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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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CARTAS DE CAMILO MARIA DE SAROLEA

 

Minha Princesa de mim:

 

   Sofro dores físicas, como todos nós, resisto-lhes tanto quanto posso, sem anestesias e poucos paliativos. Respeito-as mais como sintomas a observar, do que as detesto como intrusas a eliminar... Singularmente, tenho outro convívio com mágoas : são sempre misteriosas para mim, não sei localizá-las, nem sempre consigo atribuí-las a causas claras, tampouco as sinto como dores da alma só, sofro-as também no corpo, são muito humanas e pertencem à natureza de mim. São desta condição humana, tão própria das forças do universo e tão sempre a fugir delas. As árvores e as plantas todas, a vegetação amiga que todos os dias respiro aqui, no campo cuja única voz é estar em nós como nós nele, os animais que vão transmitindo vidas, e as perdem ou delas se separam, pensossinto que também sentirão mágoas vindas do incógnito do nosso da sein. Aqui estamos, todos os seres vivos, sem saber porquê nem verdadeiramente como. Mas, inconscientemente, quiçá seja maior a mágoa de quem, tampouco sabendo, quis comer do fruto da árvore do conhecimento e assim se condenou a ter de procurar sempre, com toda a alma que lhe dá vida, a razão, não só do seu da sein, do estar aí, mas de simplesmente ser e não poder negá-lo. Eis a grande mágoa. A tal que não nos larga nunca. A mesma, não o esqueças, Princesa de mim, que também nos torna irmãos na humana condição de um desamparo cuja única saída possível é a demanda de mãos dadas. Assim, Princesa, me pensossinto ser-ontologicamente-em-relação, em comunhão necessária com o mundo, o cosmos, todos os meus iguais  -  passados, presentes e futuros  -  na consciente condição humana, em que tanta mágoa se interroga e possa, talvez, afinal, descobrir-se em alegria... Não sei, não sabe ninguém, escrevo-te tudo isto com alguma perplexidade : morreu hoje uma amiga, que, com seu marido de meio século, andou comigo na cristandade da JUC, e hoje, quiçá, já não se pudesse lembrar de que a fé é a esperança das coisas que deverão vir...  

 

   Segundo o relato bíblico, Deus é anterior à nossa mágoa. Pior: foi Ele que no-la infligiu. Mas o Novo Testamento diz-nos que Deus prefere a misericórdia ao sacrifício. E o evangelista São João, que começa por nos anunciar que o Verbo é o princípio de tudo, e se fez carne e habitou entre nós, ensina-nos, pelo exemplo de Jesus Cristo, que Deus é amor e que, pelo amor, nos tornamos Deus com Ele. Não pretendo fazer exegese bíblica nem teologia, sei bem que não estou suficientemente habilitado para qualquer dito bem feito em tais disciplinas. Limito-me a perguntar se há - e, assim sendo, que sentido terá - qualquer contradição entre o trecho do livro do Génese que aqui te trago (Gen. 3, 22-24) e o, que também transcrevo, da 1ª carta de São João (1 Jo. 4, 12-21). O texto vétero-testamentário conta-nos a nossa mágoa inicial, esse gesto de Deus que nos expulsa do Paraíso: Disse então Yahvé Deus: «Eis que o homem se tornou um de nós, para conhecer o bem e o mal! Que não mais estenda a mão, para colher também o fruto da árvore da vida, e o poder comer e viver eternamente!» E Deus expulsou-o do jardim do Éden, para cultivar a terra donde tinha sido feito. Como em muitos outros mitos primitivos, o deus inicial, ou qualquer deus, afasta-se do que criou e julgava bom. De criaturas queridas, passamos a dejetos. Não saberíamos bem porquê, a nossa mágoa confundia-se com um quase ontológico sentimento de culpa. A tal ponto que o alívio da dor mais íntima só se conseguiria pela reparação pelo sacrifício, isto é, pela renúncia suposta ou desejavelmente sacralizadora de um bem querido, mesmo que este fosse a vida de um animal, de um ser humano, ou a nossa própria... Curiosamente, o episódio mítico da expulsão do Paraíso - de clara fonte bíblica (aliás também esta inspirada em anteriores relatos sumérios) - tem no Corão um relato mais de reconciliação do que de punição. Na Sura II (33-35) podemos ler: Nós [Alá] dissemos a Adão: «Habita o jardim com a tua esposa; alimentai-vos abundantemente dos seus frutos, em qualquer ponto do jardim em que se encontrem, mas não vos aproximeis desta árvore, por receio de vos tornardes culpados». Satã fê-los escorregar e fez com que fossem expulsos do lugar onde se encontravam. Nós dissemos-lhes então: «Descei desse lugar; inimigos uns dos outros, a terra vos servirá de morada e possessão temporária». Adão aprendeu do seu Senhor palavras de oração; Deus agradou-se do seu arrependimento ; Ele gosta de voltar ao homem que se arrepende; Ele é misericordioso. E eu volto à primeira carta de São João: A Deus, nunca ninguém contemplou. Se nos amarmos uns aos outros, Deus permanece em nós e em nós se cumpre o seu amor...  ... E nós reconhecemos o amor que Deus tem por nós, e acreditámos nele. Deus é Amor: quem permanece no amor permanece em Deus e Deus nele...  ... Não existe medo no amor ; pelo contrário, o amor perfeito apaga o medo, porque o medo implica um castigo, e quem tem medo jamais chegará à perfeição do amor. Quanto a nós, amemos, pois que Ele nos amou primeiro. Se alguém disser : «Amo a Deus», mas detestar o seu irmão, é mentiroso; quem não ama o seu irmão, que vê, não poderá amar a Deus, que não vê.

