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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

A VIDA DOS LIVROS

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   De 30 de abril a 6 de maio de 2018


«La Tête Bien Faite» de Edgar Morin (Seuil, 1999) constitui uma reflexão de uma grande atualidade e oportunidade, que parte da consideração de Montaigne, segundo a qual, mais vale uma cabeça bem feita, que uma cabeça bem cheia…

 

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QUE PERFIL DOS ALUNOS?

Na sequência do documento sobre o Perfil dos Alunos à saída da Escolaridade Obrigatória muitos têm sido os que, em mensagens pessoais, me têm feito chegar opiniões encorajadoras. Mais do que preocupações diretamente ligadas às questões curriculares, que não devem confundir-se com as opções ligadas ao trabalho que tive a honra de coordenar, o que encontro nas preocupações manifestadas tem a ver com o seguinte: (a) uma sociedade como a portuguesa precisa de colocar a educação e a formação como primeiríssima prioridade; (b) é a aprendizagem e a sua qualidade que têm de ser postas na ordem do dia, como fatores essenciais de desenvolvimento humano; (c) não se trata de ver o aluno como um futuro profissional ou técnico, mas de o considerar como pessoa e cidadão, aptos a corresponder aos desafios da incerteza e da complexidade; (d) a definição de um perfil não pode confundir-se com um molde, devendo ser encarada como um quadro essencial capaz de se constituir uma referência permanente para o aperfeiçoamento da educação e da escola; (e) nos diversos domínios da educação e da formação não deve haver incerteza e instabilidade ditadas pelos ciclos políticos e eleitorais; (f) os progressos alcançados no médio e longo prazos entre nós corresponderam à convergência de diversos elementos – alargamento da escolaridade obrigatória, educação pré-escolar, aperfeiçoamento da avaliação nos diversos domínios relevantes, melhoria da rede escolar, reconhecimento de competências adquiridas, ensino profissional e artístico, formação de professores, progressos no ensino superior etc.; (g) não pode haver, assim, a tentação de considerar a uniformização como método adequado de criação de uma rede pública de educação eficiente, justa, de qualidade para todos. Eis por que razão uma perspetiva humanista procura centrar-se na dignidade humana, na cidadania ativa e responsável, na capacidade de ler e compreender o mundo contemporâneo e na resposta adequada aos desafios do desenvolvimento humano.

 

OS DESAFIOS PARA OS PORTUGUESES

Os avanços alcançados em Portugal em virtude da democracia merecem ser realçados, mas exigem um esforço permanente no sentido da continuidade e do aperfeiçoamento no sentido da qualidade. Não podemos esquecer que as comparações internacionais revelam que os melhores sistemas educativos evoluem no sentido de novos progressos. Os nossos estudantes estão, assim, confrontados a cada passo com os avanços conseguidos no que de melhor ocorre em outros países. Daí que tenha de haver um equilíbrio que considere o acesso de todos à educação, a existência de medidas que contrariem o insucesso e o abandono escolar e a promoção da qualidade. É verdade que a educação não pode ser confundida com uma corrida de obstáculos, no entanto impõe-se que haja a consideração de diversos fatores, de modo que as desigualdades sejam contrariadas e não se tornem elementos indutores de injustiça e de discriminação. Mas sejamos claros: a escola deve formar pessoas e cidadãos aptos a pôr em prática e a dar sentido aos valores da responsabilidade e integridade; da excelência e exigência; da curiosidade, reflexão e inovação; da cidadania e participação; e da liberdade. A escola visa alcançar educação de qualidade para todos – cabendo as políticas sociais garantir a igualdade de oportunidades e a correção das desigualdades. Não pode haver confusão de funções ou inversão de prioridades. Os conhecimentos e a preparação de cidadãos cultos, livres, responsáveis e informados não podem ser subalternizados em relação a supostas medidas de índole social. A diferenciação positiva obriga a considerar cada aluno com as suas especificidades próprias, segundo uma pedagogia correta e adequada. A qualidade nas diferentes áreas de competências tem, por isso de ser especialmente considerada: linguagem e textos; informação e comunicação; pensamento crítico e criativo; raciocínio e resolução de problemas; saber científico, técnico e tecnológico; relacionamento interpessoal; desenvolvimento pessoal e autonomia; bem-estar, saúde e ambiente; sensibilidade estética e artística; consciência e domínio do corpo.


RECONHECIMENTO DAS DIFERENÇAS

O reconhecimento das diferenças pessoais obriga à necessidade de considerar a motivação, o reconhecimento das capacidades, o acompanhamento das aprendizagens, as correções necessárias – de modo que a educação para todos seja uma realidade, ninguém devendo ficar para trás ou ser preterido por razões sociais ou económicas. É este, aliás, o sentido da ponderação de um núcleo fundamental de aprendizagens e de uma margem de flexibilidade que permita ir ao encontro das diferenças, sem pôr em causa um denominador comum que considere a coesão social e cultural e evite a fragmentação e a exclusão. Neste ponto, importa voltar a distinguir a função reservada à definição de um «Perfil» da consideração do desenvolvimento curricular. Não são confundíveis. Enquanto o «Perfil» pretende ser mais estável e duradouro, não dependente dos ciclos eleitorais, a organização curricular, devendo respeitar as preocupações fundamentais, pode e deve ser ajustada – segundo um desígnio de permanência e de estabilidade. O mesmo se diga em relação à margem de flexibilidade – que deve ir ao encontro da exigência de motivação dos estudantes e de contribuição para que haja melhores aproveitamentos, melhor qualidade, menos abandono e maior ligação entre a escola e a comunidade. Assim, sem querer pôr em causa a salvaguarda da função integradora do «Perfil», torna-se fundamental referir que muitas das preocupações suscitadas por críticos do processo deverão ter resposta positiva, no sentido da exigência, da qualidade e da avaliação. É essa a orientação definida no “Perfil” – de modo que para todos seja salvaguardada a capacidade de transformar informação em conhecimento, bem como de responder aos fundamentais desafios do progresso. Se falamos de avaliação, importa deixar claro que estamos perante um desafio complexo e necessário que não pode limitar-se à avaliação dos estudantes, devendo abranger as instituições e os professores – como, aliás, é consagrado nos sistemas que apresentam melhores resultados globais e níveis comparados de qualidade.


