CARTAS DE CAMILO MARIA DE SAROLEA
Minha Princesa de mim:
O jornal Público de 26 de dezembro de 2017 apresenta aos seus leitores o filósofo e informático italiano Luciani Floridi, cuja residência atual é a muito britânica universidade de Oxford, onde é professor de filosofia e diretor do laboratório de ética digital, ainda que a sua alma mater tivesse sido, primeiro, Roma, onde se licenciou em filosofia, e Warwick, onde se doutorou na mesma área. Mas, finalmente, foi já num pós doutoramento em Oxford que ele enveredou pela lógica, a informática e o digital... Só o título da sua última obra, recentemente publicada pela Oxford University Press, diz muito sobre a ocupação e investigação do seu espírito: The Fourth Revolution - How the Infosphere is Reshaping Human Reality. Ouso dizer-te, Princesa de mim, que é obra para trabalharmos - lendo e refletindo - como que numa perspectiva de paradoxal história do futuro, ao lado de outras, de que já te falei, como A Estranha Ordem das Coisas do António Damásio, ou Homo Deus de Yuval Noah Harari. Mas deixo-te lê-las primeiro, para conversarmos mais tarde. E a essa conversa trarei também essas novas investigações sobre a espiritualidade, o religioso, e as inerentes experiências pessoais, que vão sendo "cientificadas" sob a designação genérica de Neuroteologia ou, ainda, Biologia da Crença. Por hoje, regresso a meditações inspiradas por declarações de Luciano Floridi, na entrevista que, para o Público, concedeu a Diogo Queiroz de Andrade. E começo por transcrever textos das respostas dadas, precedidos, aliás, pela reprodução das perguntas pertinentes:
Estamos num processo em que a religião das novas gerações poderá ser a tecnologia. Yuval Noah Harari defende, no Homo Deus, que pode ocorrer um movimento religioso face à tecnologia, tornando como inevitável uma fé dominante nela... Isso não o preocupa? - Não há propriamente um problema quanto a uma tecno-igreja. Mas seria uma oportunidade perdida, creio. Se não percebermos quão extraordinários e simultaneamente limitados nós somos, estamos a desperdiçar o nosso capital de análise. Noutro contexto, gosto de me referir à humanidade como um erro lindo: e podemos olhar para a beleza do erro ou para a dimensão errada da beleza. Somos ao mesmo tempo capazes das coisas mais horríveis e das mais belas, o Holocausto e a mão de David na Capela Sistina foram feitos pela mesma espécie... Parece-me, nesse sentido, que é altamente limitador resignarmo-nos a almejar aquilo que somos e temos, eu gosto de acreditar que o Universo contém mais do que isso. O maior problema dessa tecno-fé ou tecno-religião é que coloca um limite na esperança, que é uma forma de a matar. Tem tudo que ver com a perspetiva: se eu for um passarinho numa gaiola enorme, eu posso não perceber que a jaula está lá - mas não é por não ter a perceção da jaula que ela deixa de existir. Acredito que essa perceção da esperança é um empobrecimento da humanidade. E há outro problema: essa forma de pensar é também frustrante em termos de ambições. Algumas das maiores realizações da humanidade ocorreram porque tivemos sempre esperança em algo mais e nunca nos contentámos com o que existia. O consumismo trata sempre de reduzir o espectro da esperança ao objeto ou produto que está em frente aos nossos olhos. Se é comparável, então está no limite da esperança - se não é comparável, então não tem valor. Assim, o que é economicamente adquirível é o que deve estar dentro do meu limite de esperança e nada mais - acho que é uma tristeza pensar assim. Outra expressão desse pensamento é a afirmação de que toda a política é económica. Não é! Há tantas coisas mais: as finanças de um país são um meio para um fim, não são um objetivo em si mesmas...
