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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

O CINE -TEATRO PARAÍSO DE TOMAR, MAIS UM EXEMPLO DE DESCENTRALIZAÇÃO

 

Nesta série de evocações e descrições do património arquitetónico de espetáculo, tivemos já ensejo de referir diversos teatros e cineteatros do Ribatejo, utilizando a designação geográfica, urbana, cultural e administrativa tradicional.

 

Trata-se, bem o sabemos, de uma região com fortes tradições culturais e com significativas expressões históricas e atuais na infraestrutura cultural e de espetáculo, que aqui nos ocupa. 

 

E nesse aspeto, tem interesse registar que na região se registam Teatros, Cine-Teatros, Centros Culturais, edifícios de função e/ou atividade de espetáculo, muitos deles em plena atividade: cite-se, entre edifícios antigos e modernos, os situados em Constância, Entroncamento, Ferreira do Zêzere, Golegã, Mação, Ourem, Rio Maior, Sardoal, Torres Novas, Tomar, alem obviamente da cidade de Santarém.

 

E muitos deles já foram evocados e descritos nesta série de artigos.

 

Nesse sentido, tivemos ocasião de referir a renovação empreendida pela Câmara Municipal de Santarém no antigo Teatro Sá da Bandeira, inaugurado em 1924 sobre as ruínas do velho Hospital João Afonso, entanto desativado. A Câmara adquiriu-o e restaurou-o a partir do ano 2000, segundo um critério interessante no ponto de vista arquitetónico e funcional. E efetivamente, renovou-se por completo o interior, alargando, tal como aqui escrevemos, a adequação e diversificação das atividades de espetáculo: a sala propriamente dita, mais uma sala estúdio, mais um piano-bar, mais uma galeria e mais uma sala de convívio. E esta vasta obra de recuperação recuperou ainda o que resta do antigo claustro.

 

Mas referimos agora outra sala de espetáculos muito mais recente na região. Trata-se do Cine-Teatro Paraíso de Tomar, que recentemente tornamos a visitar e que se mantêm em atividade. O projeto inicial, datado de 1920, é do Arquiteto Deolindo Vieira. “Herdou” a atividade de um então chamado Teatro Nabantino que vinha do seculo XIX.  E entretanto existiu uma sala de cinema, desde os primeiros anos do século passado.

 

O Teatro Nabantino entra em obras em 1920 e dá origem ao Teatro Paraíso, inaugurado 4 anos depois. E este edifício, por sua vez foi remodelado em 1948, agora segundo projeto do Arquiteto Ernesto Korrodi. Funcionou até aos anos 90 e seria municipalizado em 1997: a Câmara reinaugura-o em 2002.

 

E desde aí está em atividade a contento: e na imponente fachada com varanda e na bela sala, de plateia e dois balcões, valoriza o património e a vida cultural de Tomar.

 

Em todos os aspetos, é pois mais um execelente exemplo de descentralização.

DUARTE IVO CRUZ 

A LÍNGUA PORTUGUESA NO MUNDO

 

XXXVII - FRANCOFONIA

 

Tendo consciência de que enfrenta uma situação difícil para a sua língua, a França continua a pensar em grande, não se deixando vencer pela adversidade. Espera pelo abrandamento da vaga do inglês, pelo refluxo anglófono. 

 

De língua global e culturalmente dominante, foi gradualmente suplantada e secundarizada pelo inglês, nomeadamente após o fim da segunda grande guerra, depois da ocupação nazi e a libertação pelos aliados e vencedores anglófonos.

 

Os franceses têm uma relação muito particular com o seu idioma, sendo tendencialmente monolingues, aceitando mal a decadência do francês a nível mundial, por confronto com os seus tempos áureos. 

 

Mas continuam a resistir, com empenho e determinação, ao mesmo tempo que querem passar a mensagem que são menos imperialistas em termos linguísticos que os falantes maternos da língua inglesa.     

 

Só que, consoante o contexto, a estratégia muda.

 

Dado que, por confronto com o inglês, o francês perde, continuando a perder no curto e médio prazo, sem perspetivas de ganhos maiores nos tempos mais próximos, aceita-se o inglês como uma língua global de economia e finanças, e a francesa como uma língua para o desenvolvimento, de coesão, de partilha e solidariedade, uma mais-valia, uma terceira língua, que acresce à materna e ao inglês. Não interessa, nesta perspetiva, que se diga que o francês está a lutar contra o inglês, mesmo que não totalmente verdade.

 

Porém, para além de acusações de tentativas glotofágicas do francês na organização internacional da União Latina em relação ao espanhol, português, italiano, romeno e catalão, a francofonia olha de um modo muito especial o espaço das demais línguas românicas de expansão global, designadamente o espanhol e o português.

