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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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A FORÇA DO ATO CRIADOR

 

Ainda acerca de Blinky Palermo.

 

'Seeing, some distance away in the margin of my visual field, a large moving shadow, I look in that direction and the phantasm shrinks and takes up its due place; it was simply a fly near my eye.', Merleau-Ponty In 'The infinite line’, de Briony Fer (2004)

 

No trabalho de Blinky Palermo, tal como no trabalho de Barnett Newman, existe uma enorme vontade em fazer com que o espectador faça parte da obra. Ao criar as grandes superfícies de cor, Newman convida constantemente o fruidor a fazer parte e a ser absorvido pela tela. Palermo também o faz mas, tal como foi visto a semana passada, fragmentando a cor e por isso fazendo com que ela faça parte do espaço em que está inserida.

 

Palermo, ao contrário de Newman, parte realidade aos bocados. Newman constrói uma totalidade, um campo completo (mas limitado) pictórico. As pinturas de Palermo seriam quase impercetíveis (bocados pintados de parede, pequenos triângulos aqui e ali), se não fosse pelo uso da cor no seu estado mais primário. 

 

Palermo usa constantemente objetos encontrados - não se refere à habitual norma, em que o artista transforma elementos pictórios em objetos. Jã são objetos antes de serem manipulados e trabalhados - são sim coisas pintadas, embrulhadas ou espaços reativados. O trabalho de Palermo, relativiza assim as diferenças que existem entre a pintura, a escultura, a imagem e o objeto.

 

Segundo Briony Fer, as formas espalhadas de Palermo, reconfiguram, por isso e por completo, toda e qualquer noção de assemblagem. As conhecidas colagens de Schwitters põe a nu a coleção de bocados familiares de papéis, jornais, anúncios. Palermo encontra e coleciona também. Mas sobretudo transforma, atua, cobre e pinta. O pictórico dessassocia-se então completamente da ideia de pura pintura, porque é matéria palpável, gratuita e efémera.

 

'Butterfly II' consiste em duas peças de madeira encontradas com formas irregulares - existe um tecido que as embrulha e quinta que as cobre (preto e vermelho nas faces laterais).  A forma é dada, encontrada e um mero acaso mas é também ao mesmo tempo fabricada - há uma ação nova sobre a forma  e a disposição existente que a faz mudar de contexto e de significado. 

 

Ana Ruepp

LONDON LETTERS

 

The chemical Inspectors, A old Deal and, A new Tsar, 2018

 

Inspetores da Hague a chegar e diplomatas da Russian Federation a partir! A roda-viva em torno da tentativa de assassinato dos Skirpals em Salisbury continua em crescendo, com London a internacionalizar o caso de envenenamento do agente duplo e Moscow a exigir evidências ou... desculpas. — Chérie! Les actions en disent plus que les mots.

Em Brussels é o anúncio do acordo entre o United Kingdom e a European Union sobre o período de implementação da Brexit. Além do cheque de £40b, há uma mão cheia de novas concessões do reino para manter o acesso ao mercado único. — Umm. Appearances are deceptive. Russia reelege o President Vladimir Putin com 77% de votos. Germany saúda o antigo agente do KGB em Dresden (DDR) enquanto Frau Angela Merkel assume o quarto mandato como Bundeskanzlerin. Washington prepara pacote de sanções contra o Kremlin por cyber interference na 2016 Election, Mr Ringo Starr recebe a knighthood em Buckingham Palace. Her Majesty in Council consente no matrimónio do Prince Harry of Wales com Rachel Meghan Markle. Para a eternidade parte o fabuloso e único Professor Stephen Hawking. No cosmo eleitoral aparece a Cambridge Analytica, “a British political campaigns firm” que terá persuadido milhões com a manipulação privada do Facebook. Monsieur Nicolas Sarkozy é detido em Paris por fraude partidária financeira.

 

Desesperately cold weather at Great London, with around zero temperatures. É ainda o frio glacial vindo da Northern Asian’ Siberia. O termómetro sobe em Brussels, com a all smiles dupla David Davis e Michel Barnier a revelar o clausulado do pre-Brexit deal. São 130 páginas de “common provisions,” abarcando 13 key areas sob burocratizado título Draft Agreement on the withdrawal of the United Kingdom of Great Britain and Northern Ireland from the European Union and the European Atomic Energy Community highlighting the progress made (coloured version) in the negotiation round with the UK of 16-19 March 2018. A leitura oficial de Downing Street classifica o acordo como "a significant step" nas euronegociações, mas as novas cedências britânicas ameaçam os Tories com feia guerra civil tanto no que está assente como no que não está. Na bissetriz, eis o fundamental do old new deal entre o EU's chief negotiator e o Brexit Secretary: (1) a fase de transição estende-se de 29 March 2019 a 31 December 2020; (2) os cidadãos europeus que neste período cheguem ao reino mantêm todos os direitos e garantias hoje existentes, à semelhança dos Brits expats no continente; (3) o UK assegura a capacidade de negociar e assinar acordos comerciais próprios; (4) a par da pertença aos atuais “EU trade deals with other countries”; (5) as quotas pesqueiras britânicas permanecem intactas sob condição da permanência flexível na Common Fisheries Policy; (6) Northern Ireland ficará em “parts of the single market and the customs union in the absence of other solutions to avoid a hard border with the Republic of Ireland”; (7) garante-se soberania pacífica em Gibraltar e outros domínios. Convenhamos que a tela faz jus à sageza do Prince of Lampedusa e às pintas nos sapatos de Mrs Theresa May. Meanwhile, os hard-liners do Ukip enfrentam a bancarrota após uma sentença judicial lhes apresentar uma fatura de £175,000, num processo envolvendo alegações feitas por uma sua MEP contra três Labour MPs durante a campanha eleitoral de 2015.

