CARTAS DE CAMILO MARIA DE SAROLEA
Minha Princesa de mim:
Contemplo mistérios nesta hora da manhã nascente, quando o irmão sol se levanta e enche o ar de uma luz de ouro amigo, que envolve os campos, e as coisas todas suas, numa carícia de deslumbre. Vislumbro ao longe, nas barreiras do lado de lá do vale, o fumo de uma queimada... Creio que ainda não estarão autorizadas, mas cada cabeça terá sua sentença... Pouca gente entende que a beleza ou bondade das coisas também nos alertam para a sua e nossa fragilidade e imperfeição. E uma vez mais me ocorre esse conceito augustiniano e tomista de que a prudência é amor sagaz...
Assinei hoje uma petição relativa à necessidade de maior consciência e responsabilidade na prevenção e controlo de fogos que destroem vidas e fazendas. Tê-la-ia certamente redigido de outro modo, não concordarei com todo o seu fraseado, mas entendi que devia subscrevê-la, pela simples razão de que, não culpabilizando ninguém em particular, responsabiliza-nos todos; é um grito de justa indignação - mesmo que abstrata - com que me solidarizo, e é, sobretudo, uma confissão de perplexidade, em que comungo. Fácil será sempre apontar culpas a outros, difícil é mesmo interrogarmo-nos sobre a responsabilidade, isto é, sobre as respostas a dar. A perplexidade, o não saber explicar cabalmente, é o primeiro humilde reconhecimento de que a correção do mal exige também o nosso voluntariado.
O mal é inexplicável, como essa ausência ou silêncio de Deus, que todos já sentimos. Sabes, Princesa de mim, que, por isso mesmo, acredito que a presença de Deus se refaz em nós pelo amor que formos capazes de entregar aos outros. O bom samaritano, esse homem que generosamente socorre a vítima de salteadores, um desgraçado moribundo - que todavia é filho de um povo que ostraciza os samaritanos - ensina-nos que o nosso próximo tanto é o socorrido como o socorrente. Qualquer tragédia não acontece para mutuamente nos afrontarmos, antes talvez suceda para nos levar a pensarsentir que se antes houvesse amor atento, não seria necessária a desgraça : daí concluímos que o caminho fraterno quiçá nos evite novas calamidades...
O sentimento de culpa ajuda pouco: veja-se o caso de Judas ou, em contraponto, o engano que pode ser o alívio certo preconizado pelos defensores de qualquer secreta confissão auricular. O Deus dos vivos, esse que nos anima, não marca presença no castigo, amanhece no horizonte da nossa vida quando nos chama e pede resposta. A responsabilidade é precisamente essa intenção, inteligência e vontade nossas, de aderir e cooperar no projeto de um mundo melhor. Desde o mais pequenino dos gestos fraternos às grandes construções comunitárias. Na Idade Média, sobretudo a partir do século XIII, quando uma sociedade nova ia emergindo do defeso feudal, a festa do Natal era mais calorosamente celebrada do que a da Páscoa: o mistério da encarnação do Verbo era, logo a partir das semanas do Advento, que o anunciavam, celebrado como o acolhimento do Deus connosco, o Emanuel. O tempo terrestre e humano tornava-se assim sagrado e urgia no apelo à edificação de um mundo novo...
O chamamento à responsabilidade pessoal e coletiva é um convite à alegria partilhada com Deus, que devemos amar acima de tudo, e todos os humanos que amaremos como a nós mesmos... Traduzo-te agora um trecho de Les Mots, do Jean-Paul Sartre, uma narrativa autobiográfica da sua infância: Durante alguns anos mais, cultivei relações públicas com o Todo Poderoso; em privado, deixei de o frequentar. Só por uma vez tive o sentimento de que Ele existia. Tinha brincado com fósforos, e queimado um pequeno tapete; estava a disfarçar o meu disparate quando repentinamente Deus me viu e eu senti o Seu olhar no interior da minha cabeça e sobre as minhas mãos; andei à roda na casa de banho, horrivelmente visível, um alvo vivo. Salvou-me a indignação: fiquei furioso com uma tão grosseira indiscrição, blasfemei, murmurei como o meu avô: «Santo nome de Deus de nome de Deus de nome de Deus!». Ele nunca mais olhou para mim. As palavras a negro são as que, numa edição francesa da Folio, a minha filha Teresa, aos dezassete anos, aluna da Columbia University (New York), sublinhara no texto. E que me recordaram uma estrofe do poema La Conscience, na Légende des Siècles, do Victor Hugo. Traduzo:
Ele disse então: «Quero morar debaixo do chão
Como homem solitário num sepulcro;
Nada jamais me verá, nunca verei nada mais.»
Cavou-se por isso um fosso, e Caim disse: «Ficou bem!»