A CHAVE DA APRENDIZAGEM

O aprender a conhecer, o aprender a fazer, o aprender a viver juntos e a viver com os outros e o aprender a ser, referidos no relatório da UNESCO, coordenado por Jacques Delors, constituem elementos que devem ser vistos nas suas diversas relações e implicações. Isto mesmo obriga a colocar a educação durante toda a vida no coração da sociedade – pela compreensão das múltiplas tensões que condicionam a evolução humana. Não há melhor investimento do que na valorização das pessoas. Devemos, pois, compreender os sete pilares que Edgar Morin considera essenciais para a Educação, numa cultura de autonomia e responsabilidade: (a) prevenção do conhecimento contra o erro e a ilusão; (b) ensino de métodos que permitam ver o contexto e o conjunto, em lugar do conhecimento fragmentado; (c) o reconhecimento do elo indissolúvel entre unidade e diversidade da condição humana; (d) aprendizagem duma identidade planetária considerando a humanidade como comunidade de destino; (e) exigência de apontar o inesperado e o incerto como marcas do nosso tempo; (f) educação para a compreensão mútua entre as pessoas, de pertenças e culturas diferentes; e (g) desenvolvimento de uma ética do género humano, de acordo com uma cidadania inclusiva. Torna-se, pois, fundamental encontrar um ponto de convergência que permita assegurar que a educação e a formação das pessoas seja assumida como prioridade nacional. Cuidando dos princípios, da visão, dos valores e das áreas de competências estamos a tratar do assumir pleno de responsabilidades num mundo em acelerada mudança… Temos condições únicas para o conseguir, aproveitando as potencialidades da geração mais qualificada que alguma vez existiu em Portugal.

 

Guilherme d'Oliveira Martins
Oiça aqui as minhas sugestões - Ensaio Geral, Rádio Renascença
 

 

CARTAS DE CAMILO MARIA DE SAROLEA

 

Minha Princesa de mim:

 

    É claro, também, no palco político-diplomático do mundo, que os discursos se assemelham, cada potência se declarando alvo de perseguição pela outra, e vítima de conspirações sucessivas. Estamos em pleno teatro trágico-cómico, de que o episódio Skripal (ainda por cima o homem, ao que consta, era espião duplo...) é lamentável cartaz e nem sequer serviu cabalmente para escamotear os vários e graves problemas, que o Reino Unido tem com o Brexit, quer internamente (Escócia e Irlanda do Norte, entre outros; ou o da crescente percentagem de votantes "sim" que hoje se sente aldrabada no referendo), quer externamente (se os parceiros europeus do RU se sentem desagradados, o Brexit encontra dois aliados (promotores?) estranhos: EUA e Rússia). Além disso, quiçá tivesse sido mais prudente, e certamente mais inteligente, apontar-se sem formar culpas o gravíssimo incidente de tentativa de homicídio com arma internacionalmente proibida e reclamar-se a condenação internacional do mesmo, solicitando-se a organização de esforços convergentes de investigação de responsabilidades, que envolvessem todos os possíveis suspeitos. Mas preferiu-se a precipitação e o arremesso de culpas não substancialmente provadas (ainda por cima, ao que consta, o tal gás também já poderá ter sido fabricado no RU...). Bem estiveram o Presidente da República e o Governo de Portugal, tal com muitos pensadores independentes, como Jaime Nogueira Pinto, que se pronunciaram pela independência de juízo portuguesa. Não sou, nem quero ser, comentador político. Ao conversar epistolarmente contigo, Princesa de mim, falando destes temas, procuro apenas olhá-los caleidoscopicamente. Assim, sobre o caso Skripal em geral, e a posição até agora assumida pela diplomacia portuguesa. E não esquecendo que Theresa May talvez se tenha lembrado de Margaret Thatcher que, nos finais dos anos 70, para distrair a opinião pública da dureza da sua política relativamente aos mineiros grevistas, ressuscitou o caso Anthony Blunt, que chegara a ser conservador das coleções de arte da Coroa britânica e professor consagrado e condecorado, mas fora comunista na juventude, e não só, mesmo chegando a ser espião por conta da URSS, em tempo de guerra.... [Ele pertencia, tal como Kim Philby e Guy Burgess, ao célebre Grupo dos Cinco de Cambridge]. Tal como tenho memória fresca de notícias sobre a brutalidade com que Putin pode tratar oponentes e adversários...

 

   A chamada "Guerra Fria" sinalizava um clima de tensão entre duas grandes potências e seus respetivos aliados, cada grupo constituindo um bloco ideológico, político, económico e militar, em que, felizmente, a diplomacia ia tendo umas oportunidades de intervenção, sobretudo devido à memória amarga que, de um lado como do outro, os povos guardavam da barbárie da 2ª Grande Guerra, bem como à consciência generalizada de que qualquer conflito à escala global poderia implicar o recurso a armas nucleares, cujo poder de destruição, até essa altura, "apenas" fora testado em Nagazaki e Hiroshima, pelos americanos. Foi-se, pois, fazendo friamente a guerra, como quem joga num tabuleiro de damas ou xadrez, colocando agentes e conflitos em palcos alheios. E fazendo batota, claro, cada jogador dispondo redes de espionagem e procedendo a "execuções" cirúrgicas, independentemente de se ser ditadura ou democracia a dar ordens: entre muitos outros, incluindo franceses e israelitas, e não só, foram-se celebrizando KGB, CIA ou M15 e 16... A autêntica competição, todavia, situava-se sobretudo na corrida ao armamento e no desenvolvimento das tecnologias inerentes ao complexo militar e industrial, designadamente no domínio espacial. Em tudo isto, o que contava era o campeonato, as ideologias eram para esquecer. O problema maior, para cada concorrente, era o financiamento da aventura. Neste capítulo, o capitalismo liberal mostrou-se mais capaz de resultados do que o capitalismo estatal. E, para o que ao tema nos traz, Princesa de mim, não foi despicienda a participação de um maior número de democracias na globalização e incremento das trocas comerciais. A vitória "ocidental" deveu-se ao desafogo económico conseguido, que não só beneficiou os países participantes, como fomentou um mimetismo político-económico na zona comunista, assim levada a promover glasnost e perestroika...

 

   "Roma e Pavia não se fizeram num dia", tampouco se desfazem, de hoje para amanhã, mazelas e cicatrizes deixadas pela "guerra fria"... Mesmo no subconsciente popular vão ficando referências como "Europa de Leste", mais com carga ideológica e política, e até de sinónimo de barbárie, do que simplesmente apontando um posicionamento geográfico... Por essa e outras se vai mantendo um clima mental de guerra fria, apesar do fim do bloco soviético e do crescimento de relações a vários níveis e em muitos campos, desde a agricultura ao comércio, das infraestruturas aos combustíveis energéticos, artes e futebol. Curiosamente, aliás, os maiores investimentos financeiros em clubes de chuta a bola muito populares em países como o Reino Unido, a França, etc., têm acentuada origem em magnates árabes, chineses e...russos! E olhemos para as bandeiras nacionais dos países de leste, alguns dos quais hoje membros da UE, que ostentam símbolos heráldicos de passadas monarquias e impérios (reparaste, Princesa, nas cruzes e águias bicéfalas exibidas sobre edifícios públicos de Moscovo e S. Petersburgo?), e prestemos atenção às razões que levam alguns deles a eleger governos nacionalistas que, no "ocidente", seriam de direita-direita. Sofreram quase meio século de dependência e humilhação, não tiveram, depois, como a RDA, uma outra metade abastada no lado de lá (de cá, para nós) que os ajudasse a mais fácil integração num regime socioeconómico diferente. Ainda por cima, tiveram de passar por crises de confiança e identidade... As sociedades não se transformam por toques mágicos nem eletrónicos ou informáticos. Os povos, além de resistentes, são resilientes (qualificativo que, como bem sabes, Princesa de mim, é hoje empregue pelos nossos políticos com significação algo confusa...). O fim da "guerra fria", Princesa, permitiu e promoveu uma corrida aos  armamentos mais alargada, a emergência de mais potências regionais, algumas com tentações evidentes de interferência a nível global... A guerra mundial de hoje é, como foi na "guerra fria", uma semear de conflitos parciais, com a diferença de que as grandes potências - que sofreram revezes, como os EUA no Vietnam e a URSS no Afeganistão  -  têm agora de procurar fomentar alianças ou blocos regionais, retirando os seus próprios peões da liça : pensa, Princesa, no recente entendimento russo-turco-iraniano sobre a Síria, em simultaneidade com o anúncio de retirada de Trump.

