CARTAS DE CAMILO MARIA DE SAROLEA
Minha Princesa de mim:
Em carta a António, Simone Weil, a filósofa judia e cristã, por seu pesar e sua graça, escreveu: Os filósofos gregos que se chamavam estoicos diziam que se deve ter amor ao destino; que se deve amar tudo o que o destino traz, mesmo quando traz a infelicidade. Neste sentido, o nosso frei Gaspar da Cruz foi um estoico. O autor do Tratado das Cousas da China, impresso em Évora em 1569-70, primeiro livro europeu sobre o Celeste Império, é sucintamente biografado por Charles Boxer, no South China in the Sixteenth Century, editado em Londres, em 1953, pela Hakluyt Society. Conta-nos o famoso Camões Professor of Portuguese, University of London, King´s College, que aquele dominicano português – traduzo - Gaspar da Cruz nasceu em Évora, mas nem o nome de seus pais, nem a data do nascimento são registadas pelos seus biógrafos. Foi admitido na Ordem de São Domingos no convento de Azeitão, mas o ano em que se fez Frade Pregador é igualmente desconhecido. A primeira data registada da sua vida é o ano de 1548, quando singrou para Goa, como um dos dominicanos de um grupo liderado pelo seu vigário geral, frei Diogo Bermudes. Outros poucos frades dominicanos tinham ido para a Índia antes disso, mas como capelães em serviço entre portugueses: a chegada de frei Diogo Bermudes e seus companheiros marca o início oficial das missões da Ordem na Ásia.
Boxer conta então os trabalhos de frei Gaspar nas missões da Índia e de Malaca, até à sua tentativa de fundação de uma missão no Camboja, em 1555-56, que fracassou por manobras de monges budistas locais e desinteresse do rei. Por isso mesmo o fado empurrará o bom frade até à China (Cantão), onde pouco êxito terá também, apesar de aturado e rigoroso esforço de entendimento da cultura e gentes da terra. Salienta o professor do King´s College que frei Gaspar da Cruz, apesar de poucos meses ter passado na China, conseguiu recolher e tratar informação suficiente para redigir o seu Tratado das Cousas da China, obra inédita e logo famosa e útil na Europa do seu tempo... Mais tarde, descobrimo-lo em Ormuz, onde chegou a exercer funções de tradutor e intérprete, como testemunha a sua Relação da Crónica dos Reis d´Ormuz e da Fundação da Cidade d´Ormuz, tirada duma Crónica que compôs um Rei do mesmo Reino, chamado Pachaturunxa [Padinsha Turan Sha (1347-1378)]. Trata-se, pois, de uma tradução do arábico, feita antes do retorno a Portugal, em 1569. No total, portanto, frei Gaspar fez vinte anos de Oriente.
Na sua utilíssima Introdução, modernização do texto e notas à edição do Tratado, que preparou para a BI, o Dr. Rui Manuel Loureiro assinala a colaboração, prestada, em Lisboa, por frei Gaspar da Cruz na luta contra a violenta peste que em 1569 assolava a capital. Uma vez debelada a enfermidade nesta cidade, o nosso dominicano passou a Setúbal, onde o "pestífero mal" recrudescera; porém, contraindo ele próprio a doença, veio aí a falecer em "5 de fevereiro de 1570". Frei Luís de Sousa fala dessa epidemia na sua História de São Domingos, frei João dos Santos, na sua Ethiopia Oriental e várias histórias de cousas notáveis do Oriente, conta assim o episódio de que te falo: ... Este padre, tornando da Índia para Portugal, se ofereceu no tempo da peste grande de Lisboa, que foi no ano de 1569, para confessar e curar os enfermos que havia na grande cidade, juntamente com o padre frei Isidoro Altamirano e o padre frei Belchior de Monsanto, da mesma Ordem, e cada um deles trazia por seu companheiro um irmão leigo, que os ajudava a visitar os enfermos, com doces consolações e remédios, assim espirituais como corporais, divididos pelos bairros de Lisboa, que cada um tinha à sua conta, e neste ministério andaram enquanto a peste durou, exercitando esta obra de caridade: e acabada a peste, de Lisboa se foi o padre frei Gaspar a Setúbal para o mesmo efeito, onde esteve até se acabar a peste, e no fim dela adoeceu do mesmo mal, e morreu, como ele mesmo tinha certificado em sua vida, dizendo que também ele se feriria e morreria da mesma peste, e que depois da sua morte nenhuma pessoa mais adoeceria deste mal, como aconteceu: de modo que ele foi o derradeiro que adoeceu, e morreu do mal da peste em Setúbal, e dali o levaram a enterrar ao Convento de São Domingos de Azeitão, donde era filho. E nesta obra e serviço de Deus tão heroico acabou seus dias e trabalhos... Este texto também vem transcrito no livro Het China van Gaspar, da escritora e sinóloga flamenga Magda van den Akker, da Universidade de Lovaina (Leuven) que, numa escala em Bruxelas, em 1990, para visitar a minha filha Teresa (ia eu de Tokyo para Lisboa), comprei para ler no avião. Já tem hoje, Princesa de mim, versão em português, publicada pela Caminho. A autora, agnóstica e admiradora do Zeca Afonso, compôs a sua narrativa romanceada a duas vozes: uma, a de Fernão Mendes Pinto, a cuja Peregrinação vai buscar inspiração e indícios de factos que lhe permitam situar encontros do aventureiro com frei Gaspar; outra, a relatos mais ou menos imaginários da peregrinação que foi a vida do frade. Tudo isto intervalado de transcrições de documentos históricos, o conjunto justificando a atribuição, em 1990, o Prémio da Flandres para a melhor primeira obra.
