CRÓNICA DA CULTURA
Que me dizes? Já passou o futuro? Então e a gente já não o vai viver? E passou em que tempo e em que rua? Quem te disse?
- Pois disse-me o desejo do futuro.
- Qual desejo? O teu desejo ou o desejo de todos? Ou o teu desejo do Pedro?
- Olha, estou confusa com as tuas perguntas. Não pensei que reagisses tão alarmada. Não vês que o futuro é o presente, e nele o futuro é uma espécie de vida suspensa, e quem o topa, vai, e vive-o. Pronto é isso o que sei.
- Mas isso é uma crueldade. Não vês que estou com gripe e a febre não me deixa ir a lado nenhum. Vieste visitar-me para me dizer isso? Ó Rita tem dó, há muitas maneiras de desperdiçar o tempo e dentro dele o tal tempo de futuro que se apanha numa porção especial do presente, mas dizeres-me assim essas coisas sabendo como eu estou? Até já nem sei quando me começou a febre, e se o tal pedaço de presente que é futuro, não tem em consideração uma espécie de suspensão para ser vivido mais tarde, se acaso a culpa não for nossa? Se não tiver em conta a nossa ausência de culpa, então sim, é que estou tramada: perdi imenso com a gripe.
- Alexandra tem calma ou a febre sobe-te. Disse-me o Pedro que estes dias em que a gente não topa o futuro, têm mais de 24h e é nesse acima 24 h que está o futuro que, às vezes, pode ser 1h, 10h, ou 1 segundo a mais das 24h. Ninguém sabe mais nada. Acontece.
- O quê pode ser um segundo? Pode ser só um segundo para se viver o futuro daquele dia? Ai! que já me sinto muito pior. Vou chamar o médico.
- Não! Não chames ninguém. A porção desse segundo foi o melhor beijo que o Pedro me deu. Foi uma porção de segundo imensa! E nada digas a ninguém. Isto é um segredo enorme, pois imagina tu se naquele dia, a porção fossem 10h?
- 10h? Que tarefa! Achas que o Luís pode saber disto e nada me ter contado até que chegue o tempo máximo das 10h?
- Não sei. Ele olha-te muito, mas enfim, a preparação rouba muito tempo à porção, e entretanto ele gasta-a pondo-te à prova.
- E a prova real será eu provar-lhe que aceito viver com ele no futuro? Deus! Não me quero de adivinha, mas pressinto que a sucessão do tempo, se não a acalmarmos, faz o futuro ser agora, e já ter passado, e tudo ao mesmo tempo. Que embrulhada me trazes, Ritinha!
- Alexandra, eu é que vou daqui confusa e a pensar que eu e o Pedro fomos mesmo muito parvos.
- Porquê?
- Ora porque se tu estás certa, e nós que só vivemos aquele futuro num segundo, devíamos era ter esperado mais. Ter esperado que o segundo fossem horas. Estou mesmo a ver que tu aproveitas a gripe e te preparas para as 10h, e ao tempo, dás ainda, na altura certa, um Lexotan à penúltima das horas, ou seja, às 9h. Estou mesmo a ver que primeiro que cheguem as 10h, tens um futuro imenso pela frente!
- Bom, a ideia tem pernas ó Rita, mas eu estou doente. Saberás tu quanto tempo dura isso do futuro ser presente? E sabes se se gasta? O meu maior receio, digo-te, nem é bem esse do futuro se gastar, mas o do desejo de o viver se tornar escasso, se acaso não depender só de nós.
- Agora é que me afundei. Viraste o tempo contra nós, contra o futuro, contra a tal porção que te falava no início, e tudo isto por conta do desejo estar só em nós. O futuro do qual falamos - cuida-te-, que mal uma pessoa se distrai e as 10h já eram… mas se o desejo for nosso e de alguém, então é que o futuro não é de ninguém e dura para além das 24h, sem que se intua o tempo que estará no para além das 24h.
- Talvez não seja como eu penso. Acalma-te! Afinal se esta gripe que me apanhou for a das aves – não te rias - eu contagio-te já, e até podemos voar para além das 10h.
Como sabes, os voos são sempre aproximações aos momentos e estes são bem maiores que os segundos, e até maiores que as horas, aliás estas até se espantam por não saberem quanto tempo a mais das 24h, têm os momentos. Foste uma querida em vir visitar-me. Foste uma querida por me trazeres um algo muito especial e ambas a podermos ir em direção a ele. Já viste? Livrámo-nos da vontade dos outros de nos tornarem distraídas face aos nossos desejos. Aos nossos desejos das porções de tempo de futuro que estão contidos em todos os nossos presentes. E la grande question est de décider ce que l’on sacrifiera: il faut savoir qui, qui, sera mangé, como dizia Valéry.
- Nós ou o tempo do futuro?
Teresa Bracinha Vieira
30 novembro