 

   Mas também guardo, para carta por seguir, uma reflexão sobre a Europa e o que nela já foi, é hoje, e poderá ser ocidente e oriente, sem esquecer essa ideia inicialmente alemã da Mitteleuropa (título do livro do geógrafo Joseph Partsch, publicado em 1904), que até serviu para desenhar um espaço político a separar a Europa da Rússia, nação europeia, cujo estado ocupa o maior território nacional do mundo, quase todo na Ásia, de que a Europa apenas é uma península dela separada pelos Urais... 

 

Camilo Maria

 

Camilo Martins de Oliveira

NO TEATRO DE D. MARIA, A EXPOSIÇÃO SOBRE AMÉLIA REY COLAÇO

 

O Teatro Nacional de D. Maria II organizou uma exposição de fotografias  evocativas da carreira de Amélia Rey Colaço (1897-1990), designadamente, mas obviamente não só, nos anos em que dirigiu precisamente o TNDM II, onde começou a atuar no início dos anos 20 e que codirigiu  desde 1930, primeiro com o seu marido Robles Monteiro  até à morte deste em 1958, e depois dessa data até ao incêndio que em 4 de dezembro de 1964 quase destruiu o teatro, obrigando a empresa a uma certa itinerância oficinal. 

 

Passou para o Teatro Avenida, mas este também arde em 1967! 

 

Amélia continua no entanto a dirigir a Empresa Rey Colaço-Robles Monteiro em sucessivas temporadas no Capitólio e no Trindade, até se retirar de cena, mantendo no entanto atividade ligada ao teatro, ao cinema e à televisão. E recorda Jorge Leitão Ramos no “Dicionário do Teatro Português” que Amélia em 1978 exerceu funções de consultora no Museu do Teatro, em fase de organização.  

 

Como atriz, Amélia Rey Colaço estreou-se em 1917 no então Teatro Republica, atual São Luiz, com uma peça, “Marinela” da autoria dos dramaturgos espanhóis, à época  mais do que hoje conhecidos e celebrados, Irmãos Quintero. Não mais deixará de estar ligada às artes do espetáculo e, durante décadas à própria direção e encenação, em Portugal e também com certa regularidade no Brasil. 

 

Deixou a direção do Teatro Nacional em 1974. Mas ainda em 1985 esteve ligada à estreia em Portalegre da peça “El Rey Sebastião” de José Régio, o qual, como sabemos, foi docente, dezenas de anos, no Liceu local. 

 

A exposição do Teatro Nacional documenta através de fotografias essa longa carreira de atriz. Desde logo na primeira personagem da estreia, a Marinela, em fotos da sua irmã Alice Rey Colaço. Segundo refere o texto que documenta a exposição, a jovem Amélia terá enviado as fotografias ao escritor Afonso Lopes Vieira (18978-1946) para saber a sua opinião. Lopes Vieira era então um nome exponencial da sociedade e da cultura portuguesa. Amélia daria relevo a essa opinião, na época reforçada pelo prestígio do escritor. 

 

A exposição mostra fotografias de Amélia Rey Colaço, a sua filha Mariana Rey Monteiro e outros elementos da companhia numa visita aos escombros do Teatro, na manhã seguinte ao incêndio.  De tudo isto guardo memória. 

 

Seja-me pois permitido transcrever um texto que na altura, jovem estudante na Faculdade de Lisboa mas também estudante na cadeira de Estética Teatral e Filosofia do Teatro no Conservatório Nacional e já colaborador no imprensa, escrevi logo a seguir ao incêndio:

 

“Estive no Teatro Nacional de D. Maria II às primeiras horas da manhã trágica, e guardarei para sempre na memória a sensação terrível que aquele monte de ruínas provocou. Com alguma dificuldade (ainda se percebiam focos de incêndio) consegui assomar ao buraco de um resto de camarote: e assim foi-me fácil entender o caráter brutal da destruição. O palco, visto da sala, nada mais mostra do que uma estrutura negra – e a sala, vista do palco, completa o panorama desolador”... 

 

Este desastre surge documentado na exposição, bem como o espetáculo que dias depois a Companhia realizou no Coliseu dos Recreios com o “Macbeth”, numa inesquecível homenagem aos artistas do Teatro Nacional!... 

 

Vale pois a pena visitar a exposição sobre os 120 anos de Amélia Rey Colaço: por tudo isto mas também pela evocação da carreira de uma atriz e diretora de teatro que marcou época e que é  homenageada precisamente no Teatro que durante tantos anos dirigiu e prestigiou.  

 

DUARTE IVO CRUZ

A LÍNGUA PORTUGUESA NO MUNDO

 

XXXIII - CONVIVENDO ENTRE O NACIONAL E O INTERNACIONAL

 

A nossa integração na Europa não deve implicar a nossa dissolução como nação.

 

Não podemos esquecer a nossa dimensão histórica, atlantista, lusíada, lusófona da portugalidade. Esta nossa dimensão abriu-nos ao mundo, pelo que não podemos estar só virados para a Europa.

 

A língua portuguesa é um exemplo exemplar de uma apetecível e saudável convivência entre o nacional e o internacional, dada a sua dimensão identitária, de coesão, lusíada, de disseminação pelos descobrimentos, de diáspora portuguesa, lusófona e contemporânea, intercontinental, transnacional, transoceânica, migratória, miscigenada, pluricêntrica, pluricultural, global, internauta e de exportação.   

 

O português não é um idioma menor, mas é um idioma menorizado no plano multilateral a nível internacional. Embora tenha um número crescente de consagrações a nível formal em várias instituições internacionais, não tem, adequada e proporcionalmente, a desejável aplicação prática. E são muitos os portugueses que o promovem, ao usarem outras línguas e deixarem-se deslumbrar por isso, talvez porque julguem ter uma receção mais simpática e afetuosa pelos destinatários, mas secundarizando o português, mesmo quando desnecessário. Apesar de mais falada que outras, há-as menos faladas com maior consagração formal, como o italiano e o russo.

 

Se uma língua para ser verdadeiramente cosmopolita e internacional tem de ser falada e  ouvida nos fora internacionais, deixando de ser um idioma regional, local e  paroquial, não pode servir apenas os seus nacionais e utentes internos, nem contribuir para o culto e manutenção do uso confidencial da língua.

 

Tem de se acreditar nela como uma partilha total, sem graus de pertença, com tipos diferentes de gozo, uso e fruição, desde língua materna, oficial, segunda, estrangeira, internacional, global e de exportação. 

