúbal. Era amigo de frei Bento Domingues, mas foi Francisco de Sá Carneiro, querido lembrado amigo, o primeiro a falar-me dele... Em tempos, Princesa de mim, de tão incompleta transição política... Mas não há incompletude que apague a memória e o testemunho de frei Bartolomeu e do padre Manuel Martins, nem imperfeição que empalideça a esperança ou enfraqueça a demanda da justiça.

 

Camilo Maria    


Camilo Martins de Oliveira