 

 

A praça pública mantém-se focalizada em Salisbury, porém, with a lot of talk about Cold War 2.0. A um tempo, é o súbito avultar de popularidade da Prime Minister com a sua pronta resposta ao caso dos Skirpals em contraponto com a nuvem descida sobre a cabeça do Leader of Her Majesty's Most Loyal Opposition ‒ dado o frouxo alinhamento com o No. 10 de RH Jeremy Corbyn, na House of Commons, em matéria de segurança nacional que o Foreign Secretary RH Boris Johnson diz saída dos livros da classical Russian strategy. A outro tempo, é a série das tit-for-tat diplomatic expulsions, com Moscow a afastar do país igual número de Brits aos que London retira da sua embaixada em Holland Park. A outro tempo ainda, é a internacionalização do incidente com a solidariedade ativa para com o UK dos aliados da OTAN e da EU mais a condenação do Putin’s regime no ONU Security Council e o envolvimento de Hague com a Organisation for the Prohibition of Chemical Weapons. Confrontação West-East, pois, pura e dura, taking politically risky steps among uncertain benefits, nos interstícios da apoteose moscovita ao new old Tsar.

 

Uma boa notícia para fecho, na melhor das reais tradições. The Queen Elizabeth II acaba de aprovar uma esperada boda na House of Windsor. O ato oficial segue ancestrais pergaminhos. “Her Majesty in Council” lavra a Declaration “at the Court at Buckingham Palace,” a 14 March: "I declare My Consent to a Contract of Matrimony between My Most Dearly Beloved Grandson Prince Henry Charles Albert David of Wales and Rachel Meghan Markle, wich Consent I am causing to be signified under the Great Seal and to be entered in the Books of the Privy Council."  — Well. As our Master Will firmly observes in Henry VI: — “Marriage is a matter of more worth / Than to be dealt in by attorneyship."

 

St James, 19th March 2018

Very sincerely yours,

V.

A VIDA DOS LIVROS

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   De 19 a 25 de março de 2018

 

«Memórias» de Rómulo de Carvalho (edição da Fundação Calouste Gulbenkian, 2010) é um precioso relato de uma vida muito rica de um grande pedagogo, homem de ciência e humanista.

 

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MESTRE DE MESTRES

 

Era Campo de Ourique e chovia. Foi o dia em que, muito justamente, fomos lembrar e homenagear Rómulo de Carvalho na casa onde morou. Com uma ponta de emoção, o Presidente da República não pôde deixar de lembrar, com palavras oportuníssimas do mestre, os tempos em que teve como professor o homenageado de agora. E ficou como marco dessa invocação uma placa, que lembrará a quem por ali passar o professor, o poeta, o homem de ciência, numa palavra, o humanista no sentido mais rico do termo. O quarteirão desse bairro cheio de memórias é, aliás, o mesmo em que viveu Bento de Jesus Caraça… E tal placa levará os passantes à recordação do exemplo de quem foi sempre um legítimo praticante da arte de ensinar e aprender. Sim, porque para o pedagogo de exceção o fundamental era compreender que há sempre uma troca quando se trata de educar. É a aprendizagem a marca da civilização, e é do despertar das consciências e do transmitir de saberes que depende a vivência da cultura. Com que zelo, com que amor sincero, como confessava seu filho Frederico (ao seu trabalho se deve a publicação das Memórias), Rómulo se encarregava de ensinar (a começar na própria casa), nunca como monólogo, mas como autêntico diálogo. Não se tratava, porém, de descer até ao jovem aprendente, mas sim de o elevar ao conhecimento maduro, com a preocupação da clareza e do gradualismo. Para o mestre, haveria sempre que saber dar os passos necessários para chegar ao conhecimento e à compreensão. “Estimular é saber tirar proveito das coisas, saber encantar, digamos, pôr as coisas em relevo, mesmo as coisas insignificantes”. Para Rómulo de Carvalho, o experimentado docente: “o Professor tem de ter qualidades muito humanas e saber expressar-se, manifestar as suas ideias. Os alunos agradam-se disso. Tal como deliram com as experiências”. Mas na arte de educar tem de haver uma dramaturgia. É como se estivéssemos num teatro – com encenação, marcação, representação e climax. O amadorismo ou o improviso não cabiam nos procedimentos de Rómulo de Carvalho. Tudo tinha de estar muito bem preparado. Os alunos são julgadores severíssimos. Apenas se deixam impressionar se tudo for brilhante e irrepreensível. O metodólogo sabia-o, melhor que ninguém, e explicava isso com muito cuidado e rigor aos seus formandos. No testemunho de duas discípulas, Alcina do Aido (minha professora) e de Maria Gertrudes Bastos: “a preocupação que nos procurava incutir com a maior ênfase era a necessidade de, nas vésperas de uma lição em que se previa a realização de uma certa experiência, executá-la com o maior cuidado, testando todo o material até ao último pormenor, na tentativa de evitar qualquer falha que pusesse em risco a conclusão que se pretendia tirar”…

 

 

A CHAVE DA CIVILIZAÇÃO

 

Num texto intitulado Presença de Descartes afirmava: “A finalidade dos estudos deve consistir em orientar o espírito para a construção de juízos sólidos e verdadeiros sobre todos os objetos que se lhe apresentem”. E isto obriga à liberdade criadora – de alguém que foi, em complementaridade perfeita (o próprio diria, no seu sentido autocrítico, quase perfeita), o pedagogo, o praticante da cultura científica, o divulgador e também, com existência própria, o poeta… Não esqueço, como na sua História do Átomo da coleção Ciência para Gente Nova (Atlântida) dizia: “A história do átomo é a história de uma das mais belas vitórias dos homens. Quer-nos até parecer que em todo o desenrolar das atividades humanas nunca a Ciência e a Poesia estiveram ligadas tão intimamente como neste caso”. António Gedeão era uma figura à parte, que não iludia a personalidade do seu criador, mas não se confundia com ele. Daí que Rómulo de Carvalho tenha tido o cuidado de o fazer sair do mundo dos vivos antes dele próprio. De facto, há uma fronteira, que permite compreender que a ciência e arte se ligam, na compreensão dos diferentes métodos que usam. Rómulo de Carvalho era um homem do método. Em célebre artigo publicado na revista “Palestra” em 1959, intitulado “A Física como objeto de Ensino”, afirmava ser “necessário ter cuidado ao considerar a experiência como base fundamental do ensino da Física em vista do seu valor como estimulante do processo indutivo. Realmente, não é a experiência que permite a indução. Somos nós, nós os que ensinamos, com as palavras que escolhemos e proferimos no decorrer da sua execução, com as nossas hábeis insinuações, com as nossas escamoteações oportunas, com o nosso conhecimento sagaz do aluno e das suas circunstâncias. Nós somos, em última análise, o método, o processo, a forma e o modo”. Esta a chave fundamental da Educação, compreendendo-se que estamos sempre perante o complexo desafio de ligar a aprendizagem, o conhecimento, a relação direta entre o professor e o aluno, a valorização do trabalho, da exigência e da justiça. O essencial da educação está na aprendizagem. Esse o elemento crucial, que não pode ser alvo de confusões ou de qualquer tipo de inversão de valores. Só há Educação justa se houver exigência, só a qualidade pode combater a exclusão e a desigualdade.

