CARTAS DE CAMILO MARIA DE SAROLEA
Minha Princesa de mim:
Não sei por quê, tem-me dado, nestes dias de incerto inverno - diria mesmo que de aparições de sol zangado com a grisalha de um céu persistentemente ameaçador de desejada e abençoável chuva, mas tão teimosamente seco de lágrimas -, tem-me dado, dizia, para ouvir, cerrar os olhos e escutar, música tradicional japonesa, essa dita sô, dedilhada num koto, instrumento que veio para o Japão na segunda metade do século VI, então para prazer exclusivo da corte imperial de Nara. São treze cordas tensas sobre um tronco covo de paulónia, e dedilhadas num jeito mais seco, menos gemente do que as das guitarras portuguesas, menos ressonante também, pois que a caixa de madeira está deitada ao comprido no chão e a tocadora, de kimono vestido, sentada sobre os joelhos, à moda nipónica. Havendo canto, é também ela que lhe dá voz humana. Se me lembro bem, os portugueses, no século XVI, não lhe achavam grande graça, salvo raríssimas exceções. Eu gosto, não tenho habituação, mas a essa música recorro para introito a uma meditação: acalma-me e desperta-me um qualquer segredo de mim.
Num dos meus tempos de Japão, creio já tê-lo contado, aconteceu-me ser convidado pela idosa e venerável aristocrata japoa, minha senhoria, para ir jantar a casa dela e partilhar a sua arte sô. A senhora já passara dos oitenta, mas não lhe falhavam os dedos nas cordas, nem a memória da música. A recordação de sons antigos, de ritmos e pausas ancestrais, enchiam-lhe a alma, convidavam-na a meditá-los com outros, e até o estrangeiro bárbaro que eu era se deixava mansamente entrar em comunhão...
No isolamento campestre em que hoje vivo, tenho certamente de desafiar todos os dias um qualquer silêncio menos benfazejo. Mantenho, Princesa de mim, esse meu atavismo de escutar diariamente umas horas de música, de dialogar com os livros que me acompanham, mas sobretudo tenho aprendido a falar com o silêncio, percorrendo recordações que são rostos humanos, pessoas que me privilegiaram episódios passados. Não sei porquê, escrevo-te eu, Princesa, ao abrir esta carta, e repito de outro jeito: Não sei porquê, não são aparições, nem visões, são companhias, encontros lembrados, amizades fiéis.
E vendo cada uma dessas caras, dizendo cada um desses nomes, convivo íntima e reconhecidamente com todos, tanto com esses que talvez me telefonem ou escrevam hoje, amanhã ou depois, como quanto com todos aqueles que se diz que já morreram e eu sinto vivos no coração de Deus.
Ó Princesa, Princesa de mim: este mistério de sermos em relação é levado da breca, não achas?
Camilo Maria
Camilo Martins de Oliveira