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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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CARTAS DE CAMILO MARIA DE SAROLEA

 

Minha Princesa de mim:

 

    Recordo que, em carta recente (?), te escrevia: «Insisto, Princesa de mim, perdoa-me por isso, nessa minha experiência espiritual da mágoa. A tal que nos vem desde o berço, sim, porque Deus nos quis livres, e a ternura é difícil». Adiante te direi mais desse labirinto interior, onde intimamente em mim nem todas as mágoas encontram saídas. Mas, antes disso, deixa-me lembrar-te ainda de que muitas vezes te repeti a minha perplexidade - posso mesmo afirmar que se trata de repugnância - perante esse mito da expulsão do Paraíso, pena e cumprimento de um castigo tremendamente injusto (porque será sequer desobediência querer conhecer o bem e o mal?), sobretudo por ser original e transmissível de culpa a gerações sucessivas. A menos que se trate, como te escrevia, de uma «parábola do nosso lançamento à liberdade própria»... Ou, se preferires, uma exigência de inteligência nossa, enquanto resposta ao desfio do mistério. E eu contrapunha à narrativa do Génese, trechos da primeira epístola de São João... Já depois de te ter enviado a carta, li no Figaro Littéraire uma entrevista à romancista francesa Sylvie Germain, em que esta afirma (traduzo): Sinto-me como agnóstica cristã, por falta de certeza. Todavia, regresso sempre ao texto inesgotável dos Evangelhos, e sinto-me interrogada, com atenção retida, pela proposta de sentido que eles oferecem. O que me atrai num pensamento é a libertação que ele traz, o espaço interior que nos abre, o crescimento de vida que suscita. Eis o que encontro especialmente e subtilmente desenvolvido nos Evangelhos. Jesus remete incessantemente aqueles que encontra à sua liberdade, é por isso que a sua mensagem mexe com a gente - coisa que lhe censura o velho Inquisidor de Dostoievski - porque nos obriga a pensar pela própria cabeça. Uma religião muito codificada, com um corpo de regras estritas, é, de certo modo, mais confortável, alivia-nos do tormento das dúvidas e das decisões a tomar. Jesus nada impõe, convida-nos a segui-lo, sem balizar o caminho.

 

   A referência a Dostoievski é tirada de Os Irmãos Karamazov, a um trecho, que também já em carta antiga te transcrevi, dum capítulo que Sigmund Freud considerou ponto altíssimo de toda a literatura mundial. A mim - mesmo correndo o risco de novamente me apontares excesso de misticismo - estas reflexões levam-me sempre ao cerne da minha respiração espiritual, a esse drama íntimo, sempre magoado de dor e, todavia, a estoirar de ignorada alegria, esperando vir a ver tudo sobretudo quando mais cego estou. Não te falo de êxtases, antes quero contar-te o meu pensarsentir as mágoas de todos os dias... Aliás, lembrei-me hoje novamente do trecho de Os irmãos Karamazov que te citei na última carta, ao ler aquele passo do Evangelho de Lucas que diz: Quando os fariseus lhe perguntaram quando viria o Reino de Deus, respondeu-lhes: «A vinda do Reino de Deus não se deixa observar, "nem ninguém dirá "Ei-lo, está aqui!", nem tampouco "Está ali!", porque o Reino de Deus está no meio de vós». É a construção da reconciliação universal.

 

   Eis a ideia simples que tenho vindo a considerar. Se nos ferimos e sentimos dor, seja qual for a causa do ferimento ou o perfil da dor, temos a possibilidade de remediar o problema. A variedade de situações que podem causar sofrimento humano inclui não só as lesões físicas, mas também o tipo de dor que resulta da perda de um ente querido ou de uma humilhação. Assim diz António Damásio, a dado passo do seu último livro, A Estranha Ordem das Coisas - a vida, os sentimentos e as culturas humanas (Lisboa, Temas e Debates-Círculo de Leitores, novembro de 2017), título que me parece mais significativo no seu original inglês The Strange Order of Things - Life, Feeling and the Making of Cultures, talvez por "feeling" ser singular... Quero com isto dizer que, mais do que termos estes ou aqueloutros sentimentos, nós vamos sentindo. E, até no que vamos sentindo, podemos ser privilegiados. Quanta tanta gente, minha Princesa de mim, apenas pode sofrer o sentir do que lhe é imposto... Mas teremos nós de viver a condição humana, sem que sequer nos seja aberta a possibilidade de tentarmos saber porquê? Saltando uns passos, volto ao livro de António Damásio - que aqui aproveito, mas cuja leitura em sua original integridade, vivamente te recomendo:

 

   Assim sendo, a ideia simples é que as sensações de dor e de prazer, desde os diversos níveis de bem estar ao desconforto e à doença, foram os catalisadores dos processos de interrogação, de compreensão, e de solução de problemas que melhor distinguem as mentes humanas das mentes de outras espécies. Quando se interrogaram, compreenderam e solucionaram problemas, os seres humanos terão conseguido desenvolver soluções interessantes para as situações complexas das suas vidas e elaborado os meios para promoverem o seu desenvolvimento. Terão aperfeiçoado formas de se alimentarem, vestirem, abrigarem e cuidarem das suas feridas físicas, procedendo assim à invenção do que viria a ser a medicina. Quando a dor e o sofrimento eram causados por outros - por aquilo que sentiam pelos outros; pela forma como entendiam o que os outros sentiam por eles - ou quando a dor era causada pela avaliação das suas próprias condições ao confrontar, por exemplo, a inevitabilidade da morte, os seres humanos terão usado os seus recursos individuais e coletivos, cada vez mais vastos, e inventado uma variedade de respostas, desde as prescrições morais e os princípios de justiça aos modos de organização social e governação, às manifestações artísticas e crenças religiosas.

 

   Quem for capaz de limpar o seu olhar de forma a poder simplesmente contemplar o mundo, este universo que nos rodeia e em que necessariamente nos encontramos e deveríamos encontrarmo-nos, saberá perceber, sem comer do fruto proibido, maçã, romã, figo ou hardcore, que todas as propostas de eterna juventude, fatal beleza física (?) e "cool atraction",  de garantida riqueza material, de ótimos lugares celestes comprados por indulgências (sendo este um produto em manifesta perda de quota de mercado e valor bolsista) valem hoje tanto como pretensos títulos vários e prerrogativas, isto é, como Jesus ensinava e ainda hoje ensina : zero. Limpas as peneiras, o sol ilumina a nossa interrogação fundamental: como é que, ao confrontar, por exemplo, a inevitabilidade da morte, os seres humanos...inventaram uma variedade e respostas desde as prescrições morais e jurídicas às artes e às crenças religiosas?

 

   Numa entrevista, muito bem conduzida por Filipa Melo, à revista LER, Frederico Lourenço, a dado passo, afirma: O Antigo Testamento dá-nos respostas completamente antagónicas, relativamente a uma pergunta fundamental: o que temos de fazer para agradar a Deus? Os profetas eram homens que consideravam os sacrifícios em honra de Deus completamente inúteis. [Lembro-te de que essa conversa vinha por ocasião da recente publicação da tradução, pelo F. Lourenço, dos livros proféticos da Bíblia, diretamente da versão grega conhecida por Septuaginta]. Entendiam que não é isso que Deus quer dos seres humanos. Ao passo que, por exemplo, nos textos mais dogmáticos do Pentateuco (Levítico ou Deuteronómio sobretudo) está muito claro que aquilo que Deus quer de nós é que lhe prestemos sacrifícios e que estes só podem ser realizados no Templo de Jerusalém. Não podemos fechar os olhos a estas diferentes questões, abordagens e diferentes formas de entender Deus. A meu ver, põe o tradutor - que se esforça por nos trazer os textos que verte para português tanto quanto possível bem dentro da respetiva circunstância histórica e linguística - a questão no seu sítio. De certo modo, ele fica bem próximo da intuição íntima de Silvye Germain quando ela diz o que me atrai num pensamento é a libertação que ele traz, o espaço interior que nos abre, o crescimento de vida que suscita. E ambos se encontram, afinal, nesse esforço coletivo e vital dos seres humanos para, como disse António Damásio, encontrarem respostas. Pessoalmente, fui buscando abrir caminho pelo sentimento da mágoa, e da mágoa sentida como comunhão.