 

Ao mesmo tempo que defende a diversidade cultural e ser imperioso juntar esforços contra a ameaça do inglês, a França, em particular, é adversa dessa diversidade quando defende uma estratégia de intervenção que ultrapassa a mera ajuda, colaboração e cooperação a países menos desenvolvidos, como sucede, entre os países lusófonos, com Cabo Verde, São Tomé e Príncipe e a Guiné Bissau. Incluindo algumas investidas em Moçambique.   

 

Há quem veja na estratégia da francofonia para a África de língua oficial portuguesa, com enfoque em Cabo Verde, Guiné Bissau e São Tomé e Príncipe, caraterísticas de imperialismo linguístico, numa tentativa de substituição, a prazo, do português pelo francês, em detrimento dum salutar convívio entre a lusofonia e a francofonia. 

 

Se a lusofonia e a CPLP atravessam dificuldades, há que explorar esses défices e fazer ver a esses países que têm o português como idioma oficial que há quem os compreende melhor, que tem e disponibiliza mais dinheiro para o seu desenvolvimento e necessidades de toda a espécie.     

 

Para o autor francês Chaudenson, segundo o qual quem não sabe fazer, deve dar lugar a outros, há que integrá-los na nova francofonia, juntamente com o único país africano de língua oficial espanhola, a Guiné Equatorial. O que reforça com o argumento de serem países rodeados de vizinhos francófonos e situados em zonas de predominância francófona. O que pode ser extensivo a Angola, com as inerentes adaptações derivadas das suas fronteiras com a República Democrática do Congo (Kinshasa) e a República do Congo (Brazzaville), ambos países francófonos.     

 

Sendo a África fulcral para a continuação do francês como língua global de comunicação internacional, Portugal e a lusofonia têm de estar atentos a estas tentativas de francofonizar alguns países lusófonos, especialmente os mais débeis, o que já não sucede em relação aos países de língua oficial inglesa, dado que, por certo, o “lobo” francês não é tão predador como o anglo-americano. 

 

Há que referir ainda o papel desempenhado mundialmente pela Alliance Française, numa crescente procura de parcerias, por exemplo entre a França, a China e o país africano de destino, dado o interesse chinês em África e saberem não poderem trabalhar em chinês, o que pode e deve, por analogia, ser aproveitado por Portugal e mundo lusófono.

26.06.2018

Joaquim Miguel de Morgado Patrício

CRÓNICA DA CULTURA

 

Eram seis da manhã quando acordámos nos quartos do sótão que tanto amávamos na nossa casa de praia. A empregada bateu as palmas ao entrar nos nossos quartos totalmente forrados a pinho e salpicados com fotos dos nossos ídolos e gritava

 

Vá meninos se querem ver aquela cor do mar no céu, vamos a sair da cama depressa.

 

E nós os três meio trôpegos de sono vestimo-nos num ápice, e, escadas para que te quero que se faz tarde.

 

Cada um a roer a sua maçã, descemos a ladeira de terra e pedra que dava acesso à praia e ali na areia nos sentámos ao lado do António Lameja, nosso banheiro e salvador, mas que não nos salvava dos banhos gelados a que pelas 11h o nosso pai dava ordem que todos tomássemos.

 

O meu irmão mais velho perguntou-lhe

 

É esta a cor?

 

Não, chiu! é mais daqui a bocadinho, mas estejam calados, pois ela pode fugir.

 

A nossa ansiedade e alegria cresciam à luz de prata daquela manhã em que veríamos a tal cor no mar colada com o céu e que em agosto só naquele dia e hora surgiria.

 

Agora de pé, já, gritou Lameja, olhem bem lá no fundo do horizonte: veem aquele tom amarelo? Aí vem a tal luz que sobe para o céu e se torna azul e branca e que é igual à dos santinhos dos missais que mostram a cor dos milagres.

 

Sai de dentro daquela nuvem lá ao fundo? Perguntei

 

Não menina, essa é uma nuvem que acorda mais tarde e quando se abre, sai por seu pé, bem leve, um pouco do sol, aquele que depois é gordo durante o dia.

 

Mas vejam agora. Olhem.

 

E fixámo-nos todos numa auréola que tomava cor amarela e azul e branca e dela saiam uns traços lindos do mar, erguidos para o céu, ou, do céu descidos para o mar, tudo num abraço de cores e luz esplendorosas.

 

Que lindo, que lindo disse o meu irmão mais novo, agarrando-me os ombros. Aquilo é um milagre ou é a natureza lá do alto que chama o mar e ele sobe sozinho?

