Evocação de uma atriz e de um teatro histórico
Não será exagero qualificar de “histórico” um Teatro que corresponde à época em que se aproveitaram edifícios históricos para os transformar em teatros: e isto, no caso concreto, reportando ao início do século XX. Trata-se do hoje denominado Teatro Ester de Carvalho de Montemor-o-Velho, fundado em 1901-02 com o nome de Teatro D. Manuel, homenagem ao então futuro D. Manuel II.
O Teatro é pois como tal inaugurado nessa temporada, mas o edifício vinha de séculos atrás, o que na época não é caso único: trata-se da adaptação da antiga Igreja de São Pedro dos Clérigos, implantada no centro urbano. A transformação do edifício em teatro não é inédita na época. E a adaptação da designação surge como homenagem à atriz Ester de Carvalho, nascida em Montemor-o-Velho no ano de 1858 e falecida no Rio de Janeiro em 1881.
E vale a pena então recordar que a carreira de Ester de Carvalho no Rio esteve longe de ser sólida e tranquila, tal aliás refere Sousa Bastos no “Dicionario do Theatro Português” (1903), aqui muitas vezes citado.
Sousa Bastos recorda que Ester se estreou no Teatro da Trindade em 1880 como atriz - cantora de opereta. Desde logo marcou a cena portuguesa: “Era inteligentíssima, tinha uma voz deliciosa, grande desembaraço, olhar vivo e penetrante, enfim, todos os dotes requeridos para um grande sucesso no teatro”. Mas acrescenta que “o pior é que tinha tanto de talentosa e de atraente como de desequilibrada. (...) Era turbulenta e não havia meio de a fazer cumprir com os seus deveres.” (pág. 191)
Muito embora: a mudança da designação do teatro, ocorrida a partir de 1910, acaba por consagrar, na denominação, o prestígio que na época a memória de Estar de Carvalho mantinha sobretudo na terra onde nasceu.
No livro sobre “Teatros de Portugal” (ed. INAPA-2005) tive ensejo de escrever sobre o Teatro Ester de Carvalho que a topografia determinou um relacionamento heterodoxo da sala e do palco, mas a fachada, ostentando os medalhões de Garrett e do ator Taborda, não recorda a antiga função do edifício. E designadamente, citei a recuperação da sala impulsionada pela Centro de Iniciação Teatral de Montemor- Citemor, ainda hoje responsável pela manutenção e atividade do Teatro.
Montemor-o-Velho é a terra natal de figuras como Diogo de Azambuja, Fernão Mendes Pinto ou Jorge de Montemor.
Importa então evocar a relevância da tradição histórico-cultural de Montemor-o-Velho e não apenas na conservação de um teatro-edifício em atividade e documentando uma época de arquitetura teatral relevante mas infelizmente tão pouco conservada entre nós, no que respeita a edifícios da época deste. Mas, insista-se, o que quero agora novamente referir é a tradição histórico-cultural também mas não só consagrada no edifício de teatro em si: e bem sabemos quantos têm sido demolidos para aproveitamento das zonas urbanas.
Sem entrar em comparações, importa ter presente que esta geração de teatros do século XIX/início do século XX, desaparece. E no entanto, Montemor-o-Velho mantem a coerência das sucessivas expressões epocais urbanas.
Vejamos, para terminar, algumas referências.
Desde logo Jorge de Montemor (1520/24-1541) na clássica “Diana”:
“Chamava-se em língua portuguesa: Montemor-o-Velho. Aí as memórias do engenho, da fé e do valor haviam ficado por troféus das antigas façanhas dos seus guerreiros. E ainda agora florescia nas grandes virtudes das senhoras e dos cavaleiros que o habitavam”.
Afonso Duarte (1884-1958) no poema denominado “Montemor” na “Obra Poética”:
“Onde nasceu o Fernão Mendes Pinto?/Jorge de Montemor onde nasceu?/A mesma terra, o mesmo céu que eu pinto/ Castelo velho, o que foi deles é meu”.
E Jaime Cortezão, em “Daquém e Dalém Mar”, descrevendo o Mosteiro de São Marcos:
“Situado no alto ermos e solitário, a meio de outeiros e colinas de uma profunda seriedade, dá-lhe mais profunda vida ainda o largo horizonte que o circunda – os suaves campos do Mondego, de Coimbra a Montemor, fechados além pelo baluarte vagamente crenelado das serranias”.
Assim é Montemor-o-Velho. E a tradição concilia-se com a modernidade do espetáculo.
DUARTE IVO CRUZ