 

   O que me magoa não é apenas ofensa, insulto ou agressão recebida, é igualmente toda e qualquer que, com maior ou nenhuma intenção, eu tenha infligido. A mágoa, Princesa de mim, nunca é só minha nem só tua, tampouco a alguém exclusivamente dói. É-nos comum, sempre todos nos magoamos - assim a pensossinto como recusa de regresso à culpa inútil, à escusada violência, à primitiva desumana condição... Os profetas antigos e Jesus Cristo anunciaram que o agrado de Deus não é o sacrifício, mas a misericórdia. E esta não é "ter pena de", é querer bem, socorrer quem nos ofende como quem ofendemos, sofrer a mágoa como vocação à liberdade para o bem comum. 

 

   Chegou-me há pouco, pelo correio, o Jesus - L´Encyclopédie (Albin Michel, Paris, 2017) e corro a ler o texto que Joseph Doré, o diretor da obra, pediu a Sylvie Germain, de quem te falava acima. Traduzo-te apenas o trecho final:

 

   Tudo está cumprido - a missão divina, a aventura humana, a secreta e sublime revolução da salvação tecida pelo Verbo nos corações e nos espíritos que dela ainda não ganharam consciência. Que aqueles que têm um ouvido interior escutem o inaudito apelo neles lançado por essa revolução.

 

 

   Tudo está consumado - o sofrimento, a agonia, o pavor perante os abismos de desconhecido que por toda a parte se vão abrindo. Os zero dilatam-se, rasgam-se. O órfão de seus irmãos humanos e de seu divino Pai entrega o seu espírito nas mãos desse mesmo Pai, por amor de uns e do Outro. A morte agarra o Vivo.

 

   Retorno. Tudo pode começar - o insuspeito, o inesperado. O Vivo agarra a morte, ceifa-a, arruína-a. Todos os zeros explodem, mudam-se em infinito, em movimento, em energia nova. O espírito do Filho do homem depositado nas mãos do Deus ausente vai buscar a esse poço vazio a luz na sua fonte, a vida na sua eternidade, e põe a nu o esplendor do desnudamento de Deus. Esplendor de um mistério desvendado enquanto mistério, para sempre assim e sempre irradiando a humanidade de espanto e de interrogações, de carência e de desejo.

 

   De mágoa, digo-te eu, prenhe da esperança da alegria.

 

   E recordo Mestre Eckhart, de quem tanto te falei já. Mas, nesta pilha de correio que uma carrinha trouxe até este apagado destino, acho também Le Figaro de ontem, 5ª feira, 23 de novembro. Na página dedicada às ideias, encontro um artigo de Charles Jaigu, resenha da versão francesa (L´Ordre Étrange des Choses) do tal último livro de António Damásio. Respigo logo uma legenda a uma fotografia do cientista português que, com o inevitável chauvinismo gaulês [no Monde des Livres, ele até é apelidado de le neurologue américain...], se escreve: «Les sentiments tiennent l´esprit informé du corps, ils sont les adjoints du "dur désir de durer" - António Damásio, citant Paul Éluard»... Do poeta francês, Princesa, é só o verso "duro desejo de durar", que o texto do artigo informa ter estado afixado por Damásio na sua banca de estudante... Tal não prejudica, todavia, a resenha feita, que, aliás, refere que o autor português exigiu que todas as traduções retomassem esse belo título : A Estranha Ordem das Coisas.  E diz porquê: Porque se trata de mostrar como, na verdade, é muito estranho o curso da vida que, desde o primeiro começo, reitera obstinadamente a mesma estratégia de evitar a dor e sobreviver a qualquer preço. Damásio dá a essa coisa estranha um nome que os estudantes de medicina conhecem bem: homeostasia, ou como os seres vivos perseveram no seu ser o mais tempo possível. Esse fenómeno químico começa com o aparecimento das primeiras bactérias, há quatro mil milhões de anos. Desde logo reagem a sinais positivos ou negativos. Damásio batiza essas condutas de atração ou de repulsão, «emotividade» primitiva das células. Desses primeiros tijolos decorrerão os sistemas nervosos, e depois, nos animais e nos homens, a capacidade de cartografar o mundo, de o representar de maneira reflexiva graças à produção de imagens neuronais. Ao jeito dos filósofos vitalistas, este livro medita sobre as estratégias de regulação da vida, que se aguenta mesmo quando uma catástrofe exógena, meteorito ou glaciar, elimina 95% dos seres à superfície da terra. Afinal, talvez reencontremos, pela senda de outra disciplina científica, o mesmo impulso de cosmogénese que Teilhard de Chardin defendia. Se não fui o primeiro, terei sido certamente dos primeiros tradutores de Teilhard para português, há mais de meio século. Tal como verti, na nossa língua, obras várias sobre o autor de La Place de l´Homme dans la Nature. E para sempre guardei essa crença numa "lei" da complexidade crescente, e no advento da noosfera. A perspetiva biológica do pensarsentindo humano que António Damásio explora e investiga não tem de se pronunciar sobre a vida post mortem, apenas analisa essa espantosa realidade que é a perseverança do ser, que arranca com as mais primitivas e simples formas de vida até à formação de culturas e religiões. Lembro o que ele escreve a páginas 241 da 1ª edição portuguesa, pelo Círculo de Leitores - Temas e Debates (2017) da obra citada:

 

   No seu começo a medicina não estava preparada para lidar com os traumas da alma humana. No entanto, podemos bem dizer que as crenças religiosas, os sistemas morais e a justiça, e a governação política visavam, em grande medida, esses mesmos traumas e tinham como objetivo a sua recuperação. Concebo o desenvolvimento das crenças religiosas como estreitamente relacionado com a mágoa provocada por toda a espécie de perdas pessoais, perdas que obrigavam os seres humanos ao confronto com a inevitabilidade da morte e com o sem fim de maneiras em que ela pode surgir... E ainda te cito outro passo do livro, que encontrei nas páginas finais, nos agradecimentos do autor: ...certos sofrimentos específicos são, com frequência, o incentivo para criações pessoais. Falávamos sobre um livro curioso ("L´Atelier de Alberto Giacometti", de Jean Genet), uma obra que Picasso considerou ser a melhor alguma vez escrita sobre a criação artística. As palavras de Genet - «A única origem da beleza é a ferida singular, diferente em cada um, oculta ou visível» - associam-se perfeitamente à ideia de que o sentimento é um motivo-chave do processo cultural.

 

   Assim também, Princesa de mim, a minha mágoa e a esperança de a ver frutificar alegria, é o solo em que se enraíza a minha fé. Parafraseando Genet, a origem da minha fé é a ferida singular de andar expulso do Paraíso, diferente em cada um, oculta ou visível... Ou, de outro jeito, relendo São Paulo: Sim, vou-vos dizer um mistério: não morreremos todos, mas todos seremos transformados. Na verdade, deverá este ser corruptível revestir-se de incorruptibilidade, e este ser mortal de imortalidade... Se me aconchega essa partogénese paulina, implicitamente também terei de pensarsentir que a imortalidade será uma transformação de tudo: a morte é uma duração interrompida, só no tempo contado pode existir.

 

   Para entendermos melhor o que acabo de te dizer, recorro a um trecho do subcapítulo The Right to Happinness de The New Human Agenda, capítulo inicial do Homo Deus - A Brief History of Tomorrow ( Harvill Secker, 2016) do professor Yuval Noah Harari, em que o autor se interroga sobre a circunstância da imortalidade que cientistas hodiernos pensam tornar realizável nos próximos anos : Some 2,300 years ago, Epicurus warned his disciples that immoderate pursuit of pleasure is likely to make them miserable rather than happy. E prossegue e traduzo: A couple of centuries earlier Buda had made an even more radical claim, ensinando que a procura de sensações agradáveis é realmente a própria raiz do sofrimento. Tais sensações são só efémeras e insignificantes vibrações. Mesmo quando as experimentamos, não lhes reagimos com contentamento; mas antes ficamos a desejar mais. Daí que, sejam quantas forem as abençoadas e excitantes sensações que eu possa experimentar, elas nunca me satisfarão. A felicidade perfeita só fora do tempo se pode obter. Quando, sem duração, descansarmos em paz.

 

Camilo Maria  

Camilo Martins de Oliveira