 

É uma alteração fulcral a operar, dada a sua internacionalização, deixando de ter pertenças e sentimentos de posse exclusiva, sendo o preço a pagar pela sua expansão, permanência e subsistência no longo prazo.

 

E entre o que nos diferencia, prestigiando-nos, e universaliza, internacionalizando-nos, numa coexistência entre o que somos e o que desejamos ser em interação com os outros.

 


24.04.2018

Joaquim Miguel De Morgado Patrício

CRÓNICA DA CULTURA

 

Pedia sentado no chão, sempre numa das esquinas da Place Vendôme. Fora para Paris há 27 anos e nunca a vida lhe fora propícia, acabando na rua, e dormindo num quarto gélido de um sótão de uma casa ali perto, por generosidade do proprietário a quem fazia todas as compras necessárias e lhe limpava a casa a troco.

 

A sua vida era feita de longos sonos sem dormir e de longos dias sem esperança. Fome e frio deitavam-lhe cartas de má sorte. Quando estas apertavam mais, lembrava-se de uma cómoda antiga que tinha herdado de um tio e que era o grande bem que lhe restava no quarto onde dormia. Via aquela cómoda como uma hipótese de independência face à tragédia. Temia por ela e por essa razão limpava-lhe o pó com o cobertor no qual se enrolava numa espécie de colchão para dormir, e olhava-a sempre como seu aval contra o mundo antes de adormecer.

 

De quando em vez, entrava numa igreja, não para rezar, mas para se acolher do frio e logo que essa eterna cicatriz de inverno se atenuava no seu corpo, voltava à esquina da Place Vendôme, qual país onde fora para ficar.

 

Um dia, quase ao anoitecer, chegado de breve estada na igreja, encontrou uma mulher a chorar na esquina onde costumava estar. Aproximou-se dela e viu uma beleza indecifrada a deitar fora tempo de vida através de largas lágrimas, num soluçar de corpo que casado ao frio a não deixava esconder um tremer que tudo nela anunciava, ser sofrimento.

 

Desculpe – disse -, desculpe o que tem? Como se chama? Eu moro aqui, exatamente no sítio onde está, ou seja moro aqui e noutro sítio ali em cima, tão esquina de ar gelado quanto este, mas mágico quando de repente aquece e diz tudo dos poderes que eu não receio, e que você deixará de recear também. Venha comigo, venha

 

E os olhos de Nicolau não deixavam aquela mulher, na verdade, desviavam-se e repetiam-na

 

Sou Julieta. Não tenho de existir. Entende? - Disse-lhe num grito de desespero - Mas não sou corajosa. Choro em vez de ter ido com o rio.

 

Logo ali pressentira Nicolau um jogo. Não decifrava a pessoa contida naquela mulher. Contudo ela apoiara-se nele e juntos subiram as longas escadas até ao quarto do sótão. Cobriu-a com o seu cobertor e julgou vê-la num quase-sorriso ou a vela projetava-lhe um alívio de lágrimas nos olhos, apenas por cumplicidade? Não descortinava. Todavia, Julieta continuava a tremer enquanto intrigada o olhava baixinho.

 

O velho machado que cortava a lenha para a velha e mal albardada salamandra do sótão, que ardia apenas quando alguma rara lenha lhe chegava, abriu de um só golpe a cómoda ao meio. Nicolau fora certeiro. Mais umas machadas nas poucas gavetas e já estas cabiam dentro da salamandra enquanto uma cor rosa começava a aquecer o quarto com o perfume de volúpia vaidosa de uma cómoda antiga. E vendo tal coisa acontecer, Julieta abriu com o braço uma parte do cobertor com o qual se se abrigava e assim o chamou para aquele calor de uma lonjura sem palavras que se continha junto dela.

 

Ainda disse a Nicolau com ar de desvendamento

 

Não vejo aqui mais nada para arder no teu quarto. Saibas tu, que eu não sou uma primeira escolha da vida, nem o meu choro merece esta poderosa magia que o teu sótão encerra.

 

Apertaram as mãos e assim ambos adormeceram.

 

Nicolau sonhou-se numa caça com alimento fresco e companhia na partilha.

 

Pela manhã, não viu Julieta a seu lado. Tão só um pedaço de madeira no qual ela escrevera

 

O rio não me espera.

 

Teresa Bracinha Vieira

A FORÇA DO ATO CRIADOR

 

Arquitetura. Forma do mundo e forma criada.

 

‘Uso o termo arquitetura num sentido positivo e pragmático, como uma criação inseparável da vida civilizada e da sociedade em que se manifesta.’, Aldo Rossi, L’architettura della cittá, 1966

 

Existe uma relação intrínseca entre as formas do mundo e as formas criadas. As formas que moldam a arquitetura contêm assim vida. 

 

As formas do mundo (matéria, que é vida já em sim) provocam no homem a acção de criar novas formas.

 

As formas são ativadas/criadas através de mecanismos intuitivos e têm a capacidade de ativar outros mecanismos ao serem assimiladas. 

 

A forma criada resulta de omissões ou acrescentos. Apresenta limites e indeterminações. É durante o processo de criação que o homem vai tendo uma imagem cada vez mais clara do que está em formação. A matéria é transformada por um processo físico, por ações e não por meras sensações.

 

As ideias advêm das formas da materialidade do mundo. A intuição é uma receção/perceção consciente e instantânea de um sinal/forma que imediatamente o homem transcreve e transmite na medida das suas capacidades. A perceção consciente resulta do poder de escolha do homem, e reflete as coisas do mundo, tal como um espelho. 

 

Pablo Palazuelo nos 'Cuadernos Guadalimar' (1978) escreve que o homem criador é um instrumento que aumenta a duração ou a intensidade do mundo, é um eco, um reflexo e uma repercussão. Uma forma nova procede de uma já existente e assim sucessivamente.

 

'La materia llamada orgánica o viviente, tiene su razón de ser em el ejercício de una constelación de funciones que son imprescindibles, para que ese cuerpo pueda continuar viviendo, desarrollándose y transformándose. Todas las vidas se transforman de unad en otras perpetuamente, 'como pasando', como en un fluir por siempre en busca de la forma otra, de la forma siempre nueva... la vida y sus formas no tiene fin.', Palazuelo

 

Ana Ruepp

LONDON LETTERS

 

The Royal Baby, The Global Family and, Her Maj’s choice, 2018

 

A thankful, grateful and, extraordinary St George’s Day. Wonderful news: A new Prince is born. Às 11:01 no dia do venerável patrono de England e data do nascimento de William Shakespeare nasce o terceiro filho dos Dukes of Cambridge, William e Kate. É o sexto neto de HM Elizabeth II e o quinto Windsor em linha para o trono britânico. — Chérie! Le bonheur de I'enfant est celui de la rose, qui fait ses perles d'un peu d'eau! Já o Home Office tenta reganhar as rédeas burocráticas no Windrush Generation Scandal.

