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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

UM LIVRO RECENTE SOBRE ÓPERA E TEATROS DE ÓPERA

 

Recentemente chega-nos um estudo de Antero Palma-Carlos, intitulado “Os Médicos, a Ópera e a História” que precisamente evoca e descreve o relacionamento temático, literário e musical da ciência e da atividade médica e clínica com a criação e o espetáculo de ópera: livro e tema de facto abrangente e em tantos aspetos original, num meio de certo modo restrito como é o meio operístico, em Portugal.

 

E no entanto, desde logo se refira a formação e atividade médica do autor, mas também do prefaciador Álvaro Malta, ele também médico e com uma notável carreira nacional e internacional de cantor, sobretudo mas não só de ópera, como ao longo de anos tivemos ocasião de acompanhar.

 

Mas o autor e o prefaciador não são os únicos profissionais ou estudantes de medicina ligados à ópera e ao canto clássico/operístico em Portugal. Entre outros, o livro cita Mário Moreau, historiador e diretor do Teatro de São Carlos, Machado Macedo, Presidente da Fundação São Carlos, Maurício Bensaúde, Tomás Alcaide, Kátia Guerreiro e ainda Matos Ferreira, Aires Gonçalves, Silva Santos e ainda outros mais.

 

Recordo em particular e a título pessoal Tomaz Alcaide, pois durante anos tive ocasião de assistir, no Teatro da Trindade, aos ensaios e espetáculos da Companhia Portuguesa de Ópera, onde Alcaide desempenhou, com qualidade e brilho inesquecíveis, funções de diretor e encenador. Os ensaios eram efetivamente verdadeiras lições de arte musical e cénica, num testemunho vivo, direto e pedagógico da carreira ímpar de Tomaz Alcaide como cantor, durante décadas em toda a Europa.

 

Na perspetiva de análise histórica, o livro de Antero Palma-Carlos  contém referências desenvolvidas e evocações selecionadas de óperas, portuguesas ou não, relacionadas com temários, situações e personagens ligados à  história de Portugal ou à sociedade portuguesa: “D. Branca” de Alfredo Keil, “Vasco da Gama - L Africaine” de Meyerber, “Jessonda” de Spohr, “Il Guarany” de António Carlos Gomes, “D. Sebastien Roi du Portugal” de Donizetti, “LHotellerie Portugaise”  de Cherubini, “Blimunda” de Corghi, “Les Diamands de la Courone” de Auber.

 

Mas acrescenta mais uma larga dezena de títulos de obras de compositores portugueses e estrangeiros também apresentadas no Teatro de São Carlos e no Coliseu dos Recreios, de temário português, independentemente da nacionalidade do compositor. E essas, curiosamente, tanto englobam óperas como cantatas e composições diversas de música e cena, cobrindo os séculos de História e a variedade imensa de compositores e escritores, desde os citados mas também por exemplo escritores e compositores como Rui Coelho, Azio Corghi e José Saramago, Alfredo Keil, Marcos Portugal, Afonso Lopes Vieira, João Arroio, Auber, Barahona Fragoso e tantos mais!...

 

Antero Palma-Carlos remete para uma bibliografia abrangente, com destaque, no que se refere ao Teatro de São Carlos e ao Coliseu, para pesquisas de Mário Moreau. Faremos pois, em crónicas futuras, referência a estudos de Moreau e de outros autores que deste assunto se ocuparam.

DUARTE IVO CRUZ

A LÍNGUA PORTUGUESA NO MUNDO

 

XXXII - GLOBALIZAÇÃO E PODER LINGUÍSTICO

 

Os avanços técnico-científicos permitiram uma globalização de vizinhança do mundo que nos rodeia. 

 

Em alinhamento com a globalização económica, é promovido o uso do idioma dominante nas empresas multinacionais que controlam a produção, operando em vários países, através da língua da casa mãe. Como no atual quadro económico há uma elevada probabilidade de essa sede ser num país anglófono, a língua da empresa é a dos países onde está a criatividade, a inovação e o dinheiro. É a língua do poder, de comunicação global e internacional por excelência.   

 

Essa hegemonia, nos tempos atuais, cabe à língua inglesa, tida como impositiva em termos económicos, políticos e culturais. Para os seus opositores tem como maior ameaça a sua caraterística “glotofágica”, ou seja, a sua capacidade para, ao mesmo tempo que se substitui às outras, provocar o seu enfraquecimento ou desaparecimento. Comparam-na a uma “erva daninha” que impede o desenvolvimento das outras, modificando de forma dramática o equilíbrio ecológico no que às línguas diz respeito.

 

Esse perigo aumenta quando o inglês encontra terreno particularmente favorável e permissivo para a sua implantação, em especial em países mais permeáveis, com uma fraca imagem de autoestima e de si próprios em termos económicos, políticos e culturais, onde o que é estrangeiro é que bom, sinal de desenvolvimento e prestígio. Onde se prima pela ausência de legislação que obrigue ao uso do idioma materno na etiquetagem e instruções dos bens importados, ou até, havendo legislação, esta não é aplicada, cumprida ou fiscalizada, não passando de meras exigências politicamente corretas.

 

Cimentou-se, simultaneamente, nas gerações mais jovens, a conceção de uma relação de sinonímia entre o que é moderno e vanguardista e a língua inglesa. 

 

Com reflexos no nosso país e idioma.

 

Exemplificando, tempos houve, entre nós, em que havia um maior gosto cinéfilo no uso da língua portuguesa.

 

Por exemplo, em 1977, aquando do início da saga da “Guerra das Estrelas”, de George Lukas. Hoje, em 2017, o último filme foi anunciado como “Star Wars”. Com a ausência de tradução, para português, de títulos de filmes e séries televisas como: “Mad Men”, “The Walking Dead”, “Newsroom”, “The Good Wife”, “Breacking Bad”, “The House of Cards”, “The Knick” e “True Detective”.

 

Esta omissão, pura e simples, da língua portuguesa, gradualmente extensiva a vários níveis, fere o nosso idioma como língua materna, comum, oficial, costumeira, de exportação e constitucionalmente consagrada, discriminando-a, pela negativa, no seu próprio berço e território materno.

 

Compreende-se e são aceitáveis nomes, expressões e frases em inglês, como língua global e veicular contemporânea mais internacionalizada, mas é incompreensível, inaceitável e inconstitucional que o nosso idioma, na nossa própria casa, seja simplesmente omitido, quando deve e deveria constar, obrigatoriamente, e em primeiro lugar, por óbvias razões e do mais elementar bom senso.

 

Mesmo que se tenha por objetivo, por exemplo, o reconhecimento a nível internacional de uma instituição de natureza científica, devido à certificação e prestígio internacional que o inglês aufere, tal omissão é injustificada, sendo certo que se não somos nós, portugueses e lusófonos, a defender a nossa língua, por certo, e por maioria de razão, não serão os outros a fazê-lo. Nada impede, justificando-se, que em conjunto com o nosso idioma, coexistam outros, mas nunca omitindo a nossa língua como língua materna e oficial, por costume e legalmente consagrada.