E logo desceu sozinho para debaixo de tão sombria abóbada.
E quando se sentou na sua cadeira às escuras
E sobre a sua fronte se fechou o subterrâneo,
O olho estava no túmulo e olhava para Caim.
Seria o olho do Deus bíblico, quiçá o mesmo que o jovem Sartre expulsou? Esse olhar ferozmente vigilante de Quem está sempre à procura de castigar, como no relato do livro do Génese, em que Deus expulsa do paraíso o primeiro casal humano, o tal que comeu o fruto proibido da árvore do conhecimento do bem e do mal: Depois, Yahvé Deus disse: «Eis que o homem se tornou como um de nós, para conhecer o bem e o mal! Que doravante não estenda mais a mão, não colha também o fruto da árvore da vida, nem o coma, nem viva para sempre!». E Caim, filho de Adão e Eva, concebido já fora do Éden, matará seu irmão Abel. A humana condição inicia assim uma caminhada de perdição. Tiago Voragino, de quem tanto te tenho falado, começa deste modo o prólogo da sua Legenda Aurea: A totalidade do tempo da vida terrestre divide-se em quatro: o tempo da perdição, o da renovação ou do chamamento, o da reconciliação e o da peregrinação. Noutra carta voltarei a esta ideia, a que Jacques Le Goff chamou La Recherche du Temps Sacré. Agora, quero apenas dizer-te que, nessa organização medieva do tempo terrestre pelo ano litúrgico que o sacraliza, a era da renovação culmina com o nascimento de Jesus, esse momento em que Deus vem habitar a nossa condição e toca a reunir todos para obra comum.
Termina aí o tempo da perdição e o temor do Deus castigador. A todos, Cristo diz que sigam o seu caminho e não tornem a pecar. Li hoje, nos jornais, o acórdão do tribunal da relação do Porto que confirma a suspensão da pena dada aos agressores por violência e outros crimes contra uma mulher adúltera, justificando tal decisão, entre outros fundamentos, no seguinte: Sociedades existem em que a mulher adúltera é alvo de lapidação até à morte. Na Bíblia, podemos ler que a mulher adúltera deve ser punida com a morte. [sic]. A memória que guardo da mulher adúltera na narrativa evangélica é a de Jesus surgir entre os que iam apedrejá-la e dizer-lhes: «Quem não pecou que lhe lance a primeira pedra». E, depois de todos se terem retirado, envergonhados e silentes, apenas disse à mulher que fosse em paz e não voltasse a pecar. Não há renovação possível sem limpeza prévia do nosso olhar sobre nós mesmos e os outros.
O exercício da justiça é certamente indispensável ao bom funcionamento de qualquer sociedade. Mas sempre pensossinto, Princesa de mim, que a primeira condição prévia à justeza da justiça a fazer é a limpeza do olhar do juiz, a inexistência de preconceito. A segunda será a benevolência, no sentido de querer bem, isto é, de criar condições para que, ao tempo da perdição suceda o da renovação e da reconciliação. Para todos nos encontrarmos construtivamente cooperantes no tempo da peregrinação, que é, afinal, o da vida terrestre da nossa condição humana. Quiçá Yahvé/Deus nos tenha impedido de conhecer logo a diferença entre o bem e o mal, talvez por isso mesmo sejamos livres. Mas quando Deus se arrependeu da nossa liberdade, entregou-nos o seu filho único, para que essa liberdade fosse ainda maior: porque só o amor, que é querer bem, pode vencer a injustiça, que é querer mal. Pela nossa condição humana, somos sempre cúmplices, quer no bem, quer no mal. Por isso, qualquer sanção necessária a evitar males maiores nunca pode ser uma condenação definitiva (como a pena de morte), mas sim, seja qual for o castigo imposto, uma provação que leve o infrator a encontrar a sua responsabilidade. Não tenho, Princesa, muitas ilusões sobre sistemas prisionais que entregam a defesa dos réus a juristas ainda principiantes, sem mais apoios - por ser "mais barato" ou simples estágio - nem disponibilizam o acompanhamento clínico exigido em casos de reincidência ou simplesmente desadaptação ou desafio social. Num tempo em que tantos infelizes fatores impelem muitas pessoas a assumirem atitudes e comportamentos exibicionistas, agressivos, por mimetismo do que lhes é dado ouvir e ver...
... e entusiasmos facciosos, clubistas ou partidários, as levam a gritar indignações e pedir vindictas... o exercício da justiça social deve ser, cada vez mais o da prudência no juízo - o tal amor sagaz - e o da inteligência que desvenda a repetição banalizadora de acusações, a promoção de bodes expiatórios, a indignação epidérmica, como sinais certos dos demónios disfarçados que nos espreitam.
Camilo Maria
Camilo Martins de Oliveira