CRÓNICA DA CULTURA
A MORTALHA DA INDIFERENÇA: a separação dos destinos num único
Um vídeo divulgado pela agência Reuters mostra um bote ocupado por refugiados chegando à Playa de los Alemanes, em Andaluzia, na Espanha, (…) depois de cruzar o Estreito de Gibraltar. O bote com pelo menos 50 refugiados africanos chocou os banhistas da praia. Assim que a embarcação se aproximou da areia, os imigrantes saltaram e fugiram correndo. (10.08.17)
Escravos do nosso tempo, gente sem defesa, exposta à violência de todas as partes, alvejados pela indiferença dos banhistas que tanto incomodaram nas praias dos nossos dias.
Não sabem eles, nem o amortalhado mundo a que chegam, que, por aqui também o rasgão no diafragma da alma laqueou as artérias da compaixão e sob o calor, na praia, só o bronzeado é pista de vida. Os moribundos de roupas andrajosas fogem, arrastam-se fixa e silenciosamente da morte da partida e da morte da chegada.
Não existem médicos, nem medicamentos que atenuem a dor dos que sem clemência, debruçados no chão, vão suportando o olhar inquiridor que até exprime desdém ou ódio ou pasmo ou simplesmente lhe perscrutam a morte pois que com ela se iria embora um problema.
Não sabem as gentes que ao aceitarem diariamente a oferta em saldo, de imagens de horror, passam a agonizar em pasmo, sem qualquer surpresa, de que o próprio caminho seja o do abismo. Contudo quando lhes toca algo de mau, em vão tentam traduzir por palavras o seu silêncio: «Porquê eu? Porquê isto? E para onde agora?»
Não sei se se deram conta estes sortudos do lado de cá que só têm escolhido profundos ferimentos a seu cargo e semeado as terras de sementes hostis à abundância da fome. Agonizam pois numa viagem que celebram com champanhe. Então, imóveis, os abutres aguardam por óbvias razões que os festins lhes caiam aos pés como espectros de mortos ainda insepultos. Talvez a hora do que deveras deveriam ter feito se chame indiferença hipotecada a preço de sol roxo.
Um jornalista ainda pergunta aos persistentes banhistas: quanto tempo vai ficar assim? E por cá? E quando volta? Conte-nos de si dos seus desejos. Acha que politicamente partimos para um futuro sólido?
Com justa e impiedosa clareza o amor treme de frio. A indiferença traça a separação dos destinos num único. A revelação dramática da solidão usa protetor solar mascarando o lado atroz da guerra que o mundo enfrenta, sem vergonha de si, como se fosse brutalmente insuspeito.
Depois a velhice, a doença, a falta de afeto, as incompreensões, os abandonos, enfim todos os males, são culpa alheia. Fantástica cocaína!
Teresa Bracinha Vieira
11.08.17