 

27.03.2018

Joaquim Miguel De Morgado Patrício

CRÓNICA DA CULTURA

 

A prisão: uma recruta dos desertos

 

Depois de passar a primeira porta de ferro todas as vozes surgem reconstituídas face aos ecos que se fazem sentir. Quase se soletram as energias vocais de cada um e que correspondem a um diferente sentir instantâneo de uma ocasião repentina que se torna única quando o prisioneiro se depara com alguém que não conhece. Depois outra porta de ferro, e também automática, fecha-se a estalar atras de nós, numa descendência justificada de portas, uma após outra: e o corredor: eis. O corredor, ou antes, os corredores, em anarquias controladas de ruídos e movimentos que se esgotam nos repentes que se não veem, mas se apercebem por um ar, por onde, cheios do bater de asas, aves mudas seguem sopros que não são mais do que turvas visões. De todos são conhecidos os nervosos movimentos que se esgotam ali, súbitos, sob o nosso olhar como numa rápida operação de cálculo. Mais fundo, mais dentro da cadeia, chega o momento de se escutarem os segredos enlouquecedores vindos de cada um, e, entende-se que já por ali se não tem tudo o que a vida entregou antes de iniciar o gesto que daria o cumprir da pena. Ali quedaram-se muitas migrações e emigrações em sombras impassíveis de desastres confiados a um luto. Os guardas prisionais, naquela cadeia de alta segurança, surgiam-me, um após outro, como se os conhecesse desde sempre naquela profissão de lenhadores de ruínas que naquela hora única me sorriam à minha descida do céu.

 

Sentei-me à frente dos trinta e poucos prisioneiros que queriam ter tido aquela tarde na biblioteca que todos estávamos a construir, e eis que o Diretor da prisão entra, senta-se ao meu lado, e num gesto de harmonia simples e de contentamento solto, apresenta-me aos prisioneiros e, generosamente, agradece a minha presença e sai, pois o muito a fazer não lhe permite ficar.

 

Olhei para todos em breve relance. Os dois guardas presentes perfilavam-se também para me escutar ou escutar orlas desconhecidas da minha perceção. Os despertadores das trovoadas, quis crer, adormeceram num ápice. E eu

 

Não me ocorre nada do que pensei dizer-vos. Deixo à vossa consideração as perguntas que me queiram fazer face aos livros que sejam do vosso interesse. Eu, apenas vos digo, que um dia, um dia normal como tantos outros, um dia em que não se pensa sequer na liberdade como jornada a conquistar, um dia, disse-me um médico

 

Pois o seu caso é complicado, o que resulta dos exames renais leva-nos a atuar com a urgência máxima. Será operada daqui a dois dias, ou seja neste dia de Natal próximo, e, o pós cirurgia, devo dizer, é doloroso. Vamos ver como se lida com isto.

 

Tremia por dentro do peito como não sei dizer. Aquele cancro condenava-me a um mês de vida. Prisioneira de tudo e de todos procurava danos que tivesse cometido e que justificassem aquela pena máxima a que estava condenada. Não tinha a mínima possibilidade de escolher livremente quem queria ser naquele dia. E digo-vos, pensei nessa dor inexplicável, irremediável e injusta que então senti, quando há pouco se fecharam atras de mim as grades elétricas que me deixariam enfim, ao vosso lado. Pensei nisto tudo quando nos corredores vos vi a todos impacientes a uma estranha dança deste viver, assim, aqui dentro. Agora mesmo sinto no ar abandonos, feridas sufocadas por maldições e os vossos olhares a escutarem-me e eu nada mais vos sei dizer, neste momento, em que queria muito que pensassem que se estou aqui é porque sobrevivi ao mundo de dor pelo qual passei. E acima de tudo sobrevivi sem me sentir enraivecida pelo que suportei, a impotência não me moldou, devo dizer-vos, mas a caça por um mundo melhor trouxe-me neste dia até vós. Assim aceitem os senhores esta estranha janela que vos quero dar. Não sei se fui clara, mas não fui poupada neste meu tempo de viver, creiam, e tive de jogar às cartas da vida numa estúpida crença de que elas não possuíam o meu trunfo. E afinal, não possuíam mesmo: estou aqui, com as minhas fraquezas e as minhas possibilidades.

Obrigada.

 

Um guarda trouxe-me, num velho carro celular (não havia outro) até Campanhã. Recordo ter achado curioso experimentar a limitação e a incomodidade do dito. Viemos lado a lado a conversar numa estranha admiração mútua. As condições de trabalho que me explicou funcionarem naquele estabelecimento prisional, bem me consciencializaram para as pessoas que lutam pelas migalhas do pão de cada dia, bem cientes de que já viram demasiadas verdades. Vivemos num mundo arrasado e apenas aqueles que têm os corações arrasados, sabem que também se marcha por entre os destroços. Não esquecerei o diálogo com aquele guarda e muito me agradou o que ele não disse.

 

O comboio da noite, após várias horas, trouxe-me até Lisboa. Durante a viagem fui pensando uma a uma em todas as perguntas que me fizeram os prisioneiros e nas respostas que fui dando. O que se mostrou mais intelectual de entre todos e com Alberto Caeiro entre as mãos disse-me: a imperfeição absurda da vida é irremediável: escrevo isto muitas vezes pois cada vez fica mais claro. E um outro que se levantou para que a sua voz se ouvisse bem alto: sabe eu tenho um cão que olha para mim e me diz coisas que eu gostaria de ouvir de alguém. E eu, ali naquele comboio, cada vez mais me convencia que cada um de nós parece estar mais bem treinado para sacudir a água do capote. Também somos sobrecarregados connosco próprios, pensei, agrade-nos ou não a ideia. Lembrei-me de Yourcenar quando perguntava: existirá alguém tão insensato que morra sem conhecer a sua prisão? O que temos é, inevitavelmente, a opção de escolher em tudo o que fazemos, mas um homem sensato tem de ser um investigador de almas que saiba da luta vã contra a nossa insignificância. O seja feita a vossa vontade, é o saber recompor as horas fragmentadas e formar com elas uma harmonia, uma possibilidade em relação a cada novo dia. Talvez a compreensão deste facto nos permita acarinhar os desastres e tornarmo-nos humanos, dirigindo-nos ao mundo como indivíduos. Mais pensei, por muito que a ideia messiânica possa ser atraente, a simples crença na fraternidade de uma sociedade pode demonstrar compaixão em pessoas que ainda não saibam viver mais do que para elas. Então a tal janela que acima referi aos prisioneiros, pode abrir-se aos desejos e aos medos e podemos com ela libertar-nos da nossa prisão de portas automáticas que acolhem os recrutas de desertos, ainda que tudo isto seja, por óbvio, uma atividade interminável e estritamente pessoal. Olhei através da janela da carruagem em que seguia. Chovia torrencialmente naquela noite de inverno e muito de mim foi o que me uniu à tempestade. Do outro lado do corredor, e já muito bebidos, uns americanos festejavam ruidosamente a eleição de Trump. Voltei ao casulo dos meus pensamentos, tenho para mim que uma solidão quase inalienável faz parte de nós, e cada vez mais achei que a resistência aos nossos erros não começa com grandes palavras, começa com pequenos atos e saiba-se que quando nos entregamos, não temos ideia da dimensão da nossa entrega. Todos nos tornamos adultos tardiamente. Julgo ainda, que, só desaparecemos quando totalmente absorvidos pelo momento: quero dizer com isto que, naquele dia, quando não existi, foi afinal quando desfrutei de tudo o que me foi oferecido e ensinado.

 

Paços de Ferreira

Teresa Bracinha Vieira

A FORÇA DO ATO CRIADOR

 

Manuel Vicente e a forma que transporta vida.

 

‘Aquela coisa que a Denise Scott-Brown também diz: ‘O caos é uma ordem não revelada.’ Essa é a atitude perante o mundo. É dizermos assim: ‘Não sei se isto é feio nem se é bonito, mas sei que com isto vou fazer qualquer coisa que a mim me interessa, com a qual me relaciono.’, Manuel Vicente em ‘Reescrever o Pós-Moderno. Sete entrevistas.’, de Jorge Figueira, 2006   

 

Manuel Vicente (1934-2013) acreditava na possibilidade de poder dar vida a uma matéria inanimada através da criação. A arquitetura não é um mero objeto, é um constante diálogo, é uma extensão da relação do homem com o tempo e com o espaço. E por isso, a arquitetura, naturalmente implica o movimento do homem através da forma. E a arquitetura de Manuel Vicente abre o caminho do homem.