RH Amber Rudd apresenta desculpas aos cidadãos erradamente visados com deportação e promete ressarcimento, mas o voto étnico parece perdido para os Tories nas eleições locais de 4 May. — Well. In great misfortunes 'tis that valour is shown. Fora de portas, tudo anda também muito animado. O French President Emmanuel Macron está de visita oficial a Washington DC, após uma prévia paragem em… Berlin. O comércio transatlântico e questões multilaterais como o acordo nuclear com o Iran estarão em foco também no encontro seguinte da White House, entre a Bundeskanzlerin Angela Merkel e o US President Donald J Trump. Por cá, o Commonwealth Heads of Government Meeting consagra o Prince Charles of Wales como sucessor de Her Majesty no leme da Global Family.

 

Beautiful, long and exciting days at Central London, with a royal arrival. A atmosfera festiva em torno de St James afigura-se até ininterrupta e em contraste com a neblina política em Whitehall. Se, ao som da “Carmina Burana,” a colorida e sempre populosa London Marathon domina um Sunday ainda fruído pelos nativos com banhos de sol no verde em volta, o clima de celebração popular abre cedo no Saturday, entre bandas e fanfarra militar, com a 21 gun-salute na Tower Bridge e em Hyde Park a saúdar o 92.º aniversário de Her Majesty The Queen. Nascida a 21 April 1926, uma radiante Elizabeth II encerra as comemorações com um televisionado concerto em Royal Albert Hall, onde, surpresa das surpresas, emerge político ukelele. A par das vozes de Sting e Kylie Minogue, vídeo e audio do longo reinado polvilhados com alguns dos seus trechos favoritos de "My Fair Lady" e a incontornável melodia palaceana que é "Wonderful World," canta um ex Labour Shadow Chancellor of the Exchequer. Soa “When I’m Cleaning Windows,” uma outra canção da Royal playlist. Junto com Harry Hill e Frank Skinner, acompanhados pelos espantosos banjos da George Formby Society, o inesperado trio de RH Ed Balls cativa a audiência em escala para uníssono "Happy Birthday" e entusiásticos “three cheers” ― em palco solicitados por HRH Prince Charles Philip Arthur George of Wales após uma ora clássica e bem humorada introdução a "Your Majesty, Mummy." Dois dias depois, em solar St George & Shakespeare day, Elizabeth of Windsor é ofertada pelos céus com mais um neto.

 

Um pequenote em xaile branco, o fato de linho azul do Prince William e o vestido vermelho da Duchess Kate of Cambridge marcam a apresentação do Royal Baby-Boy, com rasgados sorrisos, saudações e agradecimentos a escoltar as cores da Union Jack nas portadas do St Mary’s Hospital. A simplicidade e descontração dos duques revela cuidado no detalhe simbólico e eleva o entusisasmo da multidão que acorre a Paddington para saudar o novíssimo princípe, cujo nome só amanhã será revelado a sequiosos meios de comunicação de todo o mundo que ali espelham interesse pela nascença do Windsor ‒ aliás, em trilho de eventos que nos conduzirá ao casamento do Prince Harry e Meghan Markle a 19th May 2018. A cegonha voa célere. Pouco antes das 06:00, a Duchess é conduzida pelo marido à Lindo Wing em London. Às 08:24, o Kensington Palace confirma a entrada nos trabalhos do parto. Logo sob os holofotes do circo mediático, com a usual imagem do polícia acidental à entrada da maternidade nos écrans grandes e pequenos dos ilhéus, eis a boa nova. HRH Kate Middleton dá à luz a baby son às 11:01. É a primeira explosão popular; outras se sucedem ao longo das horas. Para a história do Prince's birthday fica ulterior revelação de o bébé pesar 8lb 7oz, uns bem nutridos 3.8kg. Já às 13:18 é a vez do Town Crier anunciar em pregão local que A Prince is born. O champagne e os cheers brotam abundantes nas redondezas. Sete horas depois do nascimento, entrecortada a royal play com a visita ao irmão dos adoráveis Prince George e Princess Charlotte, os duques regressam a casa. ― So: Congratulations to the baby boy and the happy parents. Let’us celebrate the day. And, God Save The Queen.

 

Westminster vive também dias excitantes. Com o Labour Party ainda às voltas com os problemas de antissemitismo nas suas fileiras e os Conservatives em modo de controlo de danos na gestão administrativa das velhas ondas emigratórias da Commonwealth, eis que a House of Lords cumpre com expetável travão na Brexit. Num senado onde pontua a elite eurófila do reino, a câmara alta inflige a primeira derrota parlamentar ao Government de RH Theresa May no processo de retirada do United Kingdom da European Union. Pela mão de Lord Patten of Barnes, nenhum outro senão o último governador de Hong-Kong e atual Chancellor da University of Oxford, ex comissário europeu e antigo ministro dos Thatcher e Major Cabinets, os pares aprovam uma emenda à European Union (Withdrawal) Bill com expressiva maioria interpartidária. A proposta legislativa regressa agora à House of Commons com pesada mensagem: repensem tudo, a fim de o reino permanecer na Customs Union. Face a isto e a eventual impulso rebelde para os Remainers de todos os quadrantes, Westminster está em chamas – entretanto gasolinadas com mais um exercício de Brussels para manipular a Irish border. Entre rumoração de plots e afins, em vésperas de ida a votos nas municipalidades do reino, Downing Street persiste que “Brexit means Brexit” e insiste que a decisão de sair da união aduaneira “will be no reverse.” Obviamente que a homeopática saga brexiteira segue dentro de momentos…

 

Neste big, big day, fecho com uma nota bibliográfica e a aposta de o nome do Windsor Baby integrar a tripla Arthur James + Antonio.

Na sequência da sua eleição como próximo líder da Coomonwealth, cargo para o qual é expressamente designado por "Your Majesty, Mummy," bom amigo revela-me a existência de discreta coletânea editada por His Royal Highness Charles of Wales: The prince's choice. A personal selection from Shakespeare, publicada em 1995 pela casa londrina Hodder & Stoughton. A silhueta do bardo ilumina a parada. Ainda em Paddington soa frase epigramática do Prince William aos media que acompanham o nascimento real: "Thrice the worry now!" Ao ouvi-lo, questiono-me por que não um atlante Antonio na House of Windsor… — Good, good. Remember those magic calculus that ours Master Wil makes in The Merchant of Venice by the voice of the Christian trader when speaking with gentle friend about a risky contract: [Bassanio] You shall not seal to such a bond for me! / I’ll rather dwell in my necessity. | [Antonio] Why, fear not, man. I will not forfeit it. Within these two months—that’s a month before / This bond expires—I do expect return / Of thrice three times the value of this bond.”

 

St James, 23th April 2018

Very sincerely yours,

V.

A VIDA DOS LIVROS

De 23 a 29 de abril de 2018.

 

«En Lutte contre les Dictatures – Le Congrès pour la Liberté de la Culture – 1950-1978» de Roselyne Chenu, com prefácio de Alfred Grosser (Félin, 2018) acaba de ser publicado, dando conta da importância das ações no âmbito da defesa das liberdades e da democracia, como projetos de cultura.