A sua conclusão sugere que a humanidade deve caminhar para uma teologia da esperança, certo? - Ter esperança implica acreditar em algo que não podemos provar nem testar. Implica um salto de fé, implica simplesmente acreditar sem ter demonstrações que ajudem nessa crença. Seria bom poder injetar alguma dose de racionalismo nessa interação que fazemos com a ideia de algo transcendente. Nesse sentido, a minha proposta é a de que não se abdique da racionalidade, antes pelo contrário, se use mais racionalidade e se faça mais reflexão. Em primeiro lugar, ter esperança de que Deus exista é muito diferente de acreditar em que ele existe. Aliás, se eu acreditar, quero ter a certeza daquilo em que estou a acreditar. Mas não preciso de chegar aí; preciso só de aceitar a hipótese de que existe um valor transcendente no Universo - algo mais do que aquilo que é fisicamente palpável. Isto tem muito mais que ver com esperança do que com crença. E é aqui que a esperança se torna uma suspensão da crença. Eu não posso acreditar e decidir sim ou não pela existência do divino, porque não tenho provas para o fazer. O que eu posso é desejar que sim, que exista, até porque o mundo faria muito mais sentido. E seria muito bom para a sociedade, porque nos permitiria ser ainda mais ambiciosos nos nossos objetivos - indo muito para além da sociedade consumista em que estamos...
E é por isso, por essa superação do ser humano, que um homem que não acredita em Deus se preocupa com a existência desse mesmo Deus? - Sim. Mas note que não é uma preocupação. Eu não acredito em Deus - eu espero é que ele exista.
Antes do mais, ocorre-me essa espécie de ameaça à liberdade - e dignidade - do ser humano que tem vindo a ser e a tornar-se, mais ainda, o consumerismo. Recordo as crianças, adolescentes e jovens - hoje patologicamente amarrados por redes eletrónicas várias - que a "economia" consumista e a desresponsabilização de famílias e escolas lhes propõem ou oferecem como sucedâneas do carinho e conforto humanos que deveriam ser-lhes próximos. [A Maria Benedita Monteiro, como já te reportei, psicóloga agnóstica de alma evangélica (essa que não descansa a procura da boa nova), pedia-nos que pensássemos em como ajudar as gerações vindouras a construir o futuro melhor...] É certo que, em tempos passados, noutras circunstâncias sócio económicas, culturais e mentais - para não falarmos das tentações totalitárias de poderes políticos, sinagogas, igrejas, etc. - a religião poderia ser apontada como "ópio do povo". E, de certo modo, foi ou tentou ser: no caso da Igreja Católica, que é a "minha", sobram exemplos dessa fraqueza (ou pecado, chama-lhe o papa Francisco, a pedir perdão), mas também nunca faltaram os testemunhos evangélicos de pastores, missionários, padres operários, teólogos e leigos, até excomungados, que se mantiveram firmes - enfrentando, sem romper a comunhão cristã, a sua própria "hierarquia" - testemunhos vivos, apesar das ameaças e execuções, de que a sua fé não era servidão mas um passo no caminho da libertação dos homens. Passo adiante, quis apenas recordar-me contigo de que houve mal e bem, mas talvez sejam hoje outros os mais letais "ópios do povo"... A julgar pelos alarmes lançados pela OMS, médicos e psicólogos, pelo mundo fora, os ópios dos povos, hoje, parecem ser tão preocupantes nas sociedades liberais capitalistas como nas estatais capitalistas (China). Pensa, por exemplo, nos jogos vídeo e no número crescente de dependentes que eles vão gerando, alheando-os da realidade do mundo e das pessoas, remetendo-os, até, a estranhas formas de solidão e autismo.
No nº1 do Nouveau Magazine Littéraire - que se apresenta com o significativo título de "uma viagem ao coração das novas utopias" - Michel Onfray, ateu militante de quem já várias vezes te falei, escreve um longo artigo intitulado La Boétie, le véritable insoumis. Para marcar bem, e bem a seu (dele Onfray) gosto, a provocação, começa assim (traduzo): "Sede resolutos a não mais servir, e eis-vos livres". O jovem autor do "Discours de la servitude volontaire", grande amigo de Montaigne, transmitiu o modo de emprego: para não mais padecer o poder do tirano, basta não lho dar mais! Este pensamento radical prefigura uma esquerda libertária. Exemplar para os movimentos anarquistas que se seguirão, ela quer crer que o cidadão, por força de vontade, poderá libertar-se da submissão à qual ele próprio está obrigado... Não vou repetir-te os exemplos de rebelião intelectual que Michel Onfray respiga do passado, noto apenas que se esquece de S. Tomás de Aquino que, já no século XIII, e sempre em demanda da tal racionalidade de que Floridi acima fala, justificava teologicamente o direito de revolta contra os tiranos... Mas traduzo um trecho que me veio a talho de fouce, sob o subtítulo que Onfray lhe dá, Une Ébauche du Consumérisme:
Não haja dúvida de que hoje La Boétie acrescentaria [aos gladiadores e jogos circenses] o circo mediático e a tirania dos ecrãs, a ditadura da televisão com os canais de informação em contínuo ou os serões ditos de divertimento, a proliferação do cinema como arte de fabricar o inverosímil com o que é falso, a das séries televisivas que fazem a mesma coisa mas pior, o turismo de massa e o lazer generalizado, as festas obrigatórias e os campeonatos mundiais de futebol, ou os jogos olímpicos e outras maneiras de manter o respeitinho no povo através do divertimento - no sentido pascaliano da palavra... ...É evidente que temos de ver aí o esboço do que se tornará, no século XXI, a sociedade de consumo com tudo o que lisonjeia o egotismo e o narcisismo...