 

Arquitetura é assim, uma expressão formal de vida e que permite que a vida do homem que a usa, se cumpra. A forma deve transportar e dar vida, porque tudo o que é criado deve ajudar a preencher, a concretizar e a influenciar positivamente o homem.

 

Manuel Vicente manifesta um amor e um fascínio pela exuberância das formas mas concebe sempre uma arquitetura que se deixa apropriar – para ser estrutura e fundamento do homem, que deve sentir-se constantemente singular e único.

 

No Fai Chi Key (Macau, 1978-82) através de um sistema geométrico repetitivo, rígido e austero, Manuel Vicente desenha um bocado de cidade – a disposição dos blocos extensos e massivos possibilita a criação de ruas. De uma só vez, num gesto essencial, paralelo à península artificial, relaciona-se função e sítio. A síntese extrema trás a vontade de fazer o novo (ver Manuel Graça Dias em ‘Portugal. Arquitectura do Século XX’, 1997). É uma obra que, sobretudo revela uma disciplina capaz de se adaptar a uma realidade económica e social específica.

 

Manuel Vicente trabalha através de um processo de projeto aberto à mudança e ao inesperado, à invenção e à descoberta, à dúvida e à incompletude. Manuel Vicente acredita haver arquitetura em tudo. Acredita haver forma na linguagem dos poetas, dos pintores e dos músicos, nas imagens de um filme, nas memórias da infância – enfim em todas as inquietudes humanas. O conflito, o confroto fazem parte da evolução de uma ideia. É até mesmo possível criar arquitetura a partir daquilo que não se gosta – isto porque não há culpa no desejo de ver, pensar e fazer forma. Há sim plenitude no prazer da forma. E Manuel Vicente conseguia materializar este prazer em projetar através da obsessiva repetição, das alterações rítmicas de escala, da introdução alternada de arcadas e pórticos, da intromissão abstrata e da imposição de elementos artificiais imaginados.

 

Ana Ruepp

LONDON LETTERS

 

The Great Game is back, 2018

 

Admirável solidariedade ocidental para com Salisbury. Quer pela coordenação, quer pela extensão, quer pelo efeito surpresa, a expulsão simultânea de 136 diplomatas russos hoje ocorrida em 22 países entra na antologia das relações West-East.

É um resultado direto dos desempenhos da Prime Minister Theresa May no último European Council e do Foreign Office junto dos aliados, bem como da Trump card em Washington. À ilharga do êxito, o pré acordo EU-UK passa incólume em Brussels e na House of Commons. A indústria pesqueira protesta no Thames. — Chérie! Abondance de biens ne nuit pas. Manifestação contra o anti semitismo no Labour Paty. O líder RH Jeremy Corbyn apresenta desculpas à comunidade judaica enquanto despede Mr Owen Smith MP do Shadow Cabinet, após o adversário na corrida pelo bastão clamar por segundo euroreferendo. — Umm. Tell me who you go along with and I’ll tell you who you are. Uma sondagem da LBC aponta que, na opcional, os Brits preferem sair da Other Union a manter Northern Ireland no United Kingdom. Frescas imputações recaem sobre o overspendnig dos Brexiters. A gaulesa Gemalto ganha o contrato para produzir os novos passaportes britânicos. O terrorismo islamita mata em Trèbes (France). Um mandato de Madrid detém o ex presidente da Catalonia em Germany, incorrendo Signor Carles Puigdemont em pena de 25 anos por sedição. Nuvem arenosa do Sahara cai sobre Greece. Malaysia promulga a primeira “fake news law.”

 

 

Springtime at Central London, with sunny, dry and enjoyable weather. Dias interessantes também, por aqui e pelas redondezas! Observe-se Westminster. A praça e as suas estátuas assistem hoje a episódio da esfera do extraordinário. Por regra e costume, por aqui circulam as manifestações contra o Her Majesty’s Government desde tempos vindouros. Hoje, porém, ali se protesta contra The Most Loyal Opposition por iniciativa do Jewish Leadership Council. Os rabis apontam o dedo o Honourable Gentleman Jeremy B Corbyn como "figurehead of an anti-Semitic political culture." Nem as desculpas de última hora do líder trabalhista poupam o insólito de escutar um Lab MP após outro Lab MP, representativos dos círculos judaicos, a lamentar o atual naufrágio partidário. Os laços rasgam-se desde que Rt Hon Jezza compara Israel ao Isis, numa série de incidentes que culmina no apoio a um mural em East London que parece saído de goebbelsian imagination sobre o estereotipo da zionist world conspiration. O MP de Islington North declara-se "sincerely sorry for the pain which has been caused" e reconhece agora a existência de "pockets of anti-Semitism" no Labour Party. Para os seus apoiantes, porém, o pranto hebreu nada é senão a smear campaign em véspera das eleições locais ou antes manobra de diversão perante críticas à banca capitalista e aos colonatos de Telaviv em solo palestiano. As justificações da política semitíca de Herr Hitler, a negação do Holocaust e ensaios afins ficam fora da tela esquerdista amante do Hamas&co.

 

Dentro das Houses of Parliament vivem-se cenas igualmente memoráveis numa tarde balizada por esperados statements da Tory Prime Minister relativos ao European Council e à National Security, mas sobretudo marcada com as mensagens laudatórias a Mrs May após a sucessão de anúncios do desmantelamento de boa parcela da rede russa de espionagem às mãos das democracias ocidentais, de Germany, Spain e Latvia ao Canada, Australia e Iceland. Os sorrisos largos dos conservadores patenteiam a atmosfera. A abrir o debate sobre a eurocimeira, acelerando a agenda, o Lab Leader esbate anterior (e solitário) desalinhamento com Downing Street na resposta ao ataque químico em Salisbury: “On Russia, I welcome the international consensus that the Prime Minister has built; as I said two weeks ago, the most powerful response we can make is multilateral action. So I would like to place on record our thanks to the EU and other states for their co-operation with us.” RH Red Corbyn passa depois pelas queixas dos pescadores sacrificados na fase da implementação da Brexit e move a atenção para as tarifas aduaneiras que a Trump Administration prepara sobre as importações americanas de aço e alumínio. A boa disposição alarga-se já aos backbenchers nos dois lados da Commons Chamber, com a primeira linha trabalhista a denotar a baixa de RH Owen Smith, O próprio Shadow Northern Ireland Secretary apregoa autor e porquê da expulsão: "Just been sacked by @jeremycorbyn for my long held views on the damage #Brexit will do to the Good Friday Agreement & the economy of the entire U.K.”

 

Mas como explicar os mega acontecimentos do dia? Terá sido dos hamburguers em Washington, do champagne em Moscow, do baijiu em Beijing ou das artichokes que acompanham os pan-fried scalops em Brussels? Quem recordar a gélida forma com que a senhora é recebida no seu primeiro European Leaders Summit, após o Brexit vote no reino, terá de tirar-lhe o chapéu pelas artes de persuasão no concerto internacional. Quatro horas de uma dinner conversation em Brussels, e muitas mais ao telefone com chancelarias à volta do globo, bastam para unificar posições face à agressão do Kremlin por terras de Wiltshire, a par, é certo, da monitorização que os pares vão fazendo do tweet do President DJ Trump no tocante ao aço alfandegário – com London a negociar “a EU temporary exemption into a permanent exemption.” O mais fica nos anais da Cold War 2.0. e nos danos aduaneiros à economia chinesa. O No. 10 reagira ao Salisbury Incident reenviando “23 undeclared intelligence Officers” para Moscow. Segue-se hoje acordada, sequenciada e idêntica medida pelos aliados. Assim: Os USA expulsam 60 diplomatas russos, com fecho do crítico consulado de Seattle; Ukraine, 13; Canada, 4; France, 4; Germany, 4; Poland, 4; Lithuania, 3; Czeck Republic, 3; Italy, 2; Netherlands, 2, Spain, 2; Denmark, 2; Albania, 2; Australia, 2; Iceland, 2; Finland, 1; Latvia, 1; Estonia, 1: Romania, 1; Croatia, 1; Sweden, 1; Norway, 1. O rol das alianças continuará em crescendo. Os 18 países inicialmente mapeados pelo Foreign Office sobem já para 22, 15 dos quais são parceiros continentais. Outros 12 ponderam o que fazer: Austria, Belgium, Bulgaria, Cyprus, Greece, Hungary, Ireland, Luxembourg, Malta, Portugal, Slovakia e Slovenia. A geografia política importa.

