Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

CRÓNICA DA CULTURA


Existe sim uma tristeza nas gentes daquilo que possa acontecer. E é estranho que este sentir que intuo no ar e nos olhos, dorme ao lado da felicidade. Na fusão da noite dos sentimentos, o medo não enfraquece, antes mina e deixa-nos a temer todas as realidades como modo de ocupação permanente, desde a hora em que o despertador nos acorda até à hora da sonolência cansada nos levar ao sono, e este ao sonho que abarca também a possibilidade de nele perdermos alguém que amamos, como se esse perder nos levasse o amor que por esse alguém sentimos.

 

Dá a sensação de que os passos das gentes assentam em coisas demasiado transitórias e insustentáveis. Em compromissos estranhos de entendimentos, em pactos de silêncio e de sofrimentos.

 

Será tudo isto afetação própria da época em que se nasceu? Não será tudo isto mais conjeturado do que propriamente verdadeiro? Não haverá aqui algo de nonsense pelo nonsense? tal como o princípio que decreta a arte pela arte?, ou a congruência de tudo o que é incongruente? A aptidão da inaptidão? Pergunto-me se os matemáticos estão a fazer férias demasiado grandes deixando espaço a inversões descomprometidas por parte do lógico? E só de o pensar, dá-me calafrios.

 

O que seja a biblioteca de cada um, não lhes passa pela cabeça retirá-la da estante. Contudo vejo bolhas de sabão. Muitas. E, enquanto mundo e nele gentes, em intervalos lúcidos de insanidade, vendo-se a braços com as bolhas de sabão, desnorteiam com sentido, e eu só consigo desejar-lhes casa, desejando-me e desejando-lhes também sítio de mundo para onde queiram sempre voltar no encalço das razões dos livros clássicos.

 

E pergunto-me se os poetas se conseguem erguer tendo no céu e no chão tantas nuvens por determinar, quer no crepúsculo do nascer ou do pôr-do-sol.

 

Teresa Bracinha Vieira

AGOSTINHO DA SILVA

 

Muito me reprovo e o aprovo tanto quanto outrora aprovei o que hoje me reprovo.

Agostinho da Silva

 

Já várias vezes tentei escrever nesta página acerca da minha admiração profunda pela cultura de Agostinho da Silva. Nunca sei se o que escrevo é o que senti de o ler, de o ouvir e o ter conhecido um pouquinho – orgulho meu – por com ele ter estado duas vezes após conferências a conversar um nadinha, ao meu sentir, um nadinha grande, ou, se o que escrevo dele, agarra-se sempre ao fascínio que em determinada altura senti pelo estudo dos milenarismos e por aí o segui, ou o final dos tempos não trouxesse um novo mundo de paz e felicidade e não fosse esse motivo bastante para lhe perguntar o quanto a vinda do Messias interrompia esta esperança; o quanto um reino com duração de mil anos é reino indefinido e curto para mudanças.

 

Depois (antes?) não sei, procurei-lhe nas palavras aquela liberdade única a que se referia com excelência como sendo a mais importante qualidade do ser humano e sendo que só através dela se mudaria a sociedade. 

 

Um dia, numa conferência, com o Mário Soares na mesa, começou Agostinho a falar de protocolo, afirmando nada saber a respeito, e durante mais de uma hora, deixou-nos extasiados com o seu poder de explicar o protocolo num imenso mundo de o saber como sendo um tema que o ligaria ao ser-estrangeiro, numa inteireza acordada de gestos e sinais em comunhão de escuta e de encontro com a «norma», a fim de se poder ser-se reconhecido num determinado papel de influência de grupo. E por aí adiante. E quando se sentou dando por terminada a intervenção, ficámos todos- diria assim - numa expectativa de identificação com um lugar que, ao menos com a clareza que o explicou, nunca o tínhamos visitado.

 

Sempre na luta desafiando melhores dias, também Agostinho da Silva escrevia poemas fortificados como este

 

Queria que os Portugueses

Queria que os portugueses 
tivessem senso de humor 
e não vissem como génio 
todo aquele que é doutor 

sobretudo se é o próprio 
que se afirma como tal 
só porque sabendo ler 
o que lê entende mal 

todos os que são formados 
deviam ter que fazer 
exame de analfabeto 
para provar que sem ler 

teriam sido capazes 
de constituir cultura 
por tudo que a vida ensina 
e mais do que livro dura 

e tem certeza de sol 
mesmo que a noite se instale 
visto que ser-se o que se é 
muito mais que saber vale 

até para aproveitar-se 
das dúvidas da razão 
que a si própria se devia 
olhar pura opinião 

que hoje é uma manhã outra 
e talvez depois terceira 
sendo que o mundo sucede 
sempre de nova maneira 

alfabetizar cuidado 
não me ponham tudo em culto 
dos que não citar francês 
consideram puro insulto 

se a nação analfabeta 
derrubou filosofia 
e no jeito aristotélico 
o que certo parecia 

deixem-na ser o que seja 
em todo o tempo futuro 
talvez encontre sozinha 
o mais além que procuro. 

Agostinho da Silva, in 'Poemas' 

 

Saudade tenho de o saber entre nós. Saudade terei sempre de o ouvir a convidar-nos a não ter medo.

 

Teresa Bracinha Vieira

Novembro 2017