 

 

LEMBRAR TAMBÉM NATÁLIA NUNES

 

Há poucas semanas, fomos despedir-nos de Natália Nunes. Então pude lembrar, com sua filha Cristina, o percurso multifacetado e rico da mulher de Rómulo de Carvalho, que ele tanto admirava. Não esqueço a última vez que a acompanhei à rua Sampaio Bruno, depois de termos ido ao Liceu de Pedro Nunes homenagear o Professor no seu Laboratório de Física, pleno de recordações e lugar onde pôde exercer a sua missão didática, pedagógica e científica. Foi uma oportunidade para lembrar a personalidade excecional de Rómulo na instituição secular que tanto marcou. Personalidade discreta, Natália Nunes é uma grande escritora, que foi sempre uma cidadã aberta e corajosa, a quem devemos Autobiografia de uma mulher romântica (1955), Regresso ao Caos (1960), Assembleia de Mulheres (1964) e Vénus Turbulenta (1997) – além de contos, ensaios e traduções. Era uma pessoa de rara sensibilidade e de grande cultura – que se singularizou como profissional de referência no mundo das Bibliotecas e Arquivos. Tenho testemunhos de muitos dos com ela trabalharam ou a ela recorreram bem demonstrativos das suas excecionais qualidades. Posso confirmá-lo pessoalmente. Falámos longamente, e era a liberdade da cultura que cultivava e uma fantástica curiosidade pelo mundo e pela vida – como notamos na sua obra, na variedade de temas e situações e no contacto conhecedor com a melhor literatura de Tolstoi, Dostoievski e Balzac, além de Raul Brandão. Nas palavras que troquei no dia da homenagem a seu pai com Cristina Carvalho pude ligar as duas personalidades cativantes que tive o gosto de conhecer e admirar – completavam-se naturalmente e o amor à cultura, à ciência e aos livros era apaixonante.

 

Guilherme d'Oliveira Martins
Oiça aqui as minhas sugestões - Ensaio Geral, Rádio Renascença

 

 

CARTAS DE CAMILO MARIA DE SAROLEA

 

Minha Princesa de mim:

 

   Nos dias de hoje, a própria Igreja Católica, em Portugal, acolhe - disseram-me - para o ministério das suas paróquias e sacramentos, padres vindos de leste, praticantes do rito bizantino, alguns deles casados. Também os cristãos ortodoxos, de obediência grega ou russa - e não romana - aceitam, tal como os anglicanos, os luteranos e muitos outros - que os seus pastores sejam homens casados, e com famílias constituídas. É condição humana natural, responde a uma vocação universal que, na Bíblia, se regista logo no livro do Génesis, ainda no paraíso: Deus criou o homem à sua imagem, à imagem de Deus o criou, criou-o homem e mulher. Deus abençoou-os e disse-lhes: «Sede fecundos, multiplicai-vos, enchei a terra»... Já noutras cartas, Princesa de mim, te dizia que não penso que a permissão de ordenação de homens casados ou de mulheres deva ser aprovada pelas autoridades eclesiásticas em razão da escassez de ministros da eucaristia e doutros sacramentos. Essa questão da falta de gente, a meu ver, levanta-se desde antes, da simples verificação, sobretudo nos países cristãos do ocidente, do assombroso decréscimo no número de batizados e, entre estes, dos chamados praticantes (frequentadores dos ofícios eclesiais e dos sacramentos). Faltam ministros porque são menos numerosos os fiéis ou, dito de outro modo, porque a Igreja se foi alienando do mundo em que vivemos, se fechou em dogmatismos doutrinais, rituais e sociais, que a afastam do convívio dialogante com as gentes hodiernas, as suas angústias e preocupações (ou leviandades), as suas condições de vida.

 

