A PALAVRA DE JOÃO BÉNARD DA COSTA
DE JOHN MOHUNE A JON WHITELEY
OU DE FRITZ LANG A AUGUSTE-DOMINIQUE INGRES
1. Julgo que é o título mais comprido desta série de crónicas, quer as das antigas e românticas sextas-feiras, quer as dos novos e frustres domingos onde ainda não conseguiram arranjar lugar para me sentar. Quando se escolhe um título longo, é, normalmente, para ser mais explicativo, como é o caso, por exemplo do Everything You always Wanted to Know About Sex, but Were Afraid to Ask. Não é o caso deste meu, de hoje. Dou um doce a quem, mesmo muito sabido, perceber que relação existe entre John Mohune e Ingres, ou mesmo entre o pintor e Fritz Lang. Essa relação construiu-se, para mim, nos últimos três anos e só há três dias se concretizou. Apetece-lhes ouvir a história? A mim, apetece-me contá-la.
2. John Mohune é o nome do jovem herói do romance de John Meade Falkner Moonfleet, publicado em 1898. Um desses romances de aventuras escritos para pré-adolescentes do sexo masculino, que descende de Stevenson ou, mais remotamente, de Dickens ou de Kipling, e que foi muito popular na Grã-Bretanha, dos alvores aos meados do século que passou. A ação situa-se no século XVIII. John Mohune é o filho de Olivia e a família é tão importante naquela parte da Escócia que o próprio nome da povoação que dá título ao romance provém dela. Moonfleet é contração de Mohune e Fleet. Não eram senhores muito amados os Mohune. John, órfão aos nove anos, é informado pouco depois (pouco depois da morte da mãe, que o pai é outra história) que o nome não é propriamente um nome benquisto na aldeia de contrabandistas e piratas onde se situa quase toda a ação.
A primeira vez que o vi foi no filme homónimo de Fritz Lang, estreado em 1955. Tinha os mesmos nove anos, era muito ruivo e de cabelo encaracolado, a cara cheia de sardas, olhos azuis determinados. Por uma noite sem lua, com um céu coberto de nuvens púrpuras ou amarelas, caminhou à procura de um homem que julga ser seu amigo. A certa altura pára, para tirar um seixo de um dos buracos das solas das botas. De repente, aparece-lhe - é o termo - um anjo enorme de olhar vazio e expressão inquietante. Será estátua? Será gente? Uma mão que se vê em cima de um muro parece apontar para a segunda hipótese. John Mohune tenta fugir, tropeça e desmaia. Quando acorda, está no fundo de um poço e é do fundo desse poço que nós, com ele, vemos em contra-plongée vertical uma série de caras patibulares. O miúdo caiu às mãos de 40 ladrões. Mas recupera depressa a coragem e insiste que o levem à presença de Jeremy Fox, para quem traz uma carta. Carta da mãe, que, ao morrer, o confiou aos cuidados desse homem. Quando lhe somos apresentados (a Jeremy Fox), o aspecto e as maneiras do personagem (o ator é Stewart Granger) não prometem nada de bom. Nem dele, nem dos companheiros dele (onde avulta, para mim, a voz incomparável de Joan Greenwood), nem da dançarina que dança para ele. Só muito pouco a pouco percebemos algumas coisas e nem todas são esclarecidas. Jeremy Fox tem as costas marcadas por dentes de cães que os Mohune lhe atiçaram. Plebeu, estava na companhia de senhora, senhora que só podia ser uma Mohune, para a família se enfurecer de tal modo. Se ela, ao morrer, confiou o filho ao homem que fora pasto da matilha, as probabilidades são muitas de John Mohune ser filho de Jeremy Fox, embora no filme nunca tal se diga e o miúdo nunca o suspeite. No livro? No livro nem sequer há nenhum Jeremy Fox, tal era, nesses bons tempos, a fidelidade dos estúdios aos textos originais. Mas se John Mohune nunca suspeita que Jeremy Fox é seu pai, também nunca duvida que ele seja o amigo que a mãe lhe disse que era. Contra todas as evidências, porque Jeremy Fox passa o filme a enxotá-lo. Mrs. Minton, uma das amantes dele, pergunta a Jeremy: "Que vais fazer dele? Corrompê-lo e destruí-lo, como fazes a toda a gente?" "Há um perigo bem maior", responde Jeremy, "é ser ele a destruir-me." No final do filme todos morrem, menos John Mohune, que tem finalmente toda a razão para dizer: "It"s good to have a friend."
Para interpretar John Mohune, a Metro-Goldwyn Mayer, em 1955, chamou Jon Whiteley, um miúdo escocês que se estreara nas telas aos 6 anos, em 1951, e aos oito ganhara um Óscar especial da Academia pela sua interpretação em The Kidnappers de Philip Leacock. Em 1956, aos 11 anos, desapareceu das telas. Os pais acharam que cinco anos de filmes e estúdios, entre Londres e a Califórnia, já chegavam. Mandaram-no estudar.