 

   Princesa de mim: falo-te de mistérios, de coisas secretas que pressentimos e não sabemos explicar, dessas que nos são tão íntimas e que, todavia, nos transcendem: surpreendemo-las sempre antes e depois de nós... Trazemo-las connosco, como que fazem parte de nós, e contudo não as comandamos. Assim é a mágoa que nasceu connosco e nos une, e na qual, afinal, todos comungamos. O relato bíblico do afastamento do primeiro casal humano do Paraíso, esse sobre o qual tanto me acontece pensar tratar-se de castigo, talvez injusto, certamente difícil de entender, também me ocorre ser parábola do nosso lançamento à liberdade própria, sustentou em Santo Agostinho  -  quiçá também por influência de uma misoginia judeo-cristã que lhe transmitira sua mãe, Santa Mónica, ou, antes, do seu próprio passado maniqueísta (tal podemos depreender das suas Confissões) da sua inesperada experiência de adolescente sexualmente excitado - aquilo a que já se chamou a invenção do pecado original e da sua perpetração e perpetuação pela cópula dos casais humanos. As consequências de tão castrador conceito do amor humano têm sido, a meu ver, ao longo da história do cristianismo, bastante abafadoras e desviadoras de caminhos até mais puros e condizentes com a natureza humana... Antes pelo contrário, levaram a obsessões misóginas (repara na teimosia quanto ao celibato dos padres - que até esquece que o primeiro papa, São Pedro, era casado -, ou na dita "teológica" oposição canónica à ordenação de mulheres, ou nas "justificações" de condenação de métodos contraceptivos, etc. por uma igreja clerical em que abundam casos e casos de padres pedófilos, ou frequentadores de prostíbulos, ou ignorantes disfarçados de proles adúlteras...) Tanta hipocrisia, Deus meu! Mas não é sobre isso que quero falar-te hoje. Insisto, Princesa de mim, perdoa-me por isso, nessa minha experiência espiritual da mágoa. A tal que nos vem, desde o berço, sim, porque Deus nos quis livres e a ternura é difícil. 

 

   Pensossinto que o Verbo inicial, criador do mundo e da vida, fundador da consciência e do tempo, é como um grito que percorre a História e silenciosamente atravessa, trespassa o ânimo de cada um de nós. Até quando se apagarem os caminhos e regressarmos à eternidade. Depois de termos dado resposta à pergunta feita a Caim: «Que fizeste do teu irmão?» Sobrevivemos no tempo que nos é dado, tempo contado, tempo de interrogação e mágoa, pela alegria da esperança que ganhamos a cada passo para o amor recuperável. Lembras-te, Princesa de mim, daquele trecho de Dostoievsky, que já te tenho citado? É um passo de Os Irmãos Karamazov: «Que a vida é um paraíso» - diz-me ele de repente - , há muito que penso nisso.» E logo acrescentou: «É só nisso que penso». Olha para mim e sorri. «Estou mais convencido disso ainda do que o senhor, mais tarde saberá porquê». Eu oiço isto e penso: «Por certo quer revelar-me alguma coisa». - «O paraíso», diz ele, «está escondido em cada um de nós, está mesmo agora escondido em mim, e se eu quiser, amanhã mesmo, ele será uma realidade para toda a minha vida».

 

   Finalmente, Princesa de mim, nada é mais absolutamente verdadeiro do que um abraço fraterno. Talvez por isso Cristo abra os braços na cruz.

 

Camilo Maria 

Camilo Martins de Oliveira