 

E o Lameja

 

Ó meninos, não duvidem, aquilo é milagre não veem logo? São focos de luz com vida que se cruzam em mar e céu e dão nesta cor de oiro de pasmarmos. Debaixo das águas os peixes também a veem, e, logo saltam para dentro dos barcos dos pescadores, não sendo precisos anzois ou redes, e fazem-no por tanta beleza terem visto, preferindo morrer logo a seguir a esta hora do dia do mês e do ano e, morrem transformados em oiro! Pronto! Viram? Vá, ide para casa, já viram o segredo.

 

Tiveram muita sorte, podia até chover. Ide, ide tomar o pequeno-almoço.

 

Subimos a ladeira devagar, mas íamos olhando para trás, para o mar e o céu.

 

Que viste mana?

 

Uma borboleta que veio do céu beber agua e tu?

 

Um fantasma bom. Um daqueles que toma conta das aparições desta hora.

 

E tu mano, que achas? Ou antes o que viste tu?

 

Ora eu vi o mundo quando estamos a dormir.

 

Entrámos em casa e a empregada perguntou-nos: que tal? Como foi, meninos?

 

Eu respondi

 

Pois parece que vamos ter peixes de oiro para o almoço. Sabes cozinhá-los?

 

Os de oiro, não.

 

Ainda bem. Devem ser rijos. Mas queres que te conte o que vi?

 

Sim, menina.

 

Pois vi o céu azul vestido de borboleta para esconder que é princesa que namora com o mar àquela hora e abraçam-se e tudo.

 

Com beijos?

 

Claro, com beijos também, acho que é uma hora de intimidades com muitas cores. Nada de especial, mas mesmo assim é muito bom.

 

Jesus Maria! Até estou arrepiada. De fato Nosso Senhor não pertence à raça humana!

 

Teresa Bracinha Vieira

A FORÇA DO ATO CRIADOR

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Jessica Stockholder e a abstração concreta.

 

'I don't trust in abstraction alone, and it is also a way to bring an abstraction to my experience, because I can trust my experience of the moment.', Jessica Stockholder

 

Para a escultora americana Jessica Stockholder (1959), o processo criativo, inicia-se com uma experiência física, relacionada com um determinado objeto, lugar, cor ou dimensão. O processo é muito subjetivo e toma forma a partir de um conhecimento/manipulação de materiais e objetos que estão à mão.

 

Para Stockholder a criação de formas progride e cresce a partir de coisas que já existem. As ideias e o sentido, que lhe é próprio, fixa-se ao longo de um caminho. É o sentido que se dá, que permite ir de uma forma para outra. 

 

A forma transporta assim, um significado, durante todo o processo, mesmo que o sujeito não esteja concentrado nisso. Stockholder não questiona e não pensa constantemente no sentido que o seu trabalho tem - a maior parte das vezes o objeto olhado é transformado pela experiência. O começo é sem a palavra mas o trabalho de Jessica Stockholder não existe para além da palavra. Ideias, pensamentos e palavras são abstratas - não dizem respeito a um tempo. A experiência que se tem de um objeto e as formas inventadas e feitas são concretas, existem num agora - dizem respeito a um tempo.

 

A estrutura pictórica que um sujeito cria é sempre coerente. Aquilo que o sujeito transporta nele mesmo (pensamentos, vazios, desejos, angústias, alegrias, gostos, conhecimento) ao ser exteriorizado transforma-se em linguagem (que por definição é abstrata, não é um fenómeno físico). Para Stockholder a linguagem e a abstração têm de se prender a algo mais concreto e físico para se tornarem mais subtis. Por isso, Stockholder deseja trazer a abstração através da matéria e do momento específico. É uma subjetividade concretizada, sabe-se que está lá, que existe e que se realiza neste momento físico (formas criadas).

 

'My work is about transporting the object somewhere but bringing back at the same time. I am more interested in knowing where my subjectivity meets contexts and matter.', Jessica Stockholder

 

Ana Ruepp

 

 

CARTAS DE CAMILO MARIA DE SAROLEA

 

Minha Princesa de mim:

 