 

MOMENTO INESQUECÍVEL
A fotografia que ilustra o presente texto é memorável. João Bénard da Costa em junho de 2005 condecora Roselyne Chenu, em nome do então Presidente da República Jorge Sampaio, com a Ordem da Liberdade, em agradecimento pelo contributo desta extraordinária mulher, que foi braço direito de Pierre Emmanuel no Congresso para a Liberdade da Cultura, na defesa dos valores da democracia em Portugal, nos tempos difíceis da ditadura. A sessão em que esse ato teve lugar foi organizada pelo Centro Nacional de Cultura e deu lugar a uma obra que se encontra publicada sobre a intervenção em Portugal do referido Congresso. Falo de «Liberdade da Cultura – Preparar o 25 de Abril» (Gradiva, 2015) – livro que reúne não apenas o repositório dos passos fundamentais desse projeto, com tão importantes repercussões entre nós, mas também depoimentos de personalidades, a maioria das quais já nos deixou, que em discurso direto nos dizem como participaram e das consequências sentidas do que foi feito nesse tempo. Pode dizer-se, aliás, que o livro acabado de publicar por Roselyne Chenu obriga, para o caso português, à leitura circunstanciada da obra portuguesa. Com efeito, as idiossincrasias portuguesas permitem valorizar o papel desempenhado entre nós pelo Congresso – que foi na transição para os anos setenta a grande seiva do Centro Nacional de Cultura. E ainda hoje temos o testemunho vivo dos jovens intelectuais que então despontaram e são unânimes em dar enorme importância a essa iniciativa, essencial no lançamento de um ambiente cultural aberto, plural e criativo. Cito João Bénard da Costa: «em 1960, após dez anos em que o Congresso para a Liberdade da Cultura se irradiou, sobretudo nos países chamados socialistas, Pierre Emmanuel pensou na Península Ibérica e nos países que, nela, não gemiam sob o comunismo, mas atabafavam com o franquismo e com o salazarismo. Primeiro criou um comité espanhol, depois, quando conheceu o António Alçada, pensou num comité português.

Em dezembro de 1965, na presença de Roselyne Chenu, assistente de Pierre Emmanuel e particularmente encarregada dos povos ibéricos, teve lugar a primeira reunião do Comité Português, que adaptou o púdico nome de Comissão para as Relações Culturais Europeias. Dez membros: Adérito Sedas Nunes, António Alçada Baptista, João Pedro Miller Guerra, João Salgueiro, Joel Serrão, José-Augusto França, José Cardoso Pires, José Ribeiro dos Santos, Luís Filipe Lindley Cintra e Mário Murteira. Estava representado quase todo o espectro político e quase todas as áreas do saber, com um leve favoritismo para as ditas ciências humanas (sociologia, economia, história), o que à época dava seriedade. Tudo acabou (em Dezembro de 1965) com um festivo jantar em casa da Zezinha e do António, onde conheci melhor Roselyne Chenu. Ela tinha 33 anos ("l"âge du Christ") olhos muito azuis e cabelo louro cortado à Jean Seberg. É a imagem que ainda tenho diante dos olhos». Aos nomes referidos do Comité Português acrescente-se que, ao longo do tempo outros elementos foram integrados na Comissão de Relações Culturais Europeias: o Padre Manuel Antunes, Nuno Bragança, João de Freitas Branco, Maria de Lourdes Belchior, José Palla e Carmo, Rui Grácio e Nuno Teotónio Pereira – além do próprio João Bénard da Costa, naturalmente.

 

UM EPISÓDIO SIGNIFICATIVO
Há dias, a 17 de abril, em Paris, na Delegação da Fundação Gulbenkian, teve lugar com assinalável concorrência e participação, a invocação das relações entre Emmanuel Mounier (1905-1950), a revista “Esprit” e Portugal. “Autour d’Emmanuel Mounier et Portugal” teve a presença de João Fatela, Jacques Le Goff, Yves Roullière e Jean Louis Schlegel – que recordaram, a propósito da publicação da obra “Entretiens” de Mounier, as relações com António Alçada Baptista e João Bénard da Costa, mas também com Nuno Bragança e Pedro Tamen, nos anos sessenta, no tempo da direção da revista “Esprit” por Jean-Marie Domenach. Presente na sessão, Roselyne Chenu recordou Pierre Emmanuel e José Bergamin, lembrando o episódio ocorrido em 1969 da vinda a Portugal de Domenach, a convite do Congresso. Apesar da luz verde de princípio do governo de Marcelo Caetano e da intervenção de José Guilherme de Melo e Castro (amigo de António Alçada) – a polícia política impediu que o diretor da revista “Esprit” pudesse fazer as conferências combinadas, com o argumento de que assinara textos críticos da política colonial. Ao chegar ao Aeroporto da Portela foi levado para o Hotel Mundial e repatriado no dia seguinte sem que pudesse falar com quem quer que fosse. Domenach diria depois, que estava longe de supor que no final dos anos setenta ainda pudesse encontrar os métodos da Gestapo. O escritor católico pôde então compreender a importância do apoio às iniciativas que preparavam a democracia. Recorde-se que o secretário-geral da Comité Português do Congresso era João Bénard da Costa, que funcionava no Centro Nacional de Cultura, onde também estava então o Comité de Apoio aos Presos Políticos, na clandestinidade, presidido por Sophia de Mello Breyner. Roselyne Chenu e João Fatela contaram o episódio – e a primeira juntou o pormenor delicioso do pedido da companhia aérea para que fosse pago o suplemento por ter sido usado um voo e um lugar não programados. Naturalmente, Pierre Emmanuel devolveu placidamente a conta, dizendo que a mudança se devia exclusivamente à polícia política portuguesa, pelo que o Ministério do Interior deveria responder por esse encargo adicional. Olivier Mongin recordou o papel fundamental dos intelectuais portugueses da revista “O Tempo e o Modo” e da Livraria Moraes – e referiu como a revista “Esprit” foi decisiva na criação de uma encruzilhada democrática, indispensável para a abertura democrática da Europa. Neste ponto, é de salientar ainda o facto de muitos dos assinantes de “O Tempo e o Modo” e de leitores das edições da Moraes serem militares portugueses mobilizados em África, entre os quais Ernesto Melo Antunes, que viria a ter papel decisivo no Movimento das Forças Armadas (MFA), com uma singular coerência democrática, não podendo ser esquecida a influência de uma obra crucial de Emmanuel Mounier, significativamente intitulada como “L’Éveil de l’Afrique Noire”. Tratou-se de um momento rico e emotivo em que foi realçada a influência de Mounier e a coragem de António Alçada Baptista e de João Bénard da Costa bem como a importância da cooperação entre católicos e não católicos na construção das bases da democracia.