   Temos, pois, duas básicas questões bem distintas: uma, a conversão do magistério eclesiástico à pregação da Boa Nova, isto é, como infatigavelmente diz o papa Francisco, a uma saída para a rua, ao encontro dos outros; outra, a necessidade desse tal magistério entender que a mensagem que Cristo lhe confiou é sempre ela e a sua circunstância, pelo que a tradição da Igreja não pode ser a repetição de ensinamentos e práticas nascidas, criadas - aliás nem sempre com todo a justiça e discernimento - em circunstâncias passadas. Assim sendo, eu não quero que se ordenem mulheres ou homens casados, nem que tal seja proibido: apenas peço que qualquer decisão canónica a esse respeito não invoque fundamentos bíblicos ou teológicos que, mesmo tendo sido muito usados no passado, são, por um lado e pelo menos, discutíveis e, por outro, não encontram qualquer recetividade em sectores crescentes das nossas sociedades, nem qualquer entendimento favorável nas mentes contemporâneas. E ninguém me venha dizer que "isso é relativismo!", pois trata-se precisamente do contrário: muito mais relativismo é isso a que chamam fundamentalismo, pois este nega a possibilidade do entendimento universal de um princípio, de um valor, de uma mensagem noutro modo que não aquele - relativo como tudo o que é dito para ser ouvido - no qual se defende ou pretende ter sido formulado ou proferida. Ou então, como também já te disse, Princesa de mim, acordemos que Jesus Cristo foi o grande relativista. Tampouco quero que se "liberalize" (como sói dizer-se hoje) o divórcio canónico, ainda que um puxãozinho de orelha pudesse levar certas pessoas a refletirem mais objetivamente, e com maior espírito crítico, nas "declarações de nulidade" dos tribunais eclesiásticos. Na verdade, defendo o princípio da indissolubilidade, precisamente por ser princípio, e defrontar os possíveis nubentes com a necessidade de assumirem a sua responsabilidade.  O matrimónio não é um contrato comercial (com ironia penso: bem... há exceções!), desde logo envolve vidas presentes e quiçá por vir, sentimentos e aspirações, intimidades, sobretudo entregas de si em confiança mútua... Não é coisa para ser tratada com ligeireza e, por isso, até no plano institucional, religioso ou simplesmente civil, tem de ser encarado com respeito enormíssimo, com a prudência (o tal amor sagaz de que tanto já te falei, Princesa) necessária a precaver o seu melhor decurso possível, mas infelizmente, também as consequências da sua eventual derrocada. Encurtando a dissertação: o divórcio não é desejável, mas pode ser inevitável, quer para salvaguarda da saúde mental ou da própria vida dos cônjuges, quer ainda para evitar que filhos aprendam, no seio da sua própria família, a discórdia, a raiva, a agressão, a maldade. Fílon de Alexandria, filósofo judeu helenista, e Flávio José, historiador judeu romano, + ou - coevos de Jesus, testemunham que a prática corrente, naquele tempo, de permissão do divórcio - que só o marido podia solicitar - se fundamentava até em alegações tão simples quanto a de a mulher ter deixado comida queimar-se ao lume, argumento defendido por uma das grandes escolas de escribas, enquanto outra escola apenas o legitimava em caso de adultério. Mas, para Jesus, até o adultério merecia perdão, enquanto que o divórcio, como direito do marido estipulado na lei mosaica, fora reconhecido apenas em razão da dureza dos corações... E não separasse o homem o que Deus uniu! Outra interpretação desse passo do ensino de Jesus, para além do imperativo de uma lei erga omnes, isto é, de uma norma que nem sequer é derrogável, pode pois ser a de que o marido sozinho não possa desunir o que a mulher também não pode, e até talvez possa não querer.

 

   Tenho amigos e amigas divorciados, crentes e não crentes, uns ou umas aliviados e enfim felizes, outros e outras (muitas) com feridas que não saram ou levaram muito tempo a sarar. Nenhum deles, nem qualquer delas, alguma vez me disse que o seu divórcio tivesse sido simples felicidade, nem sequer desejo genuíno. Mesmo para quem, desde o início do processo de separação, ansiou pelo seu termo, ou até procurou o esquecimento de uma vida comum, a simples perspetiva de um afastamento necessário foi sempre traumática, mais ou menos dolorosa, a menorização da dor sendo, frequentemente, função da esperança numa vida melhor. Quando conseguiram esquecer e refazer uma família - que, aliás, em muitos casos, também acolheu filhos anteriores - redescobriram, reconhecendo-a como tal (os crentes) ou saboreando apenas o seu conforto (os não crentes), a misericórdia de Deus. Da qual cada cristão deve procurar ser sacramento. Abriu-se-lhes a porta da alegria para que Deus os criou. Homem e mulher, na sua integridade humana. Acabo, Princesa de mim, transcrevendo o parágrafo 152 da exortação apostólica pós sinodal do papa Francisco, a Amoris Laetitia:

 

   Assim, não podemos, de maneira alguma, entender a dimensão erótica do amor como um mal permitido ou como um peso tolerável para bem da família, mas como dom de Deus que embeleza o encontro dos esposos. Tratando-se de uma paixão sublimada pelo amor que admira a dignidade do outro torna-se «uma afirmação amorosa plena e cristalina» mostrando-nos de que maravilhas é capaz o coração humano, e assim, por um momento, «sente-se que a existência humana foi um sucesso». As citações feitas pelo Papa são respigadas de Über die Liebe (Sobre o Amor), de Josef Pieper (Munique, 2014).

 

Camilo Maria

Camilo Martins de Oliveira 

REFERÊNCIAS A UM TEATRO DESAPARECIDO – SALVATERRA DE MAGOS (II)

 

Fazemos aqui nova referência ao Real Teatro de Ópera de Salvaterra de Magos, evocado e descrito no artigo anterior. Trata-se, recorde-se, de um projeto do arquiteto italiano Giovani Carlo Bibiena, trazido de Itália por D. José, para beneficio do Rei e da Corte, que se deslocava para Salvaterra no inicio de cada ano. O Teatro foi assim inaugurado em 21 de janeiro de 1753: e tal como recordámos, serviu e exprimiu o gosto que D. José tinha pelo espetáculo de ópera.

 

Como vimos, a Real Ópera desapareceu, mas deixou memória de uma atividade cultural e artística que de certo modo transcenderia o próprio ambiente da Corte. A ele se referem autores que amplamente citamos, como Luciano Reis, José Rodrigues Gameiro, Manuel da Silva Correia, Natália Correia Guedes, Aline Gallash-Hall de Beuvink e outros mais.

 

Mas nessa evocação remetemos ainda para o livro que Gustavo de Matos Sequeira publica em 1933, intitulado “Teatros de Outros Tempos” e que evoca e descreve espaços e edifícios históricos de espetáculo, a partir de Gil Vicente. Aí encontramos referências e descrições da infraestrutura e da atividade artística amplamente documentada.

 

No que respeita ao Real Teatro de Ópera de Salvaterra de Magos, Matos Sequeira refere designadamente as obras do Teatro, dirigidas por Petrónio Mazzoni e por Giacomo Azzoletti, ambos vindos de Itália ao serviço da corte.  E de Milão vieram também “as mais custosas fazendas” (sic) para decoração do Teatro. Acrescenta que “na sua decoração, ornatos e pinturas, não deixaria de haver a interferência de João Carlos Bignetti, José António Narciso, Manuel do Nascimento e outros “. Caso para dizer que nenhum destes nomes hoje nos diz alguma coisa!...