Alegrou-me encontrar uma desconhecida flamenga que saboreou, com gosto tão animado quanto o meu, a leitura deliciosa da Peregrinação e do Tratado das Cousas da China. Este último é devedor de informação ao relatório de Galeote Pereira, dos Pereira de Gege, senhores de Castro d´Aire, terceiro filho de Henrique Pereira, alcaide de Arraiolos. Curiosamente, uma vez mais, o primeiro texto que achei do relatório de Galeote Pereira foi uma versão em língua inglesa: Certain reports on China, learned through the Portugals there imprisoned, and chiefly by the relation of Galeote Pereira, a gentleman of good credit, that lay prisoner in that country many years. Done out of Italian into English by Richard Willis. Pelos vistos, o relatório de Galeote Pereira circulava já no seu tempo, até em traduções como esta, em língua inglesa, a partir do italiano (não sei precisar de que parte de Itália, península onde eram várias as expressões itálicas). O texto original conserva-se no Arquivo Jesuíta de Roma, em manuscrito, provavelmente, de um aluno da Companhia de Jesus em escola de Goa, no século XVI: Jesus Maria. Algumas cousas sabidas da China por purtugueses que estiverão lá catiuos e tudo na verdade que se tirou de um tratado que fez Galiote Pereira homem fidalgo que lá esteve catiuo alguns anos e vio tudo isto passar na verdade o qual he de muito crédito. Ao tempo da redação do Tratado de frei Gaspar, além de Galeote Pereira, também cronistas como Fernão Lopes de Castanheda, Leitão de Barros e Damião de Goes haviam já escrito sobre a China. Mas, como bem observa Charles Boxer, nem esses, nem os relatórios anuais das missões jesuítas, constituíam livros sobre a China, pois eram apenas trechos de obras que incidentalmente falavam da China. Nove décimos do Tratado de Cruz se reportam diretamente à China, e é claro, logo no prefácio, que ele queria que o livro fosse inteiramente consagrado àquele país... ... A este humilde frade dominicano, portanto, deve ser atribuída a honra (se for esta a palavra certa) de ter escrito o primeiro livro sobre a China publicado na Europa. Mais humilde ainda, pobre frade, no seu tempo, se considerarmos a hipótese - que alguns autores já consideraram verosímil - de frei Gaspar da Cruz ter sido acolhido e criado um orfanato eborense, sem nome de família, fruto talvez de uma bastardia, ou de origem judia ou moura, como tantas outras crianças naquela época. Boxer não se pronuncia, concentra-se no elogio da obra: o Tratado de Gaspar da Cruz tem outra reivindicação do interesse do leitor. O grande editor de Marco Polo com razão observou que "em nada é o seu livro [de Marco Polo] tão deficiente como no tocante às maneiras e peculiaridades chinesas. A Grande Muralha nunca é mencionada... ... O uso do chá nunca é mencionado... ... a compressão dos pés das mulheres... a impressão de livros, além do registo de artes e costumes notáveis, que deveriam ter-lhe ficado na memória, nunca são evocados. Nem nunca fala das grandes características da escrita chinesa...
O conhecimento do texto de Gaspar da Cruz mostrará que tais críticas não podem ser feitas ao seu Tratado. Todas as omissões de Marco Polo são ali preenchidas, e o nosso frade tem muitas observações que antecipam as dos vindouros escritores jesuítas que são normalmente creditados com a primeira revelação da China à Europa...
O missionário dominicano, logo no prólogo do seu Tratado, enumera as muitas missões e obras de jesuítas, franciscanos e dominicanos no sul e sudeste asiático e em todo o Extremo Oriente, com igual estima por todos esses esforços e empresas de propagação da sua fé. É certamente um homem consciente da causa que a tão distantes paragens o levou, e o seu alegre entusiasmo pelas cristandades que encontra e quer continuar a expandir anima o seu esforço e alimenta a sua consciência - de católico quinhentista - da superioridade universal da sua fé. Mas tal não o impede de reconhecer virtudes alheias e, como Duarte Pacheco Pereira, e tantos outros, chega àquela sabedoria em que a experiência é madre de todas as cousas. Não resisto, Princesa de mim, a transcrever-te um dos trechos finais do prólogo que te referi:
E porque entre estas gentes de que fiz menção, os chinas a todos excedem em multidão de gente, em excelência de polícia e de governo, e em abundância de possessões e riquezas - nem em coisas preciosas como é ouro e pedras preciosas, senão nas riquezas, disposições e fazendas que principalmente servem a necessidade humana -, e porque estas gentes têm cousas muito dignas de memória, me movi a dar notícia geral de suas cousas conforme a minha possibilidade, assim do que vi como do que li num compêndio que fez um homem fidalgo [Galeote Pereira] que cativo andou pela terra dentro, como do que ouvi a pessoas dignas de fé.
Camilo Maria
Camilo Martins de Oliveira