 

Meanwhile, o número um da European Commission desafina estrondosamente da orquestra global com o envio de calorosas saudações ao neo Tsar pela vitória eleitoral e mais seis anos no Kremlin. A carta de Brussels para Mr Vlad Putin merece registo pelo muito que também evidencia quanto às controversial unchartered waters da Brexit e à hostilidade da máquina administrativa no Ares. Endereçada ao “Excellency, Mr President” e assinada com um “Yours sincerely”, datada de 20th March 2018, Monsieur Jean-Claude Juncker escreve mais do que o protocolo eurocrata recomenda: “I wish to convey my congratulations on your re-election as President of the Russian Federation. / I have always argued that positive relations between the European Union and the Russian Federation are crucial to the security of our continent. Our common objective should be to re-establish a pan-European security order. I hope that you will use your fourth term in office to pursue this goal. I will always be a partner in this endeavour. / I wish you every success in carrying out your high responsibilities." Alguém andará a ler pela partitura errada. Quem? — Well. Remember how Master Will echoes the orb complains of the servant Dromio about the treatment by his masters in The Comedy of Errors: — “Am I so round with you as you with me, / That like a football you do spurn me thus? / You spurn me hence, and he will spurn me hither. / If I last in this service, you must case me in leather."

 

St James, 26th March 2018

Very sincerely yours,

V.

A VIDA DOS LIVROS

 

De 26 de março a 1 de abril de 2018.

 

Adília Lopes acaba de publicar «Estar em Casa» (Assírio e Alvim, 2018), o terceiro volume de um conjunto autobiográfico, em que se integram «Manhã» (2015) e «Bandolim» (2016), numa série em que a originalidade e a imaginação da autora continuam a afirmar-se plenamente.

 

UMA CAPA FEITA DE MEMÓRIAS
A capa de «Estar em Casa» é muito atraente e representa os brinquedos da infância da poetisa dispostos em cima de uma mesa em sua casa na José Estevão. De facto, a casa está muito presente não só neste livro, mas também nos volumes que o antecederam – e em toda a prolífera obra precedente. A casa é o refúgio, a proteção e a defesa. Com um finíssimo sentido de humor, inconfundível, lemos impressões aparentemente espontâneas e simples, mas profundamente pensadas, palavra por palavra… Adília Lopes tem insistido em dizer que o fascínio que sente pela obra de Sophia de Mello Breyner é exatamente originado pela busca permanente da palavra certa. E a verdade é que, ao longo da obra poética da autora, sentimos essa permanente exigência, em que a imaginação e a lucidez se ligam intimamente num objetivo determinado e exigente em que o non-sense surge de um modo cuidado como ilustração e compreensão da realidade. Ver o mundo às avessas é, assim, procurar vê-lo melhor. Como no casaco de malha, quando parecia faltar-lhe uma casa para o botão… De facto, estava mal abotoado… E lembramo-nos do gosto que José Blanc de Portugal (figura marcante da cultura, que foi tão próximo da nossa autora) tinha pelos «Disparates do Mundo» de Chesterton, que magistralmente traduziu, fácil é de fazer um paralelo com a preocupação que Adília tem em apresentar a realidade sob um ponto de vista atípico e aparentemente cómico ou até chocante, para que se compreenda melhor a singularidade do que nos procura dizer. Sobre essa marca muito especial, lembramo-nos do que disse Paula Rego, quando tomou contacto com a escrita e as recordações de Adília Lopes: «fizeram-me logo lembrar a minha juventude, com as criadas, as bonecas, as mães ultraprotetoras. Adília Lopes é de um grande romantismo e ao mesmo tempo de um grotesco e de um cómico transbordantes». Não é demais dar ênfase ao extraordinário paralelismo, com as distâncias necessárias e as especificidades próprias, entre as duas, Paula e Adília.

 

VERSO E REVERSO DE UMA MESMA REALIDADE
Não devemos esquecer o que um dia disse a autora: «Adília Lopes é água no estado gasoso e Maria José a mesma água em estado sólido». Não se trata de duas facetas diferentes de uma rica e complexa personalidade, de uma transbordante criatividade – mas de verso e reverso de uma mesma realidade, que não esconde as raízes familiares e a determinação em encontrar um caminho próprio, que a levou, naturalmente a migrar da Física para a Literatura e Linguística, numa ilustração evidente sobre as fronteiras ténues que ligam as Humanidades. Mas ficou a paixão da matemática e o sincero gosto pelo rigor científico e pela busca da incerteza. Como diria Pascoaes trata-se de se debruçar da «velhinha janela» para saber ouvir «a voz das cousas». Nunca Adília / Maria José deixou de ter uma atração especial pela Física, como antecâmara natural para uma boa compreensão do mundo da vida. E voltando a José Blanc de Portugal, nele encontramos essa ligação íntima entre o espírito científico (do geógrafo) e a paixão literária, a demonstrar que as humanidades são abrangentes, não albergando duas (ou várias) culturas distantes e separadas. «A literatura continua a ser para mim uma coisa muito séria». A água é a mesma esteja no estado gasoso ou no estado sólido. Daí a importância do conselho de Sebastião e Silva para a “utilização do Compêndio de Matemática” - «adotar um critério de escolha que elimine exercícios supérfluos e exercícios estapafúrdios». E que significa isso? Exatamente, compreender que o real quotidiano é bem mais simples e suscetível de clareza do que julgamos à primeira vista… «Gosto muito de comparações. Escrevo muitas vezes a palavra como. Como gosto muito de comer até tem mais graça». Assim mesmo – como se fosse tudo óbvio. Fernando Pessoa diz: «Olha que não há mais metafísica no mundo senão chocolates». E Cristina Campo diz que «não tem mal nenhum uma pessoa repetir-se» Tudo depende de as ideias valerem a pena. E o que é «ser sempre criança»? É fazer da memória uma atenção permanente. «Memória / puzzle». É não esquecer. É pôr os brinquedos na mesa redonda para falarem. E é compreender a magia do escorrega – uma bela comparação para pensar e escrever.

