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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

CRÓNICA DA CULTURA

 

O que somos na memória dos outros é a casa da nossa descendência.

 

Faça-se a nossa vida de histórias de sismos que vamos gerindo, ou, de vulcões de amores que amámos, ao abrigo de um especial movimento, a relação com a tal nossa circunstância transmite-se a quem marcará tempo e modo de nos recordar com a abertura ímpar do saber e do afeto, abertura que envolverá curiosidade, desconfiança de gestos e a saudade que lhes apraz em companhia, e lhes leva a paz e a inquietação, unidas à sua identidade cheia de contradições.

 

E eis-nos lá, no futuro deles, onde já seremos algo diferente e contudo nós.

 

Diria que até faremos parte de uma família rara: a de um processo que se não impõe, pois, na qualidade de operários diferenciados, voluntários sempre, e chamados como antepassados essenciais a uma paz que lhe doámos válida e consistente e sem que nada se aguarde em troca, como muito acode à herança do afeto familiar. O que somos na memória de quem aí nos deseja é local-casa de um imenso e atento ouvido, nunca diluído nos limbos do esquecimento, antes horizontes que são filtros de ajuda a quem nos chama.

 

Somos assim descendência reconhecida na tessitura de uma torre de Babel que nos vai descodificando por geométricos percursos do sentir e do compreender e do amar e do sofrer. E não será esta torre à nossa descendência, um triunfo da vaidade humana, mas uma palavra provisória, precária mesmo, mas forte no fez-se mundo: «vêem por um espelho e obscuramente», nas palavras de Augustinus.

 

Enfim a casa da nossa descendência vai revelando prodígios e paradoxos com os quais obtivemos raciocínios, até aquele que nos fez esperar a morte para que esta desse sentido à vida, qual zero que atribuiu operacionalidade ao olhar de onde e para onde.

 

E neste acreditar que seremos parte da memória dos outros, e sua e nossa casa, não existe gregaridade, ao invés, tal como nas primeiras causas, soltos seremos em tudo quanto nos suceda no tempo de uma eternidade que acede enfim a quem nos visitará.

 

Porventura na dimensão do mistério do vértice ardente da labareda, ali mesmo onde se oculta decerto uma ideia de casa, uma ideia de Deus, a de Deus em nós, ou a de Deus neles, ou no todo; ou imunes a um contágio, assim, se outro ângulo for aquele por onde se entendem as razões de sermos a memória do nós na descendência, será afinal esta, fenómeno natural,  provocação mesmo que se sustém por si e tão só!

 

Teresa Bracinha Vieira

Camilo Martins de Oliveira: o seu livro "Fomos em Busca do Japão"

 

Leio este livro e releio como se fosse ele um ponto de vigia que dá para as ondulações secretas de uma antiga humanidade, excelentemente filtrada pelas palavras e sentires interpretativos e plenos da luz certeira de Camilo Martins de Oliveira. É raro podermos ter a fruição de ler, uma ráfia de aconteceres, nomeadamente antropológicos, de uma cultura tão sabiamente entendida e meditada pelos negativos da memória, de quem, como Camilo de Oliveira disseca mistérios e os expõe às manhãs do entender de cada um de nós.

 

Desde logo “O Budismo Zen” marcou em mim a hora de uma porta aberta, a concluir com clareza, a compreensão das necessidades espirituais que acompanham o combativo guerreiro japonês ligado à vida dos samurais. Esta profissão, se bem entendi, carecia de uma moral vivida numa religião que os incentivasse a nunca olharem para trás, pois que o ato seguinte se decide sempre à frente, implique ele a morte ou a vida. Intrigante esta dimensão, este exército interno que conduz os guerreiros a um âmbar hermético do pensar e do agir, mas indispensável ao destino da completa realização do dever de um samurai.

 

O Zen é convicto filosoficamente de que se move numa religião de vontade, e que esta é caminho breve da Verdade. A Verdade do samurai que como nos diz Camilo tem de ser autoconfiante e auto-renunciadora, ambas apoio sólido ao espírito combativo. Assim nunca surgem os tempos de letargo e as horas solenes são todas as que os levam a combater tendo em vista um único objetivo: esmagar o inimigo sem emoções ou dúvidas, que constituiriam sérios obstáculos ao movimento do ir para a frente, como vocação entre o nascer do sol e o vir da noite, e, com o tempo certo de se debruçarem num sono que os liberta de terem nascido e de terem optado pelo ofício ao qual a vida, como a entendemos, não pode relevar. Afirma-se no livro, que o Zen é uma religião da força de vontade, e é dela, dessa vontade que precisam os guerreiros, ainda que não descuide o Zen, o poder da intuição, mas nunca atolado, antes sorvedouro da poeira que ofusque.

 

Acaso se adivinha que todos os que à morte se entregaram no seu crescer, não lhes pode turvar o caminho, uma lágrima que intua que a direção e o sentir dela, naquela álea do jardim - que afinal nunca é vista já que turvaria o dever do guerreiro e o seu suporte Zen nesta moral, nesta religião, nesta filosofia que tanto lhes esclarece a razão da morte - preciosa linguagem de que uma verdade se cumpra na hora certa e sob a língua imperial de uma lamina, e seja esta afinal a aventura samurai da descoberta.

 

Procuro espreitar nas exatas palavras de Camilo de Oliveira o inquietante e o belo do Budismo Zen que tanto o diferencia de outras seitas e o quanto o seu jardim até através da poesia chega aos nossos dias.

 

Existe uma visibilidade própria sobre o mundo do que acima tentei extrair das palavras que li, e que muito me intrigaram e muito me encantaram. É a visão de um outro lado da história, é a visão dos que nunca foram vencidos. Os samurais podem ser vistos como homens frios no agir, cruéis mesmo, como se nem o Zen lhes não fosse indispensável base à atitude olímpica do não duvidar. Imagino, digo, que estes guerreiros nascem dos dentes dos dragões; nascem homens armados que entram logo em luta sem qualquer náusea: criam as bases de uma sociedade como alguém que recebe heranças sucessivas sem qualquer ostentação; como se nada estivesse a acontecer que o seu poder obnubilasse o cimo do qual se vê a história.

 

E um dia, um médico, que conheci numa guerra - depois de operar sem qualquer anestesia, ou esta não fosse presença ausente naquele local longínquo do dito mundo civilizado – retirou-se para um canto do acampamento, sentou-se na terra, soprou o pó das mãos e abriu uma pequena e desconjunta brochura:

 

Ponto de vista explicativo da minha obra, de Kierkegaard, chave póstuma para o entendimento sobre o papel do indivíduo e a sua posição central no mundo. Abriu a obra na página certeira onde deixara um bisturi, qual marcador que repercutia no mais fundo da sorte aquela folha, presa mais da caça que da guerra.

 

Teresa Bracinha Vieira