 

Guilherme d'Oliveira Martins
Oiça aqui as minhas sugestões - Ensaio Geral, Rádio Renascença

CARTAS DE CAMILO MARIA DE SAROLEA

 

Minha Princesa de mim:

 

   Entendeste bem o significado das minhas duas últimas cartas sobre imperadores e providencialismos. Não busco ninguém em particular, apenas evoco exemplos de como as chamadas figuras importantes, sobretudo as que consideramos históricas, têm sempre duas existências: a real, aquela que foi ou ainda é facto, e a mitológica, essa que se fabricou, fabrica, e finalmente perdura no imaginário das pessoas. [Nota que isso pode acontecer com gente medíocre, como muitos que povoam a via láctea do empíreo político português]. A primeira é bastante desconhecida, ignota, secreta ou, melhor ainda, como diz o povo, só Deus a conhece. Nós, o vulgo, procuramos descobri-la pela recolha de informação ou por investigação histórica, mas dificilmente lá chegamos, ainda que possamos progredir numa compreensão mais objetiva e honesta de personagens e acontecimentos. Já a segunda, quando não é construção nossa, nem faz parte do nosso património cultural valorativo, pode ser livremente interpretada e (des)valorizada, mas não a controlamos: será mais um dado de facto, um fator condicionante dos eventos sociais que tentamos perspetivar e analisar. E, neste caso, a pessoa mitológica é realmente persona, isto é, muito mais ficção ou ator do que ser humano em carne e osso. Eis como a vida política é tão encenada.

 

   E, em política, constrói-se assim uma personagem muito complexa na sua aparente simplicidade de líder. No subconsciente dos grupos sociais obram desilusões e ressentimentos, nostalgias e recordações de perdas, que se tornarão em reclamações e desejos de desforra, em aspirações a grandezas imaginadas e reformas genéticas de passados por completar, se puderem incarnar-se na persona providencial e daí apelarem a todos os corações. Tal "ungido" de muitos procurará então valer-se das legitimidades necessárias à sua afirmação e ao seu percurso. Sobretudo à dos valores históricos e constitutivos de uma nação, incluindo a fidelidade religiosa. Casos claríssimos são o de Putin com a Igreja Ortodoxa Russa, o de Modi com uma versão hindu extrema e exclusiva do hinduísmo, ou de Erdogan, disfarçado de Ataturk (mas ao contrário), e outros vários líderes islâmicos, e o dos governantes ditos populistas em países europeus, incluindo os membros da UE situados no Leste europeu que constituem o grupo de Visegrad (Polónia, República Checa, Eslováquia e Hungria), apelando ao nacionalismo eurocético, às suas tradições étnicas e religiosas. É claro que o atual jogo russo não os deixa indiferentes, mas pensossinto, Princesa de mim, que se sentem um pouco órfãos: ali mesmo onde passava geograficamente a Cortina de Ferro, avolumam-se hoje promessas por cumprir, a par de sonhos de identidade a recuperar. [Talvez por isso o papa Francisco - que tão energicamente tem reclamado o acolhimento de migrantes pela Europa - tem sido bastante discreto a questionar estes países...]

 

   Mas, além dos exemplos apontados e alguns mais, não esqueçamos, Princesa, outros "populismos" por aí disseminados que, pouco indigitados, têm todavia o que se lhes diga em matéria eleitoralista e suas consequências, mesmo na política internacional. Curiosa ilustração é o movimento sionista ou messiânico cristão, nos EUA, do qual aliás te falei numa das minhas cartas sobre Jerusalém, quando referia um discurso do vice-presidente Pence. Já então deixei claro que tais cristãos milenaristas partilham, com os sionistas judeus, a crença de que, no fim dos tempos, a Terra Santa ficará totalmente na posse do Povo de Israel, pois que lhe está prometida na Bíblia, e então virá o Messias. Na cena final, as duas fés divergem quanto à questão de o Messias regressar ou vir finalmente pela primeira vez e, sobretudo, quanto a quem sofrerá a conversão final: se todos os judeus ao cristianismo, ou se os cristãos ao judaísmo. O certo é que os sionistas cristãos apoiam e financiam a ocupação da Palestina pelo estado de Israel, e exercem pressão influente sobre o presidente Trump quanto ao reconhecimento de Jerusalém como sua capital. Imagina, Princesa de mim, que até aludem à oxigenada poupa trumpista como evocação da cabeleira do rei David, descrita na Bíblia. Tudo isto nos faria rir imenso se, com John Bolton a Conselheiro da Segurança Nacional, depois do ex-CIA Mike Pompeo a Secretary of State, os EUA não estivessem tentados a ir para a guerra ao lado de Israel, até porque cada um dos grupos milenaristas acredita que será inevitável a destruição bélica do terceiro lugar mais sagrado do Islão, hoje sito onde, no longínquo outrora, estivera localizado o Templo de David e Salomão. 81% desses cristãos sionistas votaram em Donald Trump nas presidenciais americanas e são-lhe, no conjunto do Bible Belt, um trunfo eleitoral indispensável. 

 

   Já os valores que o atual presidente americano invoca para granjear apoios são populistas, populares com pouca transcendência, pretendendo sobretudo entusiasmar um sonho americano de superioridade mundial e nacionalista (America First), tudo ou muito projetado ao jeito de um empresário obcecado pelo regresso da sua empresa a indiscutível nº1 do mercado, e utilizando métodos semelhantes (vg. os sucessivos despedimentos e substituições de pessoal, sem outra razão que a do quero, posso e mando; ou, ainda, a chantagem negocial). Os seus apoios não são, por isso, institucionais nem históricos (até procura desdizer, maldizer ou destruir outras políticas nacionais recentes). São apostas oportunistas, tal como o trumpista fazer e desfazer de propostas internacionais. Donde os meios de comunicação on line que privilegia.

 

   No seu notável China - a New History (Harvard University Press, 1992), John King Fairbank tem um capítulo sobre o que chama Imperial Confucianism, sucintamente definido como uma amálgama de legalismo e confucianismo: O recurso à violência pelo governante permaneceu sua prerrogativa relativamente ao seu povo como aos seus funcionários. Mas não podia governar apenas pela força e precisava portanto da ajuda Confucionista para mostrar o seu constante propósito moral de benevolência e conduta apropriada. Sob orientação Confucionista, o imperador cada dia cumpria rituais e cerimónias que eram a sua específica função de Filho do Céu. (Today`s White House foto-ops and sound-bites would have seemed quite natural to him.) A ironia da frase final, que deixei propositadamente em inglês, sugere e disfarça uma semelhança e um abismo. Paradoxal simultaneidade, uma tendo a ver com os métodos de publicitação de atos políticos, o outro separando a durabilidade de tradições, ancoradas no subconsciente coletivo, da leviandade do mero "marketing" político. Reparaste já, Princesa de mim, nos grupos que rodeiam Trump, na Casa Branca, para as fotografias de promulgação de um decreto? No anúncio de medidas protecionistas, até estavam figurantes operários de várias etnias, incluindo hispânicos de tez e feições claramente meso americanas... A primeira grande diferença entre a RPC e os EUA, hoje em dia, é que a primeira tem consciência das opções de política interna necessárias e possíveis ao crescimento económico e ao desenvolvimento humano e social da China, e dispõe do poder político suficiente para as pôr em marcha. A segunda é que a própria noção dessa vantagem, enquanto ordenada pelo poder político, está inculturada no seu povo e é por essa mesma cultura popular disciplinada, sendo o "show off", o "marketing" político mais arte para o exterior, exposição de fachada. Mas com clara perceção do mundo hodierno, onde terão de investir, ser investidos, comprar e vender, pois há muito já entenderam que o declínio da potência chinesa começou quando a dinastia Ming desistiu da expansão... Esta atitude é mais uma vantagem competitiva sobre a trumpista política supremo-isolacionista. A China dos nossos dias sente-se preparada e pronta para entrar na globalização, muito à sua maneira, é certo, mas também com a força necessária para participar no concerto das nações. E um concerto, como bem sabes, Princesa, é um conjunto de instrumentos vários e frases musicais que se afrontam e desafiam, tendo por fim a harmonia. Em carta futura te falarei dum conceito chinês milenário, que dá pelo nome de tianxia, uma visão do mundo como um todo, onde se apaga o sentimento de estrangeiro ou de inimigo. Conceito hoje retomado pelo filósofo Zhao Tingyang, quiçá em vias de aproveitamento pelo poder político chinês, para afirmação universal do seu nacionalismo.