   Foi hoje mesmo: tinha acabado de ler, no Público, o manifesto de cem africanos contra o eventual museu das descobertas, quando comecei a ver, no canal Mezzo, A Volta ao Mundo em 80 Minutos - um espetáculo da companhia de bailado Maurice Béjart, coreógrafo suíço hoje já falecido, que ainda conheci, há meio século, em Bruxelas, quando por lá tinha sedeado o seu corpo de balé. Recordo-me de, nesses tempos longínquos, me ter chamado a atenção uma frase do grande poeta senegalês Léopold Senghor, a afirmar, mais ou menos isto: A coreografia do Sacre du Printemps de Stravinsky por Maurice Béjart só se explica pelo sangue africano dos antepassados deste... Foi por esses anos, em 1975, que me aconteceu, na qualidade de perito da ONU para o PNUD, ter de visitar a República Popular do Congo e, ao desembarcar em Brazzaville, no meio de um controlo de chegadas apertado pela evidência de pistolas metralhadoras, ter sido identificado e conduzido a um encontro com o então primeiro ministro daquela república social-comunista, Henri Lopes. De ascendência portuguesa e bantu, logo me contou que me chamara pelo gosto de conhecer um português que, enviado por uma universidade europeia num programa da ONU, vinha prestar um serviço ao seu país. E falou-me, com sentido afeto e alguma melancólica amargura, na família da mestiçagem, tema que, aliás, redescobri no seu romance Le Chercheur d´Afriques (Seuil, Paris, 1990), que ganhou o Grand Prix Jules Verne, narrativa quiçá autobiográfica de um jovem mestiço que vai procurando, na saudade, a memória de seu pai branco...   Quase trinta anos mais tarde, para recordar a história, mandou-me um livro seu - que ainda guardo - intitulado Ma grand-mère bantoue et mes ancêtres les Gaullois. Como saberás, Princesa de mim, nas colónias francesas as crianças logo no abc aprendiam a recitar nos ancêtres les Gaullois... Mas também sabes que, em processos de integração ou assimilação voluntarista, a aculturação das gentes pode desvirtuar-se e, para além de confusões e crises de identidade, pode obstruir as janelas de lucidez de que todos precisamos. Por tudo isso se torna imperioso praticarmos a lição de Tomás de Aquino que nos ensina a diferenciar para compreender. A aventura humana, científica, técnica, moral, económica, política das Descobertas, das grandes viagens de descobrimento do mundo, isto é, de uma revelação de terras, povos e culturas até então ignorados, quer pelos que partiram primeiro para a busca, quer pelos que, ao serem por esses descobertos, reciprocamente os descobriram, é um evento maior, melhor, um encadeamento de acontecimentos que muito mudaram o mundo de antes e fomentaram encontros novos. Nestes, como em todos as cheganças das nossas vidas, houve, ocasional ou forçosamente, um pouco de tudo: compreensões e incompreensões, simpatias e antipatias, acordos e beligerância, guerras ganhas e perdidas, dominadores e dominados...eu sei lá... tudo do que o género humano é capaz! Mas a celebração ou, sequer, a memória museológica das Grandes Descobertas, não é necessariamente, um sancionamento do colonialismo, nem da escravatura (sendo, aliás, o primeiro uma prática europeia novecentista, e a segunda muito anterior às Descobertas)  Muito pelo contrário, se o seu projeto for concebido em partilha e com espírito de verdade e justiça, ele poderá ser motivo de novo encontro e redescoberta mútua. Permito-me agora, Princesa de mim, uma longa citação do ensaio de Henri Lopes Ma grand-mère bantoue et mes ancêtres les Gaulois, por vir de quem vem, de um homem que começou a sua vida política na esquerda africana anticolonialista:

 

   A África foi descoberta pela Europa no século XIX. A África redescobriu-se duas vezes no século XX. Uma primeira vez na véspera das Independências, tomando consciência do seu passado, da sua história, assumindo a sua negritude e as suas identidades. Uma segunda vez com as guerras civis de fim de século.

 

   A nossa primeira redescoberta foi salutar para a nossa dignidade. Despertou-nos, convenceu-nos de que não éramos esses selvagens sem história e sem direito, que os nossos senhores humilhavam, mas povos ricos de uma herança suscetível de fertilizar o património da humanidade. Essa tomada de consciência pôs em combate o movimento de reconquista das nossas soberanias. Mas a vitória embriagou-nos e considerámo-nos incensuráveis.

 

   A segunda redescoberta impõe-nos, simultaneamente, uma meditação e uma ação imediata. Porque o Rwanda mais não foi do que a reedição do que já se tinha passado no Burundi, na Libéria, no Katanga, no Sudão, exemplo extremo do que tinha acontecido no Congo, do que ameaçou o processo de normalização na África do Sul, do que grassa noutras regiões da África. A primeira lição a tirar é a de que devemos tornarmo-nos modestos e pôr termo à nossa logomaquia. Tal como as outras sociedades humanas, nós temos antepassados de que nos podemos orgulhar e outros que não valem grande coisa... [...]