 

Matos Sequeira elenca os sucessivos reportórios operísticos que durante anos animaram o Rei e a corte, em Salvaterra. E essa atividade lúdica e cultural prolonga-se até cerca de 1863, ano em que diz-nos o mesmo autor “o Teatro e ruinas anexas foi adquirido em praça pelo mestre de obras de Lisboa Domingos Caetano Rodrigues” o qual, acrescenta, desfez as cantarias e alvenarias da Ópera e vendeu-as para se fazer brita da entrada de Salvaterra a Coruche” E acrescenta que “os vestígios do Teatro Real desapareceram assim, transformados num leito de estrada que as passadas, em setenta anos decorridos, desfizeram em poeira”!

 

E no entanto, Gustavo de Matos Sequeira refere para cima de 90 óperas em numerosíssimos espetáculos cantados no Real Teatro de Ópera de Salvaterra de Magos! 

 

DUARTE IVO CRUZ

COMUNIDADE DOS PAÍSES DE LÍNGUA PORTUGUESA

 

IV - NATURAL VERSUS ARTIFICIAL

 

O que não é natural é artificial, é produzido por mão humana e não pela natureza.

 

Coisas naturais são as que não foram feitas por seres humanos, antes pela natureza, estando aptas para crescer por elas próprias e em si mesmas, sem artifícios.

 

Do mesmo modo podemos distinguir entre comunidades naturais e comunidades convencionais ou artificiais, entre uma verdadeira comunidade de países ou povos ou uma comunidade baseada num mero arranjo político, estas últimas usualmente tidas como mais fracas, ao invés das primeiras, por natureza mais fortes e aptas a um futuro mais longo.   

 

No sentido mais antigo e clássico da distinção até agora feita, parece-nos que a CPLP é uma comunidade natural, uma vez baseada em objetivos comuns, como os afetos, a amizade recíproca e uma língua comum, que não são coisas feitas por convenção ou artificialmente, nem impostas por tratados internacionais. 

 

Numa aceção mais moderna, ser-se natural tem vários significados, consoante se aplique ao mundo físico ou à vida humana, nesta se incluindo as comunidades humanas.

 

No que toca à existência humana, natural significa, para os modernos, tudo o que permite uma vida racional de indivíduos iguais e livres, potenciando as possibilidades de uma existência humana autodeterminada, igual, livre, racional. Nesta perspetiva, uma comunidade natural será um lugar comum para indivíduos iguais e livres de forma a aí poderem viver uns com os outros alguma espécie de vida partilhada.

 

Consultando o tratado assinado pelos sete Estados fundadores da CPLP, em Lisboa, em 17.07.96, constatamos que o artigo 1.º dos Estatutos estabelece: “A Comunidade dos Países de Língua Portuguesa, doravante designada por CPLP, é o foro multilateral privilegiado para o aprofundamento da amizade mútua, da concertação político-diplomática e da cooperação entre os seus membros”. O art.º 3.º dos Estatutos, referente aos objetivos da Comunidade, enumera-os: a concertação polítco-diplomática; a cooperação em todos os domínios, desde a saúde, à educação, justiça, cultura, desporto, ciência e tecnologia, defesa, economia, comunicações, segurança pública e comunicação social; promoção e difusão da língua portuguesa.

 

São objetivos vagos, não contendo em si metas precisas, eventualmente porque os membros da CPLP têm interesses geoestratégicos diferentes em função da localização geográfica descontínua em que se inserem, o que dificulta terem um único interesse geoestratégico.

 

O que de primordial têm em comum são os afetos e a amizade mútua, a língua comum e a concomitante herança de um passado recíproco metas que, como já frisámos, são coisas que os tratados internacionais não podem fazer, sendo-lhes anteriores e pré-determinando-os, num certo sentido, razão pela qual uma comunidade baseada em tais princípios não pode prosseguir qualquer função convencional.

 

Mesmo para quem entenda que na atualidade faz cada vez menos sentido a oposição entre comunidade e sociedade, opinamos que na CPLP perduram características da comunidade inspirada em Tonnies, designadamente na sua carga e natureza afetiva, como também o pensam José Filipe Pinto e André Corsino Tolentino. Este último, exemplifica-o bem ao falar nesse “algo comum, que é uma espécie de capital social, que paira no ar e que a gente sente quando circula em qualquer dos nossos países ou em qualquer ambiente onde se fala a língua portuguesa, onde se veja um quadro de um dos nossos pintores ou se assista a um espetáculo em língua portuguesa ou em línguas parentes, esta reação instintiva que temos perante algo que nos pertence e ao qual pertencemos, isto é que é a alma da CPLP. Às vezes, é apenas emocional mas, na minha opinião, sintetiza e representa um capital precioso que foi passando através de gerações e que nos pertence a todos e ao futuro” (entrevista a Filipe Pinto, in “Do Império Colonial à Comunidade dos Países de Língua Portuguesa: Continuidades e Descontinuidades”, Coleção Biblioteca Diplomática, pp. 496, 497). 

 

A questão que agora se coloca é saber se a CPLP existe realmente como uma comunidade natural na aceção moderna de tal termo.   

 

Ainda existe um longo caminho a percorrer para se atingir tal objetivo, embora a lei, em geral, possa ajudar à consolidação de tais objetivos, particularmente, e desde logo, a lei constitucional, em especial a nível dos direitos de participação política dos indivíduos que pertencem a esta Comunidade, para o que será necessária uma harmonização das Constituições dos vários Estados, tarefa facilitada pela existência de uma linguagem jurídica comum a todos eles, o chamado jus commune no domínio do direito constitucional. 

 

Apesar da CPLP ser uma comunidade recente, ela terá de crescer como todas as coisas que são naturais, e que não são convencionadas ou feitas estritamente pelo homem num sentido acabado, sendo uma realidade ainda incompleta, em maturação.

 

Como consegui-lo em concreto, para além das declarações de princípios, sejam de natureza geral comum ou constitucional?   

 

Um exemplo foi dado pela Conferência dos Chefes de Estado e de Governo da CPLP, o órgão máximo desta organização, realizada em 1998, na Cidade da Praia, em Cabo Verde, onde os Sete Estados Membros Fundadores declararam que iriam estudar a possibilidade de estabelecer um Estatuto da Cidadania Lusófona, o qual poderia incluir direitos de igual participação política de todos os cidadãos dos Estados membros dentro da comunidade e medidas tendentes a facilitar a circulação de pessoas.