 

UM MUNDO DE COMPARAÇÕES
Em maré de comparações, estamos diante de um mundo inesgotável. É esse o mundo em que Adília habita, com prazer genuíno, mas também com incomodidade. «Ao fim da tarde, depois de os amigos se terem ido embora, a sombra do bule fez-me ver como sou feliz às vezes». E na casa habitam os espíritos, as lembranças, os desejos, as perplexidades – tudo. Proust encontra-se com Cesário, Agustina vai ter com Sophia, Verlaine desencontra-se com Rimbaud. Os brinquedos falam sobre a mesa. «Escrevo / esgravato / com o bico da caneta / o caderno…». No caso de «Estar em Casa» temos de entender que com ele os outros dois livros autobiográficos fazem um conjunto só. O seu valor é do conjunto, das memórias, das dúvidas, das descobertas. «Manhã» e «Bandolim» anunciam «Estar em Casa» - e os três livros ler-se-ão naturalmente em conjunto. «Ler, escrever, ouvir música, andar a pé, brincar». Se virmos bem há um fio de Ariadne que liga tudo. «Cismar tagarelar». E um médico disse que «a novidade estimula» ou ainda que «a capacidade de esquecimento das pessoas é muito grande»… Isto a propósito da senhora que era pobre e não tinha dinheiro para comprar bibelots. Por isso tinha um baú, donde ia fazendo circular os poucos bibelots que tinha, para dar a impressão de que eram muitos e novos. «Não é bom ser pobre mas é bom ter imaginação». E se agora não encontramos as «caras baratas», vislumbramos a pata firme de Lu, uma gata omnipresente que chegava aos seus dias do fim. «Acho que só os animais são capazes de amar assim tanto. Eu não sou capaz». Maria José / Adília continua a dar-nos o retrato da vida. E diz-nos ser verdade que as flores baloiçam no ar!...

 

Guilherme d'Oliveira Martins
Oiça aqui as minhas sugestões - Ensaio Geral, Rádio Renascença

CARTAS DE CAMILO MARIA DE SAROLEA

 

Minha Princesa de mim:

 

   A Árvore de Jacarandá, ficção de memórias (?) da minha querida amiga Maria de Lourdes Lopes Dias, já no próprio título nos recorda um país mítico, paraíso terrestre, harmonia adivinhada, anseio de florescência que os acidentes das vidas e as brutalidades das circunstâncias podem matar e quase sempre vão adiando. O nome da árvore de flores lilases surge no linguajar português já no último quartel do século XVI, não sei quem o escreveu primeiro, mas foi certamente transcrição de nome indígena, registado pelo padre Fernão Cardim, em 1584, no seu Do Clima & Terra do Brasil. Para Maria de Lourdes, todavia, isso pouco importa, escolhe outra origem para o nome e a árvore: tal angiospérmica nasceu e cresceu no Reino de Jacarandá, lugar longínquo algures na galáxia, próximo contudo em corações que o sentem. As flores violáceas da árvore são bandeira e promessa do reino onomástico, ao qual sempre regressamos em cada primavera, quando ruas do Monte Estoril se cobrem de lilás, ou ainda, como acontece com Joana, a heroína da novela, só quando a Desejada, a Primavera do amor ansiado e tantas vezes quase desesperado, finalmente nos amarra e nos tira daquele Desapego de que um dia falou Cecília Meireles:

         

          A vida vai depressa e devagar.

          Mas a todo momento

          penso que posso acabar.

 

          Porque o bem da vida seria ter

          mesmo no sofrimento

          gosto de prazer.

     

          Já nem tenho vontade de falar

          senão com árvores, vento,

          estrelas e as águas do mar.

 

          E isso pela certeza de saber

          que nem ouvem meu lamento

          nem me podem responder.

 

   Num universo semeado de amores e desamores, sucessos e insucessos - de que a novela nos dá notícias e alguns juízos -  a floração do Reino de Jacarandá traz a cor da paixão, que é um sofrer em companhia, que engana a morte e gera um nascimento novo, um novo apego à vida, como tão bem diz Gabriel Garcia Márquez no seu El amor en los tiempos del cólera:

 

   El capitán miró a Fermina Daza y vio en sus pestañas los primeiros destellos de una escarcha invernal. Luego miró a Florentino Ariza, su dominio invencible, su amor impávido, y lo asustó la sospecha tardia de que es la vida, más que la muerte, la que no tiene límites.

 

   - Y hasta cuándo cree usted que podemos seguir en este ir y venir del carajo? - le preguntó.

 

   Florentino Ariza tenía la respuesta preparada desde hacía cincuenta y três años, siete meses y once días com sus noches.

 

   - Toda la vida - dijo.

 

   Eis o fim-princípio da história do amor de Fermiza Daza e Florentino Ariza, iniciada e interrompida muitas décadas antes, por artes do mundo e malefícios das contingências. Eis agora um amor reencontrado, quando os corpos têm mais desejos da alma do que explosões físicas, eis, sim, um amor recuperado, redescoberto, renovado, ressuscitado, como o de Abraão e Sara, quando esta, na sua adiantada velhice, concebe Isaac. Também Fermina e Florentino, decrépitos e impotentes, conversam deitados, para entreter o tempo. Hablaron de ellos, de sus vidas distintas, de la casualidad inverosímil de estar desnudos en el camarote oscuro de un buque varado, quando lo justo era pensar que ya no es tiempo sino para esperar a la muerte. Ella no habia oído nunca decir que él tuviera una mujer, ni una siquiera, en una ciudad donde todo se sabia inclusive antes de que fuera cierto. Se lo dijo de un modo casual, y él le replicó de inmediato sin un tremblor en la voz:

 

  - Es que me he conservado virgen para ti.

 

   A Joana dos jacarandás também melhor recordará não ter cedido ao desejo insistente de seu primo João, companheiro da adolescência, quando ambos, "de mão dada e olhar enamorado", passeavam o seu mistério telúrico pela floração lilás do Monte Estoril, do que a insatisfação, sentimental e sexual, dum breve amor sueco. Afinal, pouco importa o que tivesse sucedido: o que ela desvenda ao reencontrar Alexandre é a fortaleza da frágil semente do amor, aquela que se enterra e permanece até desabrochar e dar fruto. Na história que Maria de Lourdes conta, casaram e tiveram três filhos. Nos tempos da cólera, Fermina e Florentino já não farão filhos, nem por milagre de Deus, como Abraão e Sara. Mas encontram finalmente aquele que nunca os tinha deixado e sempre tinha andado a saltar de um para o outro, durante cinquenta e três anos, sete meses e onze dias com suas noites. Como na Turandot do Puccini, o seu nome é Amor.

 

   Neste fim de inverno, agora ventoso e chuvoso, vejo pela janela do meu gabinete a "minha" cerejeira do Japão, que de lá até cá veio para me lembrar que a Flor da Primavera é universal, parece ser repetição mas existe sempre igual em toda a parte. Está ainda despida e silenciosa, sem brilho nem promessa visível. Dir-se-ia velha, mas para mim é sempre magnífica. A beleza é interior, não está na aparência que seduz, existe na escuridão de uma intimidade que ilumina. Quando percebemos essa fé, também entendemos a esperança e conhecemos o amor. A sua alegria já vive nesta árvore nua que nos oferecerá flores, a lembrar-nos de como, afinal, o efémero é uma promessa que não cansa.

 

   E porque falo de cerejeiras do Japão, não resisto a trazer aqui um trecho do Caminhos da Terra Florida de Armando Martins Janeiro: Para mim, a mais grata recordação desse dia, e das mais belas de muitos anos, será a de uma velhinha a caminhar por uma rua de aldeia, ao longo da qual os ramos das cerejeiras faziam um túnel de flores. Trazia à cabeça uma pequena trouxa e o peito descoberto, como ainda é costume aqui no campo, com os longos seios secos caídos. Fiquei-me de propósito sentado, à espera de ver o que ela faria, se taparia os seios, se desceria os olhos ao chão, de pudor, ao passar em frente de mim. Não, sorriu-me apenas. Sorriu-me com um sorriso simples e natural, sazonado, de quem deu leite a filhos e muitas lágrimas a netos, - mas um sorriso de tanta bondade e tão puro, que me pareceu que em todas as flores de Abril, em toda a natureza, não há nada que iguale a pureza de um sorriso humano verdadeiro.

