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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

CARTAS DE CAMILO MARIA DE SAROLEA

 

Minha Princesa de mim:

 

   Soube, cedo pela manhã, que o Fidesz de Viktor Orban terá obtido quase 50% dos votos nas legislativas húngaras, os quais lhe darão uma maioria absoluta (ou seja, de 2/3 dos lugares) no Parlamento. A sua campanha assentou fundamentalmente na política anti imigração, evocando razões de segurança interna e a preservação da identidade nacional.

 

   Mas, ao talho da fouce lúdico-grave com que temos cortado em efemérides e mitos, na nossa correspondência recente, Princesa, calha mais a jeito o "Viva!" gritado por um jovem apoiante do Fidesz, chamado Lehel: Orban é um visionário, o maior homem político da Europa. A sua política é que é a boa! Viva Trump, viva Putin e viva Orban!

 

   Uma política trindade, que dispensa comentários. Qualquer "populismo" é trágico-cómico, revela sobretudo, hoje, uma carência cultural - que nada ou pouco tem a ver com esses debates acerca da atribuição de subsídios a um universo vário de iniciativas "culturais" - mas é indigência de educação básica da descoberta das raízes e desenvolvimento da nossa natureza ou ecossistema espiritual, e de espírito crítico. Os providencialismos surgem quando já não sabemos bem intimamente quem somos, e deixámos de pensarsentir por nossa cabeça-coração.     

 

   De tanto te falar de curiosidades "imperatoriais", lembrei-me de um dos últimos títulos da série Lucky Luke, daquela em que o desenhador Morris, que inventara a personagem do cowboy solitário nos anos 40, teve como parceiro guionista o também inolvidável Goscinny, trabalhando juntos de 1955 a 1972. A história aos quadradinhos (ou quadrinhos) que ora te recordo é a de L´Empereur Smith (Dargaud, 1976), conto impagável, em que, aliás, também é posto em cena um colega e amigo dos dois autores, o desenhador Uderzo, brevemente anunciado, num baile da corte imperial de Smith, como Sua Excelência Giovanni Uderzo, Embaixador de Sua Majestade Vítor Manuel II, Rei de Itália!... O verdadeiro nome do Uderzo (desenhador de Asterix e Umpapá) era Alberto. Tudo aquilo é uma paródia de qualquer corte napoleónica, esta recriada numa imaginária cidade do Oeste americano, Grass Town. Não te digo mais, apenas te aconselho leitura muito divertida e... instrutiva!

 

  A ficção do conto, ainda por cima, tem raízes históricas. Citando os autores, traduzo: Por inverosímil que pareça, a aventura de Dean Smith, "imperador dos Estados Unidos" baseia-se em factos históricos.

 

   Na verdade, algumas personagens excêntricas sonharam transformar em monarquia a jovem e grande República americana. A mais célebre persona foi um tal Joshua A. Norton, nascido na Grã-Bretanha a 4 de fevereiro de 1819. Chegado a São Francisco em 1849, lançou-se logo a negócios. Inteligente e manhoso, fez rapidamente fortuna no imobiliário e na importação. Mas, alguns anos depois, Norton arruinou-se num infeliz negócio de cereais: esse desastre financeiro fê-lo perder a razão.

 

   Foi então que uma obsessão ganhou corpo no seu espírito doente: decidiu que era Norton I, imperador dos Estados Unidos. Já não tendo dinheiro, não pôde levantar um exército, comprar armamento e rodear-se de fasto. Assim, era perfeitamente inofensivo. Os habitantes de São Francisco acharam divertido esse homenzinho ridículo que se arrogara os títulos sonoros de imperador dos Estados Unidos e protetor do México. Em breve se tornou chalaça corrente enviarem-lhe telegramas assinados por chefes de Estado, tal como publicarem-se proclamações fantasiosas por ele assinadas. O imperador Norton depressa se tornou popular: era um homem bom e cortês, e quando morreu, a 8 de janeiro de 1880, mais de 10.000 pessoas assistiram ao funeral. Tinha entrado, à sua maneira, e de pleno direito, no panteão dos excêntricos que contribuíram para forjar a formidável lenda do Oeste.

 

   O génio da escrita de Goscinny e do desenho de Morris tornaram tal história numa sátira divertida em que, a par de um olhar benevolente e de humana estima sobre o de per si inofensivo louco Dean Smith, e de uma acertada, ainda que sempre hílare, reprimenda dos malevolentes oportunistas que, à sombra do imperador, procuram riqueza e poder, se nos oferece o "show" de uma burguesia inchada de nada pelo vício gostoso de títulos e honrarias do império. Babados. Quiçá em evocação dos exércitos napoleónicos, os soldados de Smith justificam-se: é bem melhor andar fardado e bem pago do que correr planícies atrás das vacas...como quando éramos apenas esforçados cowboys!

 

   Mas, em 2ª feira de primavera chuvosa - que, todavia, vai tornando, dia a dia, mais viçosa a minha cerejeira do Japão - volto, Princesa de mim, à notícia de abertura desta carta (a brincar ao telejornal): a oposição húngara (talvez excluindo a extremíssima direita, que conquistou quase 20% dos votos) está dividida, e um pouco perplexa, entre liberais e socialistas, mais ou menos europeístas. Na linha do que vamos, tu e eu, Princesa, conversando, deu-me gosto e gozo ler um artigo no meu "Réveil" do Courrier International desta manhã, intitulado: En Pologne, rire des hommes politiques plutôt que déprimer. É melhor rirmo-nos dos homens políticos do que entrarmos em depressão.

 

   Referem-se vários espetáculos, programas televisivos e ditos humorísticos, numa Polónia governada pelo PiS, Partido Direito e Justiça. Desde o espetáculo de cabaré Pozar w Burdelu ("Há Fogo no Bordel") ao televisivo Make Poland Great Again! (lembro-me de já ter ouvido algo parecido...) ou, ainda, uma adaptação da série americana Saturday Night Live. Tudo modos de rir dos poderes e das oposições, assim desdramatizando situações e conflitos, reduzindo megalomanias imperiais à dimensão, pequena mas humana, dos Smith sem providencialismos. Tentativas de chamar o bom senso à ribalta, através do riso que, em minha opinião, é, muitas vezes, o remédio dos sábios: abre portas à sageza, ao sentido de justa proporção, ao espírito livremente crítico, à alegria da responsabilidade.

 

   [Gosto muito, no discurso do papa Francisco, dessa insistência em tudo referir à alegria: a da boa nova, a do amor, a da aprendizagem e, já agora, digo eu, porque não?, à da responsabilidade, isto é, do dever em consciência cumprido.]

 

   [Ucha Prezesa ("O Ouvido do Presidente"), de que vi um episódio pelo YouTube, brinca com uma presidência diáfana e inefável, mas tentacularmente presente, e com os seus respetivos sequazes e opositores. Este Presidente não é o da República, Andrezj Duda, mas a eminência parda, Jaroslaw Kaczynski, líder do Partido Direito e Justiça. Todos acabam por não saber bem a quantas andam...]

 

Camilo Maria

  
Camilo Martins de Oliveira