Mas quem ama Moonfleet como eu amo - e estou cada vez mais acompanhado - nunca mais conseguiu ver John Mohune sem ver Jon Whiteley seguindo com um cão o seu amigo e roubando para ele o tesouro do Barba Ruiva. Cinemascope, mar, o obsessivo decote de Joan Greenwood, a voz de Joan Greenwood. E, evidentemente, Jon Whiteley. Cemitérios, lousas quebradas, poentes castanhos, rochas escarpadas. A fotografia de Robert Planck e a música de Miklos Rozsa. E, evidentemente, Jon Whiteley.
3. Mas se era evidente, era tão evidente que nunca me lembrei de perguntar por ele. Nem eu, nem (aparentemente) mais ninguém. Todas as celebridades do filme disseram da sua graça, e a maior das vezes da sua desgraça. Fritz Lang só no fim da vida se reconciliou com um filme em que passou as passas do Algarve. John Houseman, o produtor (que não era nada imbecil), dizia que só os franceses é que achavam que o filme era uma obra-prima. Por "perversidade ou por lealdade para com Fritz Lang". Mas Jon Whiteley nunca foi tido nem achado, apesar de se dizer que Lang, "ditatorial e déspota", tratara com especial e teutónico sadismo o seu jovem intérprete. Provavelmente, o assunto teria morrido por aí (e hoje não me estavam a ler), se, em finais de 2001, por ocasião de um seminário sobre cinema e pintura no Convento da Arrábida, Henri Zerner não me tivesse perguntado: "Você sabe que Jon Whiteley é meu colega e professor de História de Arte em Oxford?" Não fazia a mais pequena ideia. Mas como cinema, pintura, Moonfleet fazem trindade indissociável, pensei em convidá-lo quando saísse o livro em que esse seminário desembocou. Convidá-lo para vir a Lisboa e apresentar Moonfleet. Ao princípio correu mal: de Oxford disseram-me que o prof. Whiteley (hoje com 60 anos) estava em ano sabático algures nos Estados Unidos. Mas havia mails. Há sempre.
Já com poucas esperanças, mailei. E, na volta, tive a resposta mais simpática do mundo. Que adorava voltar a Portugal, que conhecia como turista e que adorava apresentar Moonfleet, que (e agora sublinho bem) nunca ninguém o tinha convidado a apresentar.
Em janeiro, Jon e Linda Whiteley desembarcaram em Lisboa e eu vi subitamente na minha frente, aos 60 anos, o miúdo de 9, de 1955. Mesmos cabelos ruivos, mesmos olhos azuis, mesmas sardas. E, na fantástica apresentação do filme, o mesmo medo e a mesma coragem para defender Fritz Lang, acabar com a lenda das malfeitorias e falar da conspiração de produtores e atores contra aquele velho barrigudo e monocular que ousara pular para cima de uma mesa e explicar à famosa bailarina Liliana Montevecchi como é que se devia dançar a dança que ele queria que ela dançasse para endoidar os homens e empalidecer as mulheres. Fritz Lang, o realizador que "composed scenes in the manner of a painter and treated actors like a puppet-master". "This perhaps annoyed his actors but it did not trouble me." Depois falou-me de Ingres, seu pintor favorito, e prometeu-me o livro que sobre ela tinha escrito e há muito se esgotou.
4. A fama dessa palestra de Lisboa chegou a várias partes. Este e aquele começaram-me a pedir o Whiteley de Lisboa. Até que, postos os feriados de junho e os dias de montanha russa entre Guimarães e Salamanca, Salamanca e Belmonte, recebi, com data de 8 de junho, uma carta dele e o livro sobre Ingres. Na carta dizia-me que "as a result of your invitation to Lisbon and the showing of Moonfleet" recebera um convite para comentar o filme num festival em Procida. Sabia que a cópia a ser projetada era a nossa (a melhor cópia de Moonfleet que por aí anda e não é para me gabar). "Any chance of seeing you? I hope so very much." Não, não vou rever em Procida o meu John Mohune feito John Whiteley, criatura de Lang e criatura de Ingres, igual aos 9 e aos 60 anos, na sua busca pela amizade e na certeza dela. Mas ganhei o livro azul, com o retrato da viscondessa de Haussonville que está na Frick Collection. E nele recordei que a duquesa de Guermantes, depois de o ter execrado como o pior dos académicos, descobriu, no fim da vida, que ele fora o genial precursor do Art Nouveau. "Como os arquitetos do barroco, Ingres ultrapassou o domínio da arte clássica para inventar uma linguagem expressiva de regras quebradas, através das quais deu forma exterior aos doces, nostálgicos, ambiciosos, sensuais e vingativos desejos que sempre possuíram a sua imaginação." Ingres, certamente. Mas também Fritz Lang. "A deeply sensuous nature." John Mohune começou na encruzilhada de Moonfleet. Mas lembrou-se que estavam por ali senhoras. Foi nos banhos turcos de Ingres.
19 de junho 2005 PÚBLICO