Vai longa a carta, de São Tomás recordo sempre, muitas vezes, esse princípio do raciocínio que é a necessidade de saber diferenciar para poder entender: em plena Idade Média, afirma-se um espírito analítico, curioso. E também lembro que, ainda muito novo, o depois chamado Doutor Angélico, frequentemente perguntava o que é, quem é Deus. E, muitos anos depois, no termo de uma obra monumental, ao longo da qual foi procurando a razão intelectual do Deus que a sua fé nele animava, dessa suma do saber filosófico e teológico, que tanto trabalho lhe dera e tantas provações custara, apenas soube dizer que tudo aquilo era palha... Retomo aqui um comentário do grande teólogo dominicano holandês, professor na Universidade de Nimega, como também noutras, entre as quais Berkeley, a passos da Summa Theologiae (I, q.1 e II-II, q.1) de Tomás de Aquino (1225-1274):
Tomás pergunta se o ato dos crentes se refere apenas ao próprio Deus, ou se a fórmula da fé, como por exemplo um dogma, também faz parte do objeto da fé. Esta questão é sugerida pela tradição cristã da "teologia negativa", que se funda no carácter inexprimível da realidade de Deus. Não temos nenhum conceito adequado para falar de Deus, a nossa linguagem é e permanece limitada, uma linguagem terrestre para coisas terrestres. Deus é o inexprimível: nós não sabemos o que é Deus em si mesmo; dele captamos apenas um esplendor fraco através do mundo criado e no decurso da nossa história no mundo, história feita de acontecimentos felizes e de tragédias. Não é só o Deus incognoscível, mas também as expressões ou os dogmas sobre Deus que pertencem, à sua maneira ao objeto da fé. Isso não implica porém, de modo nenhum, que devam ser tratados em pé de igualdade. A auto revelação de Deus é dada em experiências humanas interpretadas. Nunca temos acesso à "Palavra de Deus" de modo imediato. Estritamente falando, a Bíblia não é a Palavra de Deus, mas um conjunto de testemunhos de fé de crentes que se situam numa tradição particular da experiência religiosa. É por isso que, no uso litúrgico, utilizo o menos possível a conclusão solene "Palavra do Senhor", precisamente porque Deus nunca fala assim. São crentes que falam. Poucos exegetas, ou talvez nem um, poderão hoje garantir e provar que foram efetivamente pronunciadas por Jesus, por exemplo, as palavras que as narrativas evangélicas lhe atribuem. Afinal, elas foram registadas por escrito décadas depois da vida de Cristo, são memórias que tradições orais foram comunicando. Pelo que, todavia, não deixam de ser testemunhos de fé. A minha fé é a certeza de uma presença descoberta, o Tudo em todos, presença tão imensa que - tal como Tomás de Aquino, teólogo e santo, coisas que eu não sou - não tenho, na minha limitação, capacidade alguma de a definir e codificar.
Talvez pela mesma razão - essa presença sentida do mistério de Deus em mim - eu me sinta tantas vezes mais próximo daqueles que andam atrás dela, tanto mais quanto, como permanente desafio, esse mistério é uma esperança aberta, do que de muitos crentes que pretendem encerrar a imensidão de Deus em "revelações", preceitos, ditos, códigos e rituais, cujas raízes históricas e culturais vão sendo cada vez mais abundantemente identificáveis. Para não falar nos exercícios espirituais que garantidamente lhes conquistarão a celeste eternidade... Não nego, não discuto, não censuro outras experiências subjetivas, digo apenas que essas todas, como as minhas, são ainda só representações que devemos respeitar.