 

... A segunda lição a tirar desses acontecimentos é a de que as nossas culturas, como todas as culturas, tinham zonas de luz e zonas de sombra, onde a barbárie se dava à tripa forra. O nazismo tropical tem raízes profundas. Estava em maceração nos nossos inconscientes coletivos. Bestava um catalisador para o acordar. Sabíamos acolher com consideração e calor o estrangeiro de passagem, mas também alimentávamos inimizades tenazes com alguns dos nossos vizinhos. Era às terras deles que íamos buscar os nossos rebanhos de escravos.

 

   Ao dizer isto, tenho consciência de estar a revelar tabus embaraçosos... [...]

 

   ... O francês, tal como o inglês, o espanhol, o português ou o árabe, devem o seu estatuto internacional à sua larga difusão. O chinês e o hindi são, cada um deles, falados num só país... ... Será preciso acrescentar mais comentários?

 

   Primos gauleses: nós temos corpos e, quiçá, espíritos diferentes, mas certamente uma alma comum. Tal implica deveres recíprocos. Acima de todos, o da solidariedade.

 

   Antes de terminar esta carta, que vai longa, permite-me, Princesa de mim, confiar-te mais duas recordações pessoais:

 

   O Senghor, que foi Presidente do Senegal e membro da Academia Francesa, orgulhava-se de dizer que a família era originária da Casamança, território inicialmente administrado por Portugal (que depois o trocou, com a França, por outro no sul da atual Guiné-Bissau, em Catió) e que o seu apelido derivava do português Senhor. Foi isto várias vezes assim dito e escrito por esse chantre da negritude. Ouvi-o da própria boca do grande poeta francófono senegalês.

 

   Ainda em viagem "onudense" pela África (selecionava então candidatos a bolseiros para a Universidade Católica de Lovaina), ia eu embarcar, no aeroporto de Lomé (Togo), num voo da Air Afrique para Libreville, quando os altifalantes clamam:  Monsieur d´Oliveira, passager d´Air Afrique à destination de Libreville, est prié de se rendre au comptoir de la compagnie. Lá vou, intrigado, até ao balcão em que me acolhe uma hospedeira sorridente numa farda de garridas chitas africanas, anunciando-me que Monsieur Oliveira désire  vous parler... Retorqui Mais... monsieur Oliveira c´est moi! e eis que ela larga um riso aberto e me aponta um oficial da companhia aérea, negro africano em alva farda branca, distinto e amável, que me estende um carão de visita onde li: Fernand HOliveira - Commissaire de Bord. Sorri e ele disse-me Il se peut qu´on soit cousins... Ao que respondi: J´en suis absolument sûr! Meses depois, ao fazer uma escala em Bruxelas, veio visitar-me e oferecer-me uma bela lembrança de África. Almoçámos juntos, como primos que se estimam.

 

   Já várias vezes te escrevi sobre o ressentimento e a história, e sabes bem como pensossinto que o ressentir pode ser masoquismo ou, quando não é remoer o que na nossa própria vida nos afetou ou magoou, poderá ser ainda pior, como que uma busca insistente do que nos afasta ou antagoniza. A História foi, certamente, a nossa vida antes de nós, essa parte dela em que não fomos atores nem somos atuais. Nesse passado comum, houve de tudo, ou de tudo um pouco mais ou menos explicável - julgamos e discutimos - pelas ou nas circunstâncias de outros tempos. O que disso resta, o que ficou guardado, é parte da nossa cultura partilhada. O que disso vale ainda é o reconhecimento mútuo, e o comum anseio de que a memória nos ajude, no presente, a construir, em paz e justiça, o futuro de todos. Devidamente arrumados os agravos e as falsas "glórias", saibamos celebrar a descoberta recíproca e continuá-la em respeito mútuo e obra comum. Assim entendido, um Museu das Descobertas, sem os preciosismos rebuscados - até no nome (Museu da Interculturalidade de Origem Portuguesa, p. ex., que disparate!) - nem laivos de pretensiosismos de primazia, precedência ou superioridade (o nosso ridículo jeito de nos pormos em bicos de pés) poderá ser um ponto de encontro e repartida. A História é já testemunha de obras esforçadas, como de erros e omissões. Mas, gostemos ou não, o que assim foi é o nosso passado comum. E é natural e amável o sentimento do pequeno povo português quando recorda os seus varões assinalados / que em perigos e guerras esforçados / mais do que permitia a força humana / passaram inda além da Tabrobana... Paul Butel, bretão que foi professor de história moderna na Universidade de Bordéus, abre a sua Histoire de l´Atlantique com o seguinte parágrafo:

 

   Pretende uma lenda que aqueles que iam ver o pôr do sol ao alto do cabo de São Vicente, em Portugal, o viam cem vezes maior do que parecia noutros sítios, e podiam ouvir o assobio do astro imenso a apagar-se nas ondas. A visão lendária aumenta com o sol a dimensão de um horizonte marinho que sempre fascinou os homens para simultaneamente os atrair e afastar...