 

Poderia, à data, a ideia parecer um sonho impossível, mas foi assim que o sonho começou a ser uma pequena parte da realidade, o qual já se concretizou, até agora, na aprovação unilateral pela Assembleia Nacional da República de Cabo Verde do Estatuto do Cidadão Lusófono, tido, por muitos, como o ponto de referência futura para os demais países lusófonos, com as adaptações decorrentes das suas especificidades e compromissos internacionais, sem que isso, per si, impeça a aprovação de uma Convenção sobre o Estatuto do Cidadania Lusófona entre todos os membros da CPLP.         

 

13.03.2018

Joaquim Miguel De Morgado Patrício

CRÓNICA DA CULTURA

 

A vaidade dos desejos

 

Recordo uma história profundamente absurda que incidia sobre uma enorme quantidade de pessoas que ao terem alcançado uma imaginação desalmadamente prolífera, tão logo mencionassem qualquer coisa, e, ela logo lhes surgia ali mesmo à frente dos narizes. Este particular poder conferia-lhes uma vanglória ao anseio que os enchia de ares de tudo ser.

 

E como é complicado determo-nos nesta componente dos poderes, desta feita associada ao orgulho! Assim, e por bizarro que pareça, Aladino estabeleceu com estas gentes uma estranha relação bem mais prática que qualquer ciência pagã.

 

Um dia, estando D. Fernando a passear pela sua longa vinha junto ao Douro eis que lhe surge Rosália a mulher de seu grande amigo Pedro que naquele fim-de-semana lhe faziam companhia no solar. Rosália fundamentava os seus olhares a D. Fernando, no prazer conferido pela verdade da sua beleza madura e, aos poucos, nunca distraídos um do outro, caminharam, a conversar, até à bela adega encerada e de belos sofás de recantos que possuía a quinta.

 

E se nós fossemos capazes de controlar o cosmos, ó Rosália, já pensou nisto? Alguma vez o desejou?

 

Sabe Fernando, os meus desejos são mais antiquados, mais quedos, diria; o meu marido é, como sabe, um homem que se preocupa sobretudo com a objetividade do estado de um fumeiro e tanto lhe basta para me contar com um largo sorriso que este ou aquele ano até o presunto de salmoura terá melhor gosto. Creia que esta ligação digamos, à terra, me faz não pensar no cosmos que, seguramente até um beijo me levaria!

 

Fernando, vendo e sentindo a aproximação do corpo de D. Rosália bem como a chama do seu desafio, rapidamente tornou os três desejos num, chamou por Aladino enquanto esfregava a garrafa de porto e baixinho desejou:

 

Tira-me já de mim este reumatismo maldito!

 

Aladino não cuidou que D. Fernando desperdiçava dois desejos e de imediato cumpriu aquele que seria afinal o desejo de dois breves amantes em tons de rosa.

 

Mas eis que a garrafa, de súbito, escaqueirou-se no chão em pedacinhos, já que as forças sem reumatismo desalinhavam-se para se realinharem no corpo todo e entenderem agora os pesos por ele seguros.

 

Rosália, boquiaberta, avistou de súbito a idade de D. Fernando e a sua e apressou-se:

 

Era tal a vaidade no seu vinho, era tal o desejo que eu o provasse na sua companhia que enfim, um certo comedimento se impôs. É natural, disse, já toda corada.

Não Rosália, não foi bem isso. Eu é que pedi um elefante branco que visse tudo azul.

 

E por temer uma recarga do reumatismo, atirou-se D. Fernando, um tanto sem jeito, para um dos sofás, onde, para seu espanto acabara caído sentado.

 

A partir daqui, diz-se, prevaleceu nos círculos literários um estilo simples e menos cheio de metáforas híbridas que tanto assustavam os leitores, afastando-os dos livros e que bem mais os apavorava, diz-se, do que o vislumbre de um centauro resmungando aos troianos contra o propósito da Guerra de Troia. 

 

Teresa Bracinha Vieira

A FORÇA DO ATO CRIADOR

 

Ellsworth Kelly e Blinky Palermo.

 

‘Art always grows out of other art.’, Ellsworth Kelly

 

No livro ‘The infinite line’, de Briony Fer (2004) lê-se que a pintura de Ellsworth Kelly (1923-2015) é radicalmente diferente do modelo abstrato Americano. Segundo Fer, o trabalho de Kelly prova que a pintura pode adotar novos pontos de vista – em relação ao expressionismo abstrato que dominou os anos 50, ou às ‘Silver Clouds’ de Andy Warhol, ou à banda desenhada de Roy Lichtenstein ou ainda em relação às imagens ‘ready-made’ de Jasper Johns. Nessa medida, Fer introduz o trabalho de Blinky Palermo (antigo aluno de Joseph Beuys) como sendo, na Europa, um caso também de exceção no uso da cor e que introduz uma nova relação desta com a pintura.

 

Nos anos 50, Kelly conseguiu associar a abstração, ao ‘ready-made’ e ao objeto encontrado. As abstrações de Kelly conseguiam assim ser manifestações de algo que se observa e que se experiência no quotidiano: ‘Everywhere I looked, everything I saw became something to be made, and it had to be exactly as it was, with nothing added.’ (Ellsworth Kelly)

 

Kelly dá atenção a tudo o que geralmente as pessoas ignoram. As suas pinturas transportam experiências percetivas dos seus desenhos (que vêm do encontrado, do desperdiçado e do arcaico).

 

Blinky Palermo (Peter Heisteirkamp, 1943-1977), enquanto estudante, era fascinado pelos modelos de abstração utópicos - vindos de Malevich, Mondrian, Lissitzky, Schwitters e do grupo Die Blaue Reiter. 

 

Para Briony Fer, Kelly usa a cor antes como uma espécie de auxiliar de memória. Já Blinky usa a cor, de preferência como parte ou como fragmento. Usa a cor como sendo um modelo colecionável. 