 

   Tampouco murcham as flores verdadeiras. Quando o vento as leva, desfazem-se, para nos lembrar de que será só nossa a esperança que deixaram. A fé no amor é a mesma nos romances continuados, nos interrompidos, nos interrogados, nos imaginados. Tal como nas histórias de um sapo que o beijo da princesa torna príncipe, ou da borralheira a quem o príncipe calça o sapato mágico, o final sonhado desenha-se também para Joana de Jacarandá: casaram-se, viveram felizes e tiveram muitos filhos. O sentimento do amor, todavia, pode morrer quando a traição ou o abandono o mata, porque mesmo a morte o metamorfoseia em saudade. O amor morto por ter sido matado é como filho do desespero. Assim acontecerá, com a irmã de Joana, Alice, que se suicida, destruída por marido malévolo.

 

   Ocorre-me - por me revoltar essa ou qualquer história de desespero - como, na perspetiva existencialista de Sartre, não podemos escapar à liberdade, por muito que ela nos aflija, porque, pura e simplesmente, é liberdade que somos. Vira-se assim do avesso a máxima cartesiana Penso, logo existo que, no seu original francês, diz: Je pense, donc je suis. Mas Sartre dirá Je ne suis rien, donc je suis libre (L´Être et le Néant, Paris, 1943). E recorro a Sarah Bakewell (At the Existentialist Café, Chatto & Windus, Londres, 2016), para explicar melhor a minha tentação sartriana, ao ler o relato do suicídio de Ana: Não nos espante que essa liberdade radical torne inquietas as pessoas. Se já é difícil pensarmo-nos livres, Sartre vai mais longe ainda: não sou literalmente nada além do que decido ser. Medir a extensão da minha liberdade é mergulhar no que, ambos, Heidegger e Kierkegaard, chamaram angústia (Angst). Não é o medo de algo em particular, mas uma angústia penetrante relativamente a nós e à nossa existência. Sartre vai buscar a imagem kierkegaardiana da vertigem: se olhar à beira de uma falésia e sentir vertigem, esta tenderá a tornar-se na sensação/náusea de que poderei, de maneira compulsiva e inexplicável, atirar-me para o abismo. E penso agora, lembrado de tantas histórias tristíssimas de desistência de nós, como é verdade que só em liberdade existimos, e como todos os atos e situações que nos amarram e prendem, mais do que tolher-nos, nos afogam e matam. Assim, em qualquer amor humano, ecoa aquela palavra de Deus numa das narrativas míticas da Criação (Gen. 2, 18 e 22-25): Deus disse: «Não é bom que o homem esteja sozinho. Tenho de lhe fazer uma ajuda que se lhe assemelhe»...  ... Da costela que tinha tirado ao homem, Deus modelou uma mulher e levou-a ao homem. Então, este exclamou: «Ora bem, é o osso do meu osso e a carne da minha carne! Chamar-se-á mulher, porque foi tirada do homem!» Por isso o homem deixará pai e mãe e se juntará à mulher e serão uma só carne. Ora, ambos estavam nus, o homem e a mulher, e não sentiam vergonha um do outro. A solidão do abandono ou da traição, a humilhação da prepotência da soberba ou da sevícia, condenam quem as sofre à perplexidade debruçada sobre um abismo.

 

   Mas será inevitável a aniquilação de si? No prefácio à edição americana do seu Le Mythe de Sisyphe, Albert Camus escreve: no próprio interior do niilismo é possível encontrar algo com que ultrapassar o niilismo. Para ele, todas as grandes ações e todos os grandes pensamentos têm um começo irrisório. As grandes obras nascem muitas vezes na curva de uma rua ou na porta rolante dum restaurante. E assim é com a absurdidade. O mundo absurdo, mais do que outro, vai buscar a sua nobreza a esse nascimento miserável... O vazio da repetição, dia após dia, de gestos e comportamentos quotidianos torna-se eloquente... eis que será o primeiro sinal da absurdidade...   ... Certo dia, o «porquê» levanta-se e tudo começa, na lassidão pintada de espanto. ... No fim do despertar, chega, com o tempo, a consequência: suicídio ou restabelecimento. Na história mítica, como sabemos, Sísifo - o rei que desafiara os deuses que, para seu castigo, decidiram condená-lo a levar, rolando-o, um pedregulho até ao cume de um monte, donde a mesma rocha voltaria a rolar encosta abaixo, obrigando-o a novo esforço para arriba - lá irá subindo-descendo-subindo sem parar, como quem se resigna ao absurdo. E Camus escreve (traduzo): Toda a silenciosa alegria de Sísifo está aí. O seu destino pertence-lhe. A sua rocha é a sua coisa. Assim também, o homem absurdo, quando contempla o seu tormento, cala todos os ídolos. E termina o livro: A própria luta em direção aos cimos basta para encher um coração de homem. Temos de imaginar Sísifo feliz.

 

   Assim se adivinha o suicídio como irreconhecimento de si: não sou quem nem como penso ser, ninguém me ama para que eu exista. E o restabelecimento, como lhe chama Camus, como uma conformação com a frustração, a aceitação do absurdo como dado de facto. Não há, então, recuperação possível, reconversão à vida? Bastará a sempre recorrente "luta em direção aos cimos, para encher um coração de homem?" Teremos mesmo "de imaginar Sísifo feliz", porque, condenado ao absurdo, aceita e "contempla o seu silêncio"? Mas, afinal, não poderá ele sentir-se mais feliz ainda, se o rolar da rocha for sentido como chegada-e-partida-e-chegada das flores da Árvore de Jacarandá como promessa?

 

   Na tragédia de Alice, já a esperança é mais difícil, quiçá impossível: eis o irreconhecimento de si como desaparecimento de quem se sente aniquilado. O grande Mal do Amor é a sua negação: o amor traído, humilhado, desprezado, espancado, odiado ou detestado, aniquila-se. Quem se deu deixa então de existir, pois que a dádiva de si era a sua própria vida, que outrem recebeu para desfazer. Morrer de amor é uma expressão poética, ninguém morre de amor, menos ainda os que morrem por amor. Mas muitos morremos por negação dele. Eis a extrema ignomínia, que tantos sofrem e tantos infligem. Por isso gosto de pensarsentir a vida imaginando que a própria consciência de mim se sustenta em "caminhos da terra florida" e "árvores de jacarandá": precisamente por ser efémera, a Primavera  é promessa. E a promessa faz bater os corações dos homens. Chamam-lhe, então, esperança.

 

Camilo Maria

 

Camilo Martins de Oliveira

EVOCAÇÃO DO TEATRO DA POLITÉCNICA

 

Começamos por esclarecer que a evocação aqui referida não assume um sentido histórico global, na medida em que o Teatro da Politécnica mantém-se em atividade no conjunto de edifícios que dão acesso ao Jardim Botânico de Lisboa: mas vale então a pena recordar o historial em termos de funções e instituições que, desde o século XVIII, valorizaram a zona urbana, mesmo antes do terremoto de 1755.

 

Pelo menos a partir de 1759, o chamado Noviciado do Alto da Cotovia, que vinha de tempos anteriores, evolui para abrigar o Colégio dos Nobres. E a partir de 1837 a então recém criada Escola Politécnica de Lisboa reformula toda a zona urbana e dá origem ao que viria a ser a Escola Politécnica, a Faculdade de Ciências de Lisboa, esta a partir de 1911, e agora, o Museu de História Natural e da Ciência.

 

Este historial é desenvolvido e devidamente documentado designadamente num notável estudo de José Lopes Ribeiro intitulado “O Edifício da Faculdade de Ciências”, publicado em 1987. Aí, para alem da historiografia urbana, arquitetónica e institucional, encontramos vasta documentação relativa às fases sucessivas dos edifícios e das instituições.

 

Tudo devidamente documentado designadamente pela reprodução de textos, plantas e imagens das sucessivas institucionalidades e funcionalidades dos edifícios.