 

   Vencer o medo para que a audácia nos leve ao encontro do desconhecido, ter esperança de que mergulhar na névoa pode não ser desaparecimento, mas achamento de um novo abraço do mundo - eis, Princesa de mim a descoberta que queremos recordar. 

 

Camilo Maria

Camilo Martins de Oliveira

A VIDA DOS LIVROS

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  De 25 de junho a 1 de julho de 2018

 

«Estuário» (D. Quixote, 2018) é o mais recente romance de Lídia Jorge, no qual domina uma metáfora forte: o estuário surge, para a escritora, como uma paragem antes do esquecimento…

 

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UM CERTO REGRESSO

 

Em Estuário, Lídia Jorge volta, de algum modo, a O Dia dos Prodígios, não para repetir o tema, mas para retomar um certo sentido bíblico ou até litúrgico na consideração do tempo. Se o primeiro romance, justamente celebrado, nasceu da urgência libertadora, e se Os Memoráveis procuram uma reflexão feita a partir da relatividade dos acontecimentos, das pessoas e das coisas, Estuário parte da crise portuguesa e procura reencontrar “o carácter estoico e a honradez antiga” – perante a incapacidade de uma resposta que permita uma “sobrevivência digna”. E o que é aqui o homem moderno? Alguém que não sendo capaz de salvar o mundo, procura a ficção como modo de tentar consegui-lo. Edmundo Galeano são várias figuras a falar ao mesmo tempo – e o tema central não é outro senão o da resistência. E é bom que se diga que Lídia Jorge regressa, com coerência e determinação, a um tema que é seu e a que tem voltado persistentemente, em diversos registos e tons. E diz a autora: “o livro é sobre a grande crise que estamos a viver – mais do que sobre a crise que passámos” (DN, 26.5.2018). De facto, é ilusório pensar-se que a crise circunstancial está definitivamente passada. Há elementos duradouros que exigem reflexão e prevenção. E, ao longo de todo o romance, notamos um apelo constante a que nos mantenhamos atentos e firmes, e mais do que isso, que estejamos ativos. De facto, há muitos elementos dissuasores que impedem que as vozes cidadãs cheguem onde devem chegar para ser ouvidas. A comunicação de que muito se fala, torna-se tantas vezes uma ilusão. É este o problema da democracia hoje, tão mergulhada em crises e perplexidades, porque faltam instituições mediadoras, que impeçam a tirania do número, do imediato e da indiferença. E nos desencontros com o Estado a que aqui assistimos é da falta de mediação que, essencialmente, se trata.

 

 

UMA FAMÍLIA ENCLAUSURADA

 

O que encontramos no romance é uma família que vive enclausurada. E presenciamos um diálogo entre os grandes dramas globais, os processos históricos, e o que está próximo – o que vive ao nosso lado, sem cuja compreensão não podemos entender quem somos e onde estamos. Afinal, só se pode perceber o significado da tragédia dos outros quando esta deixa de ser abstrata – quando o medo deixa de ser difuso e passa a ser possível e próximo. Ao sentir a compaixão pelo próximo compreende-se que se pode escrever sobre o longínquo, sem que seja através de um mero conjunto de vagos lugares comuns. A distância desempenha, pois, um papel fundamental – os grandes problemas globais deixam na penumbra os dramas concretos que estão perto. E como em O Dia dos Prodígios também há a presença da magia, em breves apontamentos. Por exemplo, um casal atira ao mar uma mensagem dentro de uma garrafa à espera de uma boa notícia. Só os escritores podem perder o pudor para falarem sobre o que cada um procura esconder. Lídia Jorge tem-no repetido e assume como romancista o dever de não deixar por mãos alheias essa determinação. Urge desocultar o que está escondido. Resistência e emancipação, eis o que aqui encontramos ao longo de toda a obra. E Charlote encontra a sua força revelando a sua pele e o seu corpo, tornando a vulnerabilidade um modo de afrontar o medo, protagonizando uma história de amor. E que é o medo senão uma recusa de sermos nós perante os outros? Fechamo-nos dentro de uma concha, enclausuramo-nos e a memória, em lugar de se tornar um modo de nos abrirmos aos outros, torna-se lugar de ressentimento. Estuário poderia, segundo a autora, ter-se chamado “Casa dos Sonhos Trocados”. A crise geral, de facto, deve-se a uma inversão de valores e de sonhos… “A partir do que escrevemos tentamos iluminar. Cada frase é uma sombra da sombra de um sonho. Esse sonho é a realidade” (JL, 23.5.18).