 

Blinky Palermo coleciona assim fragmentos de cor - em 'Yellow-Yellow Composition' (1966) revivifica-se a colagem do desperdício em pequena escala tal como se encontra em Schwitters: 'Palermo's collages are reminiscent of Schwitters's elaborately layered concoctions of the thrown-away paper worlds of an urban culture, but they are also very obviously hand-made.', Briony Fer

 

A lógica do fragmento cortado e espalhado é também entendido no 'Black Angle' (1967). Os pequenos triângulos e os pequenos ângulos, espalhados no pequeno quarto ajudam a questionar uma certa noção de escala. Escala, forma e cor são constantemente ativados e Blinky faz depender estes elementos de um espaço ou situação específica. 

 

Ana Ruepp

LONDON LETTERS

 

The Salisbury Incident, Traitors and, A New Emperor, 2018

 

Um insólito evento médico em tarde domingueira numa pacata cidade de Wilshire suscita inquérito sobre eventual malfeitoria, O ato de rotina identifica sucessivas baixas.

Com um ex espião russo e a sua filha caem o polícia que os socorre mais 21 pessoas, todos entrados no hospital com sintomatologia de envenenamento por toxina letal. O caso torna-se numa mega investigação criminal conduzida pela National Counter Terrorism Policing Network, escalando com envolvimento militar na descontaminação do centro histórico. Uma semana depois, na House of Commons, a Prime Minister aponta responsabilidades ao Kremlin. — Chérie! À l'œuvre on reconnaît l'ouvrier. Westminster agita-se com alegações de débil etiqueta parlamentar. Entre os visados por “bullying” estão o próprio Speaker RH John Bercow e membros do gabinete do Labour Leader RH Jeremy Corbyn. — Oh-oh. A word once spoken is past recalling. Além mares, o US President Donald J Trump acede a encontro com Mr Kim Jong Un para negociar a desnuclearização da Korean Peninsula e isenta de tarifas aduaneiras “the friendly nations.” China denomina Mr Xi Jinping como novo imperador comunista. Russia vai a votos para a presidência. Os franceses debatem a liquidação do Parti Socialiste na Macronie. Aos 90, parte para a eternidade o gentil comediante Mr Ken Dodd.

Very better weather at Central London. Com o Springtime around the corner e os ilhéus especialmente ocupados a nutrir a passarada após a tempestade de neve, vivem-se cenas extraordinárias nas Houses of Parliament. O ensaiado homicídio do antigo coronel do KGB eclipsa quer a Brexit, quer temas quentes na esteira da visita do Crown Prince Mohammed bin Salman como a guerra no Yemen, o abuso dos direitos humanos e o alegado financiamento do extremismo pelos sauditas. Mesmo a murmuração em torno dos bully boys passa para segundo plano. As palavras hoje proferidas por Mrs Theresa May extravasam o Palace of Westminster: "This attempted murder using a weapons-grade nerve agent in a British town was not just a crime against the Skripals, but an indiscriminate and reckless act against the United Kingdom, putting the lives of innocent civilians at risk. We will not tolerate such a brazen attempt to murder innocent civilians on our soil.” Em tom thatcheriano e estilo que relembra abrasivo Lord Salisbury nos idos de 1890 face às pretensões africanas de Portugal, a Prime Minister faz um ultimato a Moscow para, em 24 horas, explicar como é que um gás produzido nos seus laboratórios estatais aparece no reino: “There are, therefore, only two plausible explanations for what happened in Salisbury on 4 March: either this was a direct act by the Russian state against our country; or the Russian Government lost control of their potentially catastrophically damaging nerve agent and allowed it to get into the hands of others.” Donde: “On Wednesday, we will consider in detail the response from the Russian state. Should there be no credible response, we will conclude that this action amounts to an unlawful use of force by the Russian state against the United Kingdom, and I will come back to this House to set out the full range of measures that we will take in response.”

 

O envenenamento do agente duplo em Wilshire compele interessantes comportamentos em volta. Há um exercício nacional de especulação em tríade tipológica whodunit, why him and why here, em cruzamento entre o arguto paroquialismo da Miss Marple e o hábil jogo de raposas de Mister George Smiley. “Based on the positive identification of this chemical agent by world-leading experts at the Defence Science and Technology Laboratory at Porton Down, our knowledge that Russia has previously produced this agent and would still be capable of doing so, Russia’s record of conducting state-sponsored assassinations and our assessment that Russia views some defectors as legitimate targets for assassinations, the Government have concluded that it is highly likely that Russia was responsible for the act against Sergei and Yulia Skripal,” declara a senhora do No. 10. O caso oficialmente classificado nas páginas do Hansard como “Salisbury Incident” parece mesmo saído dos clássicos mundos ficcionados de Dame Agatha Christie e de Mr John Le Carrè. Os ingredientes literários estão cá todos, desde a receita de subtil crime em paisagem bucólica cujo desnudamento revela fantasmas de um mundo de sombras até ao dilemático questionamento sobre o justo destino dos traidores – ainda que comprometidos pelo MI6 e em tempo oportuno colocados ao serviço de Her Majesty. À memória vem a série longa das estranhas mortes que ocorrem na rota britânica do Federal Security Service of the Russian Federation, a agência que sucede ao famigerado KGB no quartel general de Lubyanka Square.

 

Mas no mais sério incidente diplomático do pós Cold War há também audíveis vozes em Britain a sustentar conspiração ocidental para comprometer Mr Vladimir Putin em véspera de eleições de nula competitividade. Aqui os anais registam Mr Anthony Blunt, espião britânico que nos 50s trai a favor dos soviéticos em nome da ideologia: “Well, it’s given me great pleasure to pass on the names of every MI5 officer to the Russians!”

