CRÓNICAS PLURICULTURAIS
5. EM REDOR DA ABOLIÇÃO DA PENA DE MORTE EM PORTUGAL (I)
DA EVOLUÇÃO DO TRATAMENTO DO CRIME POLÍTICO AO CRIME COMUM
Em especial até ao fim do século XVIII, era usual na Europa, e também em Portugal, execuções particularmente cruéis em relação a crimes políticos. Tornou-se famosa a execução do francês Damiens, em 02.03.1757, por ter atentado contra a vida de Luís XV, sendo condenado à morte. A sua execução e horrores punitivos que a consumaram, é muito conhecida por ser descrita, minuciosamente, no livro “Surveiller et Punir” (Vigiar e Punir), de Michel Foucalt. A obra começa pela transcrição de uma parte da sentença que condena o regicida a morrer de um modo especialmente cruel, com requintes de brutalidade, crueldade e desumanidade, que iam desde o corte da mão direita com que atentou contra a vida do rei, o corpo ser puxado e desmembrado por quatro cavalos, os membros e corpo queimados de várias maneiras, reduzidos a cinzas lançadas ao vento.
Para além do esquartejamento, havia outras barbaridades que iam desde o esventramento até serem queimados, ainda em vida, os órgãos reprodutores do condenado como símbolo de extermínio da família que tinha ousado atentar contra a vida do monarca.
Estes crimes políticos ou de alta traição, também conhecidos em Portugal como de lesa-magestade, eram tidos como graves e abomináveis para as Ordenações vigentes até 1852, que os antigos comparavam à lepra: “porque assi como esta enfermidade enche todo o corpo, sem nunca mais se poder curar (…) assi o erro da traição condena o que a commette, e empece, e infama os que de sua linha descendem, posto que não tenhão culpa”.
No que toca aos delitos políticos, há execuções célebres, no decurso da nossa história, como a dos assassinos de Inês de Castro, por ordem de D. Pedro I, mandando a um tirar o coração pelo peito e ao outro pelas costas. As mortes dos duques de Bragança e de Viseu, no reinado de D. João II, o primeiro degolado em Évora, o segundo apunhalado, em Setúbal, pelo próprio rei. Condizendo com a execução de Damiens, em França, pela mesma época, em Portugal, houve a execução dos Távoras, em 1759, com vários requintes, como a quebra de ossos em vida, além de enforcamentos, decapitação, corpos queimados, confisco de bens, por ordem do Marquês de Pombal, acusados de estarem envolvidos num atentado contra o rei D. José I. A execução de Gomes Freire de Andrade, enforcado e queimado, em 1817, no Forte de S. Julião da Barra, acusado de ter participado numa conspiração contra a vida do marechal inglês Beresford, na sequência das invasões napoleónicas e aquando do domínio inglês com a Corte no Brasil.
A punição com suplícios abomináveis no corpo dos condenados, suprimindo-lhes a vida, era um espetáculo. Gradualmente a execução pública passou a ser vista pela negativa, como uma fogueira que reanimava a violência.
Segundo Foucault:
“A pouco e pouco, a punição deixou de ser um espetáculo. E tudo o que tivesse a ver com o espetáculo adquiriu cariz negativo. Como as funções da cerimónia penal deixavam de ser vistas, suspeitava-se que esse ritmo que “concluía” o crime mantinha com ele alguns laços de parentesco: que o igualava ou até o superava em selvajaria; que acostumava os espetadores a uma ferocidade da qual deviam ser afastados; que lhes mostrava a frequência dos crimes; que associavam o carrasco a um criminoso, os juízes a assassinos; que invertia no último momento os papéis; que fazia do supliciado um objeto de piedade ou de admiração. Há muito que Beccaria dissera: “O assassínio que nos é apresentado como um crime horrível, vemo-lo ser cometido friamente, sem remorsos” (ob.ª citada, edições 70. 2013, p.ª 15).
Esta supressão do espetáculo, anulação da dor e abolição da pena de morte ganhou, em primeiro lugar, um especial tratamento e uma maior benevolência em relação à criminalidade política, com o ideal liberal em pleno século XIX. A que acresce a fama de uma certa aura heroica e romântica que rodeava os criminosos políticos, tidos como pessoas que se revoltavam contra a opressão, de que o título da obra literária “Felizmente Há Luar”, de Luís de Sttau Monteiro é bem sugestivo, ao evocar a morte de Gomes Freire de Andrade, aclamado como herói pelos revolucionários do liberalismo, três anos depois. Também a obra “Mariana Pineda”, de Federico García Lorca, levada ao palco pelo teatro “A Barraca”, em Lisboa, em 2017, aquando das celebrações contra a pena capital, se centra numa mulher, condenada à morte, pelo garrote, tida como heroína da Liberdade e da resistência liberal contra a tirania e um regime opressor. Goya, no seu quadro Os Fuzilamentos de 3 de Maio de 1808, memoriza o heroísmo dos espanhóis fuzilados após a revolta contra os opressores franceses, em que a vítima iluminada, na sua pose, lembra Cristo crucificado. Evoco, a propósito, a Carta a meus filhos sobre os fuzilamentos de Goya, de Jorge de Sena: “Por serem fiéis a um deus, a um pensamento, a uma pátria, uma esperança, ou muito apenas à fome irrespondível que lhes roía as entranhas, foram estripados, esfolados, queimados, gaseados, e os seus corpos tão amontoados anonimamente quanto haviam vivido, ou suas cinzas dispersas para que delas não restasse memória”.
Foi este apelo e sensibilidade a uma maior clemência na repressão da criminalidade política, que levou à abolição da pena de morte para os crimes políticos em França em 1848, antecipando-a à dos crimes comuns.
Ligada a esta ideia de “dignificar”, “heroicizar” e “romancear” o criminoso político, por confronto com o criminoso comum, também em Portugal foi votada, na Câmara dos Deputados, em 1852, a abolição da pena de morte para os delitos políticos. Quinze anos antes da abolição da pena de morte em relação aos crimes comuns, só abolida em 1867. A exposição sobre os 150 anos da abolição da pena de morte para os crimes comuns em Portugal, no Colégio da Trindade, em Coimbra, de julho a novembro de 2017, deu-nos uma perspetiva atualista do padecimento humano dos condenados e do pioneirismo intelectual e jurídico dos abolicionistas, que abordaremos em próximo texto.
23.01.2018
Joaquim Miguel De Morgado Patrício