 

Edmundo Galeano andou pelo mundo, esteve numa missão humanitária do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR) no campo de Dadaab e regressou à casa paterna sem parte da mão direita. A grande casa de cinco pisos do Largo do Corpo Santo é uma metáfora da vida e do mundo e a mão direita desfigurada de Edmundo torna-se motivo da defesa da invenção literária perante a realidade nua e crua. Manuel Galeano, o pai, representa um tempo ligado ao mar que passou, mas faz da honradez a sua marca indelével, até às últimas consequências. A espera do Estado é desesperante, mas não é essa a salvação que se pode esperar. A resistência, afinal, manifesta-se contra esse Estado burocrático, distante, insensível. Há a frieza de Amadeu Lima, mas também o encontro entre ele e Charlote. São as duas faces da moeda – quem representa o poder de decisão e quem desesperadamente pede uma solução. “O que tinha ficado, isso sim, era um relâmpago que unia pessoas. Entre eles acontecia um relâmpago”… Esta era a face oculta de uma relação cheia de interrogações. A ficção da literatura torna-se um modo de afirmação substancial da resistência e da emancipação. Mais do que na culpa, importaria pôr a tónica na determinação em ir em frente. A literatura fixa a imagem que fica.

 

 

SOB A SOMBRA FERNANDO PESSOA

 

Se é verdade que “Ode Marítima” de Álvaro de Campos marca este romance – entre o drama do mar e a defesa da casa –, a Ilíada torna-se referência natural de um modelo literário revelador da humanidade de sempre. O funeral de Heitor, o herói amado pelos deuses, é lembrado – “como se o destino dos homens fosse um eterno combate, havendo um outro valor a defender” – para além do “compromisso dos contendores de adiarem por uns dias a nova batalha”. E Heitor é sempre um símbolo especial. Apesar de derrotado por Aquiles, depois de vencer Pátroclo, deixa-nos a ideia de que é essencial resistir. Com esta matéria-prima far-se-ia o caminho de salvação da humanidade, não feita de abstrações, mas de gestos e compromissos concretos. E aqui começa o romance de Edmundo Galeano, denominado 2030, no qual vamos encontrar temas de ameaça e perdição, mas também de salvação. Do que se trata é de um processo de aproximações sucessivas – a Terra gerida por quem tivesse a bomba nuclear ou o maior número de armas potentes e mortíferas; a ocorrência do Apocalipse e o subsequente Inverno Nuclear; e por fim a salvação dos que passavam por perto… “Salvavam-se os que conhecia, aqueles que surpreendera em plena batalha pela vida diária, esse humilde plano”… E que é o estuário? O encontro do rio e do mar, da água doce e da água salgada. A vida faz-se de contradições e complementaridades. E este romance permite-nos lidar com uma realidade multifacetada e inesgotável. Uma metáfora forte: o estuário surge, para a escritora, como uma paragem antes do esquecimento… E, não por acaso, Lídia Jorge usa como paráfrase do romance o que diz Saint-John Perse: “Eleva-se em nós um canto / que não conheceu nascente / e não terá foz em estuário”…

 

Guilherme d'Oliveira Martins
Oiça aqui as minhas sugestões - Ensaio Geral, Rádio Renascença

Ensaio Geral desta sexta-feira é dedicado ao jardim botânico do palácio nacional de Queluz, que foi reabilitado e mereceu o prémio da União Europeia para o Património Cultural, prémio Europa Nostra. Convidados da Renascença foram Manuel Batista, presidente do conselho de administração da Parques Sintra; Nuno Oliveira, engenheiro que faz a direção técnica do espaço; e Guilherme d’Oliveira Martins.
 
 

CARTAS DE CAMILO MARIA DE SAROLEA

 

Minha Princesa de mim:

 

   Gabriel Fauré (1845-1924), compositor francês, foi mestre de capela na igreja da Madalena, em Paris. Gosto de o pensarsentir como um agnóstico de alma profundamente religiosa, e talvez seja no seu Requiem que ele assim tal qual mais se revela. Li algures - não me recordo de onde nem quando - a notícia de que essa obra foi executada pela primeira vez na própria igreja da Madalena, nas exéquias de um paroquiano. No final, o pároco perguntou a Fauré que peça era aquela, pois não a conhecia. O compositor respondeu que era uma missa de requiem sua, o que lhe valeu uma reprimenda e a injunção de não voltar a repeti-la ali, pois no acervo da Madalena já havia coisas dessas em número suficiente... Por outro lado, sei que a primeira intenção de Fauré foi comemorar a morte do pai, terminando a primeira versão da obra já para acompanhar a morte da mãe, dois anos mais tarde. Digo-te isto por sentir que a mansidão da música desta encomenda de almas se inspira muito na devoção de um amor filial.