 

E nesse aspeto, talvez o mais curioso seja, hoje, a descrição pormenorizada de uma visita do Rei D. Luís à Escola Politécnica, ocorrida em 21 de dezembro de 1877. Recebido com as honras protocolares, ouviu do diretor da Escola um longo discurso, que Lopes Ribeiro transcreve, tal como aliás transcreve a resposta de D. Luís.  De notar que a visita foi acompanhada pelos representantes diplomáticos da Inglaterra, da França, da Alemanha, da Rússia, da Áustria e do Brasil.

 

Entre muitas outras saudações e considerações, disse então o diretor da Escola:

 

“A Escola Politécnica conta já quarenta anos de existência. Nasceu com as instituições que asseguraram à nação a liberdade. Representante da ideia nova, em oposição às velhas tradições, que tendiam a imobilizar o ensino público, assim como imobilizavam todas as instituições sociais e politicas: consequência remota mas necessária da famosa reforma dos estudos do Marquês de Pombal, que abrira as portas das aulas e academias às ciências naturais, às ciências de observação e com estas á filosofia moderna”...

 

E segue um longo discurso de notável modernidade sobretudo para a época.

 

Ora bem: o edifício abriga hoje o Museu da História Natural e da Ciência. Mas mantém uma tradição recente, chamemos-lhe assim, de atividade teatral e de espetáculo, que agora se realiza num edifício autónomo, na cerca do Jardim Botânico, e onde funciona o precisamente designado Teatro da Politécnica.

 

O pavilhão albergou sucessivas instituições, serviço e atividades da então Faculdade de Ciências, desde a Associação de Estudantes até a uma galeria de exposições que hoje coexiste com a sala de teatro propriamente dita. E esta sala de teatro constitui assim um verdadeiro   teatro experimental, expressão antiga mas adequada a criações e espetáculos que poderíamos designar também pela antiga expressão de “teatro de câmara”, até pela proximidade do espaço cénico e do espaço do púbico.  

 

E como vimos, hoje em pleno e qualificado funcionamento, a cargo do grupo Artistas Unidos, este ainda com o mérito de assumir um repertório de qualidade e modernidade, e de editar os textos respetivo e outros de interesse para a cultura teatral.

 

Basta dizer que a coleção editada pelos Artistas Unidos tem hoje algo como 115 peças de qualidade. (col. Artistas Unidos – Livrinhos de Teatro – ed. Livros Cotovia)

 

DUARTE IVO CRUZ

A LÍNGUA PORTUGUESA NO MUNDO

 

XXXI - DAVID MOURÃO FERREIRA

 

“Não acredito propriamente no Quinto Império; nem estou seguro do advento da Idade do Espírito Santo. Mas reconheço o que estas utopias contêm de positivo e de exaltante se delas não excluirmos a Magia do Corpo e da Palavra, a Palavra e o Corpo da Magia. E continuo a crer que os textos literários de matriz lusófona terão, também quanto a isto, um principal papel a desempenhar” (David Mourão Ferreira, “Magia, Palavra, Corpo: Perspetivas da Cultura de Língua Portuguesa”, Cotovia, Lisboa, 1993, p. 28).

 

Esta citação do texto de David Mourão Ferreira, parece ter por função não permitir confundir o discurso (pretensamente objetivo) do seu autor com quaisquer conceções providencialistas, míticas ou messiânicas, tantas vezes cheias de emotividade, sobre o destino manifesto e universal do povo português, do seu insondável mistério e da sua irreduzível originalidade, afastando, desde logo, qualquer familiaridade com a ideia do Quinto Império, de Joaquim de Fiore, Padre António Vieira e Fernando Pessoa, com a Idade e Culto do Espírito Santo, de Agostinho da Silva e António Quadros, com as teorias providencialistas, ocultistas e esotéricas, com particularidades próprias, de António Telmo, Manuel Gandra, Dalila Pereira da Costa, Eduardo Amarante, Rainer Dachnhardt, Raul Leal e Augusto Ferreira Gomes, o sebastianismo ou a saudade de António Sardinha, o lirismo sonhador de Jorge Dias, entre outros.

 

Conclusão que as palavras seguintes não confirmam, dado reconhecer o que essas utopias têm de construtivo, desde que assentes no valor da língua, para além da crença no papel a desempenhar pela palavra escrita, neste particular pela literatura de matriz lusófona.

 

Assim, apesar de todos os cuidados tidos pelo autor para se exprimir, não deixa de, curiosamente, permitir que se coloque o seu prognóstico num lugar próximo ao que as conceções do Quinto Império e do Espírito Santo têm de comum: o visionar e o advento de um tempo novo ou de uma nova era em que Portugal, neste caso, a Cultura da Língua Portuguesa, tem uma missão fraternal e solidária a cumprir, por desígnios manifestos da sua própria história, e o constatarmos revestir-se essa missão de um universalismo augurado em vários momentos da nossa existência secular. Cita, a propósito, Afonso Lopes Vieira ao admitir, cinquenta anos antes, a enorme importância do número de falantes que viriam a exprimir-se em língua portuguesa.

 

Nesta perspetiva, encontramos aqui, uma vez mais, a tal linha de continuidade entre utopias que só aparentemente são diversas: a do Quinto Império, religioso para António Vieira, cultural para Fernando Pessoa, a da Idade do Espírito Santo para Joaquim de Fiore, Agostinho da Silva e António Quadros, a da Era Lusíada para Teixeira de Pascoais e a da Cultura de Língua Portuguesa para David Mourão Ferreira.

 

Sonhos ou utopias que pressupõem todos uma realidade espiritual, imaterial, um universalismo como vocação de um Povo ou de uma Cultura que conseguirá com vantagem substituir-se ao poder predominantemente económico que outras culturas atualmente dispõem.

 

Defende, porém, uma relação igualitária da cultura portuguesa com outras culturas de língua portuguesa, defendendo uma Comunidade Lusófona com uma componente de absorção e recetividade, em termos linguísticos e literários, criticando os que se crispam ao verem o nosso léxico “invadido” por termos vindos de outros países lusófonos (por exemplo, de telenovelas brasileiras ou de canções cabo-verdianas), posição também defendida por Eduardo Lourenço e Gilberto Freyre. Refere palavras de Afonso Lopes Vieira, segundo as quais “para tal glória da Linguagem é mister que a leguemos pura e forte, latina na raiz e nacarada nos Trópicos, com a sintaxe plantada em chão natal, mas liberal no acolher de vocábulos, Língua sempre dona e perpétua donzela, nobre de passado senhorial e crioula em todas as latitudes, capaz, enfim, de aparelhar com gesto airoso para os rumos prodigiosos do porvir” (ibidem, p. 7).

 

Portugal crescerá porque a sua língua crescerá também, em comunhão de esforços com o restante mundo lusófono, apesar do caráter mais restrito desta Cultura de Língua Portuguesa, em termos literários e linguísticos, a que não foi alheia a profissão do seu autor.  