Neste final 2017, escrevendo-te a minha última carta deste ano, volto a recordar a intuição metafísica de Espinosa desse empenho inato de qualquer ser em perseverar sendo, que levou António Damásio a pensar como "o organismo vivo está construído de forma a manter a coerência das suas estruturas e funções contra inúmeras imprevistas ameaças à vida". O mesmo neurologista português que, quase uma década antes do seu Looking for Spinoza, já escrevera em Descartes´Error: Emotion, Reason and the Human Brain (Grosset/Putnam, New York, 1994): ...nem angústia nem exaltação pelo facto de que o amor ou a arte possam ser desvalorizados pelo entendimento das miríades de processos biológicos que os tornem possíveis. É precisamente do oposto que se trata. O nosso sentido do maravilhoso devia aumentar e extasiar-se perante os mecanismos complicados que tornam tal magia possível. Sou assim levado a dar a volta e fechar o cinto que abri falando-te, Princesa de mim, de Luciani Floridi, recorrendo agora a Joaquim Fernandes, diretor do Centro Transdisciplinar de Estudos da Consciência da Universidade Fernando Pessoa, no Porto (em Deus no século XXI e o futuro do cristianismo, obra coletiva, donde também extraí o trecho de frei Eduardo Schillebeeckx que te transcrevi, publicada, sob coordenação do padre Anselmo Borges, por Campo das Letras, Porto, 2007). Define ele assim a "neuroteologia": De uma maneira simplista, podemos dizer que o objeto da Neuroteologia é cartografar quais as regiões do cérebro maioritariamente associadas aos estados visionários ou extraordinários da consciência e que especificamente se associam às mudanças de perceção do mundo interior e exterior. Estudos recentes identificam com alguma segurança os circuitos neuronais afetados à oração e meditação, às práticas rituais ou à música sacra. Vemos, assim, a emergência de uma sinergia entre a natureza biológica do ser humano e a teologia, que possibilita a indução intencional de experiências místicas e consequente avaliação científica, e abre, fatalmente, campo a novas questões sobre a natureza intrínseca da nossa consciência e o papel da espiritualidade na nossa adaptação e evolução enquanto espécie. Nesse sentido, é possível que a teoria da informação tenha aqui uma palavra a dizer, não sendo ousado prever que um eventual descerrar dos véus que obnubilam o nosso religare com a realidade numenal, venha a revolucionar por completo o nosso modo de entender o universo e o nosso lugar no cosmos.
Nasci e cresci numa cultura em que, ao falar-se de revelação religiosa, ou divina, se carregava no acento tónico da objetividade de mensagens celestes transmitidas por intermediários veneráveis. Apresentavam-se erga omnes, em praticamente todas as religiões e escolas mágicas ou místicas de contacto com o invisível. Nos monoteísmos abraâmicos, a palavra de Deus e os ditos dos profetas eram tendencialmente tomados à letra, com pouca ou nenhuma leitura crítica (como hoje já largamente se faz sobretudo nas igrejas cristãs e várias escolas judaicas, menos ainda, mas surgindo, em escolas islâmicas), ignorando, desprezando ou combatendo os exercícios de distinção entre a mensagem e os seus invólucros sociais, históricos e culturais. Mas também sempre, mais ou menos inesperadamente, se ergueu esse impulso da interrogação do mistério, do mundo, da vida, do humano, para muitos logo identificado como demanda de Deus, para outros como aplicação da racionalidade. Hoje em dia, curiosamente, a nossa inquiridora peregrinação abre-se sobre encruzilhadas do sentimento religioso da intuição metafísica e da investigação científica, em todos os domínios. Talvez aí surja um caminho comum, já que, afinal, parece que biologicamente fomos programados para o mesmo. Por enquanto, esse mesmo é ainda perguntarmo-nos qual será o futuro do humano.
Já muitas, muitas, vezes te repeti, parafraseando S. Paulo, que a substância da fé são as coisas que hão de vir: Ora a fé é a garantia das coisas que esperamos, a prova das realidades que não vemos (Hebreus, 11, 1). Nesse sentido, e parafraseando Santa Teresinha (da minha Avó Teresa, como gosto de a lembrar) e Georges Bernanos, posso dizer que, se tudo é graça, a fé é a graça maior, enquanto dom que nos incita ao amor. Este é o grande mandamento, que nos é dado a título de vocação para o repetirmos. E não deixarmos ninguém lá fora.
Camilo Maria
Camilo Martins de Oliveira