 

   A grande vantagem da China hodierna, pois, é a sua cultura milenária dispor um povo à obediência e dispensar excessos de "marketing" político para uso interno. E, curiosamente, esse profundo sentimento de identidade parece estar a dar-se muito bem com as perspetivas duma entrada mais descontraída nas cenas que estão em palco no mundo... Da música clássica ao futebol e à "loja do chinês", do turismo à filosofia. E mesmo, até, às relações com o Vaticano, que talvez redefinam uma nova forma de cristianismo parcialmente cesarista, a juntar, historicamente, à moda romana antiga, ou à bizantina, ou à ortodoxa russa... E, no caso específico da guerra comercial que os EUA iniciaram, a China aguentar-se-á bem melhor a prazo.

 

   Este último cesarismo ou tzarismo é o que Vladimir Putin, com alguma habilidade, e bastante violência ao jeito soviético, mas também com raízes na antiga autocracia imperial, procura ressuscitar numa Federação Russa economicamente esgotada e militarmente ultrapassada. Aliás, com recurso a métodos de fácil paralelismo com os trumpistas. Por exemplo - conta-nos o jornalista russo independente Mikhail Zygar (num livro publicado em francês pela Cherche Midi, intitulado Les Hommes du Kremlin) - que o homólogo de John Bolton é hoje um ex-chefe do FSB (ex-KGB), Nikolaï Patruchev, o novo Secretário Geral do Conselho Russo de Segurança, o principal falcão da Rússia, assim como ponta de lança do anti ocidentalismo e do anti americanismo no seio do poder russo. Curiosamente, Hélène Carrère d´Encausse, a franco-russa (georgiana como Estaline), que foi politicamente próxima de Jacques Chirac, deputada pelo RPR ao Parlamento Europeu, e é hoje Secretária Perpétua da Academia Francesa, autora de um livro que li há décadas e me abriu um olhar novo sobre a URSS (L’Empire Éclaté,  Flammarion, Paris,1978), pediu recentemente (3ª feira, 3 de Abril, na Salle Gaveau, em Paris) que se matizassem um pouco os juízos sobre Vladimir Putin, lembrando que, até 2004, ele fora homem de mão estendida ao Ocidente (cf. Le Figaro de 5/4/2018)...

 

Camilo Maria

 

Camilo Martins de Oliveira

Um estudo sobre o Coliseu do Porto nos 75 anos de atividade

 

Assinala-se a publicação de um conjunto de volumes evocativos da fundação do Coliseu do Porto, precisamente intitulado “O Coliseu e a Cidade: 75 Anos de História” (2018).

 

Trata-se efetivamente de uma evocação histórica em si mesma do edifício mas mais do que isso: o conjunto de publicações, editadas pelo próprio Coliseu, envolvem um vasto referencial de documentação de uma das mais relevantes casas de espetáculo da cidade, na perspetiva abrangente de arquitetura, urbanismo, atividade cultural e também de valores adjacentes no âmbito, insiste-se, da cultura e do espetáculo em si.

 

Porque  de tudo isso historia  e documenta o conjunto das publicações, a saber, um volume de introdução com 7 textos da autoria de  Rui Moreira  na qualidade de Presidente da CMP, e de Eduardo Paz Barroso na qualidade de Presidente do Coliseu do Porto, de Henrique Cayate-Designer, Luis Cabral- Bibliotecário, Miguel Guedes - Músico, Álvaro Costa – Comunicador e Bernardo Pinto de Almeida – Poeta e Ensaísta: as designações são do próprio livro, mas servem aqui para documentar com toda a justiça a amplidão do conjunto dos estudos.

 

Mas mais do que isso: independentemente da larga qualidade e abrangência dos aspetos analisados, há que valorizar a documentação gráfica e fotográfica, passe a redundância que aqui é propositada, em dezenas de fotografias devidamente legendadas e documentadas, e que, no conjunto, constituem uma vasta referência do edifício e da sua atividade cultural ao longo destas dezenas de anos.

 

E curiosamente, o livro de imagens abre com uma reprodução fotográfica do requerimento, em papel selado como então se impunha, redigido numa linguagem que em tudo documenta o ambiente político, administrativo e cultural da época:

 

“Exma. Câmara Municipal do Porto:

A Empresa Artística S.A.R.L. com sede na rua de Passos Manoel, Jardim Passos Manoel, desejando reconstruir no seu terreno, uma nova casa de espetáculos, conforme o projeto junto, de forma a que esta seja inaugurada oficialmente durante as Festas do Duplo Centenário , contribuindo assim na medida do que lhe é possível, para o brilho e esplendor das mesmas nesta Cidade, aguarda que a Ex.ma Câmara do Porto, animada do mesmo desejo, faça a sua aprovação o mais rapidamente possível e autorize o inicio das obras imediatamente. Assim, contribuiremos todos para o prestígio do Estado Novo e mostrar-nos-emos atentos ao apelo de Sua Exa o Sr. Presidente o Conselho”.

 

O requerimento é datado de 1 de março de 1939. A linguagem e o ambiente político mostram-no bem!... E ainda mais, se tivermos presente que a ideia de contruir um edifício destinado a espetáculos vinha já de 1937 e passou por vários projetos e arquitetos. Acaba por prevalecer um projeto de Cassiano Branco.

 

E depois de variadíssimos episódios, será inaugurado em 19 de dezembro de 1941 com um concerto da Orquestra Sinfónica do Porto, dirigida pelo maestro Pedro de Freitas Branco tendo como solistas a pianista Helena Moreira de Sá e Costa e a cantora Maria Amélia Duarte de Almeida.

 

O Coliseu do Porto sofreu alterações e esteve a certa altura para ser encerrado e demolido, Mas reabriu em Novembro de 1998 com uma récita da “Carmen” de Bizet. E até hoje se impõe numa heterogeneidade da espetáculos, como o livro acima citado amplamente descreve.

 

E em boa hora conserva a estrutura e ambiência do edifício e da grande sala principal.

 

DUARTE IVO CRUZ 

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