 

20.03.2018

Joaquim Miguel De Morgado Patrício 

O RENDIMENTO BÁSICO INCONDICIONAL: mero contributo à reflexão

 

De  facto há muito que um estado social devia ter estado atento à substituição do emprego dos homens pelas máquinas e que o trabalho não devia ser a fonte única de rendimento, nem o número de horas de trabalho fosse indicativo da produtividade e que quem não tem trabalho não é necessariamente o tal mandrião objeto de reprovação ética, ou o mérito não fosse por aqui, algo a deixar escondido de moeda que o pague sem que um RBI lhe acuda como liberdade justa de opção de trabalho e de remuneração por dignidade de indispensável interesse à reflexão na investigação de um futuro melhor. No entanto, tudo o que se faz como trabalho, até o cansativo trabalho de lida de casa, constitui uma fonte de dignidade para os casais, para a família, para a sociedade no seu todo e deveria ser compensado pela existência mais cómoda e digna que provoca na sociedade no seu conjunto. Esta é uma das situações exemplares de falha de perceção da política pública, sendo esta atividade prestada a uma coletividade por pessoas privadas, e que traduz real qualidade de vida. Quanto vale uma mesa posta diariamente com tudo o que só de olhar, induz ao sentir de um lar, desenvolvendo momentos de ternura e diálogo, interrompendo quantas vezes? com eles as horas de luta por vida mais justa, recolhendo delas algum descanso e força? Não terá o RBI que ter em conta igualmente a armadilha da sociedade a quem suporta este trabalho e o pratica, e, quantas vezes se diz no desemprego? Será que a segurança social passa a ferro dentro da casa de cada um ou limpa-a como prestação social? Então a medida mais revolucionária seria a de atribuir um rendimento básico e incondicional a quem trabalhando, no hoje dito não trabalho, mas produzido com fortes externalidades positivas, fosse capaz, afinal, de aumentar o bem-estar social no conjunto das famílias. Pensemo-lo. Desenvolvamo-lo. Criemo-lo como projeto-piloto.

 

E se pensarmos no dito não trabalho imaterial e material produtivo da cultura? Que solução ao incentivo do entendimento de um mundo realmente melhor provocado por quem transmite conhecimento? e que quantas vezes nos é pedida a obrigação de um contributo sem verba sequer para o agasalho dos livros? E no amplo conceito da pobreza que não gera riqueza nem emprego? sem que tenha visibilidade substantiva a criação de trabalho próprio? Como se funciona? Creio que podemos dizer que se o RBI fosse impeditivo de não se dar o trambolhão abaixo da sustentação da rede mínima que nos segura a vida em dignidade de opção, ou seja em dignidade e em liberdade, a verdade é que, outros, que, sem essa rede, para ela acabariam por contribuir, qual rede que poderiam considerar alheia ou a solidariedade não estivesse mais longe do mundo do que o projeto-piloto do RBI no Alasca ou na Finlândia ou em países africanos.

 

Os pensamentos simples e as palavras simples e as ideias que as gerem são saudosas da busca na solução da evidência que atalha o rebuscado fenómeno das ideias que, sendo recentes, não são novas. Diga-se que a realidade ainda não escoou como assunto diagnosticado, e muito menos tratado, as questões inerentes aos consensos sociais e políticos, às absolutamente necessárias medidas de transformação das estruturas de enquadramento para que se insira um projeto cuja verdade utópica tem pernas para caminho como cremos que poderá ser o RBI. Todavia, há que pensarmos nesta questão do Rendimento Básico Incondicional com sincera modéstia, pois se a adesão às novas ideias carece de um domínio das mesmas invulgar, então que haja também uma suspeita construtiva da sua falência e que se lhe atribua as mesmas armas de quem as expõe com a sedução da esperança.

 

O exemplo do incentivo à preguiça que muitos entendem constituir as férias pagas não deveria, em nossa opinião, acreditar em si mesmo como um direito inalienável se, confrontado com a precariedade. Eis um exemplo de difícil perceção no convite - para nós, errado - a que não se abdique de algo que pode ser substituído por um outro bem--estar redefinido, e que seja ele, por hipótese, a distribuição interna no seio de uma família, através de uma gestão por objetivos dos gastos dela, nomeadamente extensiva na casa de uma Europa renovada, ou antes numa Europa nova na origem de cada um de nós, para que não arraste com ela o navio naufragado o qual também secou as esperanças em terra.

 

Os projetos-piloto de um RBI em Portugal e a nível europeu seriam seguramente mais sustentáveis e entendidos por um “público” carente de uma ideia de justiça ainda não concretizada. Contudo, presta-se a expressão «rendimento básico incondicional» a uma adesão rápida por grande parte da sociedade que nela encontra o cobrir de muitas carências sem que auto-inculque um contributo individual à resolução das mesmas. Todavia, para nós, haveria que atentar ao sentir básico do a quem se destina, para que o RBI se não tornasse uma inevitabilidade sem o contributo de quem por ele deveria modificar vida e nela modo de pensar e de estar.

 

A aplicação do RBI mesmo no que se refere ao ambiente, tendo em conta que os recursos da terra são escassos, será seguramente domínio de política gradualista, infelizmente, diríamos, tão gradualista que arriscaria perder a sua vocação de vanguarda se errada for a fase do ciclo político e económico em que fosse implantada, bem como o respetivo time lag de cada país ou de cada país na europa. Por outro lado a questão política na base do RBI pode aceitar não arriscar mais do que uma pseudo-inovação que cative o voto, ou, a política de hoje não fosse um estudo não feito daquilo que a ciência política, há muitos anos propôs como desafio: menor estado e melhor estado.

 

Lembremo-nos do quanto o RBI estava contido na temática dos impostos da célebre curva de Arthur Laffer que, nem por isso, constituiu uma liberdade para cada individuo demonstrar o seu grau de insustentação face à carga fiscal.

 

O gap estrondoso provocado numa sociedade biónica com consequências ainda de contornos indizíveis e sem precedentes, alterou e alterará a estrutura do emprego sem que se intua quem, de entre os pensantes, explicará com clareza a quem é dono do voto, o quanto a inteligência artificial é uma questão decisiva já do presente e, necessariamente, do futuro próximo que pode pecar por confiança ou defeito, mas que à escala global, e, consoante as políticas públicas e privadas, não será nunca, atente-se, uma via de criação normativa que impedirá ou incentivará os cenários de uma proteção social distinta da atual, a não ser por agravamento penalizador da sua sustentabilidade. Por óbvio, se questiona, o quanto a insustentabilidade do atual sistema de segurança social, e de estado social, poderá impedir o novo modelo de crescimento económico mundial de atingir os custos decrescentes, e com eles a capacidade de o Estado pagar atempadamente um RBI. Não deveremos ter em conta um fiel de balança que explique uma eventual incapacidade de mercado que pode ser substituída por seguros individuais que libertariam verba para o RBI, mas que poderiam induzir a um receio nas gentes, o receio de que afinal o Estado para eles falira, e este novo modelo não era mais do que um tamponar interpretativo dos seus novos medos de se verem sem o Estado, tal qual até aqui, por muito que ele já não seja a velha órbitra que no final, de um modo ou de outro, entenderia cada um, ainda era pátria o que se queria: ainda é nação o que se espera.

 

Queremos também dizer com isto, enfim, que o RBI ao desejar contribuir para a atenuação da desigualdade, pode e deve criar oportunidades até inerentes à desejável e já praticada redução dos horários de trabalho, sistema a funcionar já noutros países, com melhorias na qualidade de aprender a felicidade da opção do trabalho a desempenhar, estabelecendo um equacionar propício entre automatização e RBI.

 

Entenda-se que o saber do construir a vida, competência exclusiva de cada um, não será assegurada por robôs, ainda que robotizada se encontre a sociedade-modelo na qual se se vive, essa mesma, onde se deseja implantar o RBI e a sua genética, como se as juntas de transmissão dos valores dos homens, estivessem disponíveis a uma real mudança. Permitam que se duvide.

 

Ainda assim, independentemente de se dialogar sobre a melhor estratégia de sustentação deste sistema do RBI, independentemente de o mesmo ser visto como um melhoramento do antigo rendimento mínimo, independentemente da mudança nas políticas estruturais terem aqui o seu momento áureo, temos de evitar que o RBI seja redundante, seja uma adaptação tão tradicional quanto outras anteriores; ou seja, julgamos que a oportunidade e o seu sucesso reside sempre numa auto supervisão do modelo teórico, tao sedutor quanto a realidade atual pode vir a ser a melhor parceira a um casamento por comunhão de vários bens.

 

Teresa Bracinha Vieira

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