 

A testar as fronteiras morais no globo estão mais que mortíferas substâncias químicas concebidas nas provetas secretas. A usança do “state lab nerve gas” vai agora inflamar as tensões East-West. A Russian Federation nega tudo, of course. O prazo de London extingue-se dentro de momentos. Os Skripals lutam pela vida em câmaras de cuidados intensivos enquanto os demais recuperam. Com contornos que impõem o envolvimento da NATO na defesa de um dos seus membros, London examina já um leque de medidas retaliatórias que previsivelmente irão de novas sanções económicas e cativação de capitais à expulsão do embaixador até a potencial retirada simbólica do World Cup agendado para terras russa neste Summer. Downing Street promete resposta robusta, requerer o apoio ativo dos Allies e colocará o assunto no UN Security Council. Por apurar está, porém, a real mira nos alvejados Skripal e Salisbury.  — Yet. Even Master Will put the assassin agonizing over the temptation to kill King Duncan in Macbeth: — “If it were done when ’tis done, then ’twere well / It were done quickly: if the assassination / Could trammel up the consequence, and catch / With his surcease success; that but this blow / Might be the be-all and end-all here, / But here, upon this bank and shoal of time, / We’d jump the life to come. But in these cases / We still have judgment here; that we but teach / Bloody instructions, which, being taught, return / To plague the inventor: this even-handed justice / Commends the ingredients of our poison’d chalice / To our own lips...."

 

St James, 12th March 2018

Very sincerely yours,

V.

A VIDA DOS LIVROS

 

De 12 a 18 de março de 2018.

 

A Sinfonia nº 2 de Gustav Mahler, que o autor designou como “Ressurreição”, constitui uma obra-prima da história da música de todos os tempos.

 

 

MOTIVO DE MEDITAÇÃO
Neste tempo de Quaresma, ouvir a Sinfonia nº 2 de Mahler (1860-1911), à qual o autor daria o título de “Ressurreição”, constitui motivo de intensa meditação (Coro e Orquestra Gulbenkian, Maestro David Afkhan). Estamos no centro do Mistério Cristão e o grande compositor fez questão de pôr nesta sua obra o essencial do caminho que o levaria à conversão (1897). Sendo certo que a estreia é de 1895 em Berlim, a verdade é que a versão final é de 1903 – abrangendo o resultado da evolução pessoal. De facto, a ideia nasceu quando Gustav Mahler ainda estava a escrever a primeira sinfonia, no final dos anos oitenta, sentindo necessidade de dar uma identidade própria aos temas que agora se encontram, numa das obras-primas da música de sempre. Pode dizer-se, aliás, que esta segunda sinfonia acompanha o caminho espiritual do seu autor, verificando-se que no início se nota angústia e sofrimento, que vão evoluindo gradualmente no sentido de uma espiritualidade libertadora. Eduardo Lourenço dirá: “Mahler começa a grande oração da nossa Ausência que é ao mesmo tempo a de uma Busca como esta que desenrola os seus desertos e as suas reversíveis imagens neste mar de música em alma sem orla imaginável” (Tempo da Música, Música do Tempo, Gradiva, 2012, p. 54). E este dilema desenvolve-se numa procura determinante. Na parte final, a soprano diz-nos: “Ah, crê: não nasceste em vão / Não foi em vão que viveste, sofreste”. Ao que coro e contralto respondem: “O que foi criado tem de perecer! / O que pereceu ressuscitará! / Para de tremer! / Prepara-te para viver!”. E assim o compositor antecipa o momento final, em que, depois das naturais dúvidas, inerentes à própria natureza da fé, o coro proclama triunfalmente: “Com asas, que para mim ganhei, / Desaparecerei! / Morrerei para poder viver!”. Aqui estamos no momento crucial do próprio percurso individual do autor, que se implica diretamente na consideração da obra como uma ilustração do percurso existencial. “Ressuscitarás, sim, ressuscitarás, / Meu coração, num instante! / Aquilo por que lutaste / A Deus te levará!”.

 

DA DÚVIDA À ESPERANÇA
O começo da Sinfonia nº 2, segundo o próprio Mahler tem a ver com a meditação exasperada sobre a condição mortal da humanidade. Eis por que encontramos pontos de contacto com a terceira sinfonia de Beethoven (“Eroica”) – uma marcha fúnebre contrasta com a perspetiva lírica. Com um extremo cuidado técnico, graças a um complexo e hábil recurso a dissonâncias harmónicas, encontramos a coexistência do sofrimento e da esperança… Depois, temos uma inocente e nostálgica visão do passado individual do herói – e a alegria vai contrastando com a ideia de morte. Um ambiente campestre e idílico evolui no sentido de uma visão incerta e perplexa sobre a vida De que valerá algo que está condenado a desaparecer e é estéril? E G. Mahler recorre a material relacionado com a canção do “Sermão de Santo António aos Peixes” (1893) – para salientar como o santo, perante a indiferença e a incapacidade de as pessoas ouvirem o que quer que fosse, se dispõe a falar aos peixes (“O bom Deus enviar-me-á uma pequena luz”…). Lembramo-nos deste tema, bastamente glosado pelo Padre António Vieira. E assim chegamos ao quarto andamento, em que o compositor insiste no desejo de libertação dos dramas humanos em direção à transcendência. À complexidade anterior sucede uma maior simplicidade (enquanto clareza na expressão) que, no entanto, é produzida por uma orquestração muito cuidada, apenas possível graças à grande capacidade inovadora de se autor. Dir-se-ia que estamos perante uma autêntica depuração espiritual, em que o sofrimento e a angústia iniciais dão lugar a uma paz de espírito, que não deixa de conter no seu íntimo toda a diversidade de um sentimento pleno de tensões contraditórias. É por isso que a Sinfonia nº 2 de Mahler tem hoje tanto sucesso (que no início não foi claro) – de facto, há na mesma obra não apenas a presença da personalidade complexa e riquíssima em termos espirituais de Mahler, mas também a capacidade revelada por um artista genial, capaz de usar uma panóplia inesgotável de meios artísticos ao serviço de uma forte emancipação humana. E assim no final da sinfonia temos a recapitulação do caminho percorrido: o ambiente fúnebre do começo, o tema “Dies Irae”, que corresponde à consciência da pequenez e da imperfeição, a que sucede a marcha orquestral que ilustra a procissão para o “Juízo Final”, até que soa a última trombeta do Apocalipse. E assim dá-se início à cantata sinfónica final, já aqui referenciada – com o poema “Ressurreição” de Friedrich G. Klopstock (1724-1803), grande poeta anunciador do romantismo – num extraordinário crescendo que representa a afirmação do autêntico júbilo, assumido como força vital pelo compositor, num momento crucial da sua vida atribulada, em nome de uma esperança forte e renovadora.     

 

Guilherme d'Oliveira Martins
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