 

   É verdade que, como muito bem aponta Lionel Salter na apresentação do registo da peça na EMI (entre os Great Recordings of the Century), interpretada pela Orchestre de la Société des Concerts du Conservatoire e os Choeurs Elisabeth Brasseur, sob direção do belga André Cluytens, e com os solistas Victoria de los Angeles (soprano espanhola) e Dietrich Fischer Dieskau (barítono alemão), este Requiem se afasta muito dos modelos clássicos, de Mozart a Cherubini, da ênfase teatral do Requiem dramático de Verdi, em que o homem tremendo de terror fala, balbuciando, em morte eterna, e sobretudo da visão apocalíptica grandiosa de Berlioz, com as suas "fanfarras fulminantes"... O próprio Gabriel Fauré disse, em carta a um amigo, que o meu Requiem é tão meigo como eu. O meu Requiem... já alguém disse que ele não exprime o susto da morte, já lhe chamaram uma cantiga de embalar a morte. Mas é assim que sinto a morte: como feliz libertação, aspiração à felicidade do além, mais do que um trânsito doloroso. Compreendo Fauré:  todo ele, pensossinto eu, se exprime essencialmente nessa prece pelo descanso do coração na mão de Deus, na sua mão direita, como sonhou o nosso Antero, e que o breve Pie Jesu exprime : Pie Jesu, Domine, / dona eis requiem. / Pie Jesu, Domine, / dona eis requiem sempiternam. Escuto hoje esse sereno pedido de ternura («piedoso Jesus, Senhor, dá-lhes descanso, / misericordioso Jesus, Senhor, dá-lhes eterno descanso») na voz de Victoria de los Angeles e, já noutro registo, nas dos meninos do Choir of New College de Oxford, sob a direcção de Edward Higginbottom (ERATO). Na verdade, fui buscar ambos os discos, para me acompanharem na reflexão  sobre a primeira das Cinq méditations sur la mort - autrement dit sur la vie, de François Cheng (Albin Michel, Paris, 2013). A morte, afinal, terá o mérito de - traduzo - nos levar a tomar consciência do que é, na essência, a noção de vida. Vem-nos ao espírito uma palavra que parece caracterizar essa noção: a palavra «devir». Sim, é isso a vida: algo que advém e que devém. Logo que vinda, entra em processo de devir. Sem devir, não haveria vida: a vida só é vida enquanto devir. A partir daí, compreendemos a importância do tempo. É no tempo que aquilo se passa. Ora, é precisamente a existência da morte que nos confere o tempo. Vida-tempo-morte: eis um todo indissociável, a não ser que seja morte-tempo-vida. Façamos os malabarismos que quisermos, não conseguiremos escapar a essas três entidades concomitantes e cúmplices, que determinam qualquer fenómeno vivo. Pois se o tempo nos parece um terrível devorador de vidas, ele é simultaneamente o seu grande fornecedor. Sujeitar-nos ao seu domínio é o preço que temos de pagar para entrar no processo do devir. Esse domínio manifesta-se por incessantes ciclos de nascimentos e de mortes; fixa a condição trágica do nosso destino, condição essa que também poderá ser fundação de uma certa grandeza.

 

   Nesse sentido, para o sino-francês François Cheng, refugiado em França aos vinte anos, sem saber uma palavra da língua local, hoje membro da Académie Française, poeta e pensador que respira uma espiritualidade alimentada de taoísmo e cristianismo (que descobriu, anos depois de chegar à Europa, em Assis, pelo exemplo da São Francisco), a morte corporal, que tanto nos angustia e assusta, pode revelar-se como a dimensão mais íntima, mais secreta, mais pessoal, da nossa existência. Pode ser esse núcleo de necessidade à volta do qual a vida se articula. Neste sentido, é mesmo revolucionário o Cântico das Criaturas de S. Francisco de Assis, que à morte corporal chama «nossa irmã». Abre-se-nos então uma mudança de perspectiva : em vez de encararmos a morte como um espantalho, a partir deste lado da vida, poderíamos encarar a vida a partir do outro lado, que é a nossa morte. Nessa postura, enquanto estivermos em vida, a nossa orientação e os nossos actos serão sempre impulsos para a vida.

 

   O mesmo Cheng conta, no seu opúsculo Assise - une rencontre inattendue (Albin Michel, Paris, 2014) como, em 1971, no momento em que se naturalizava francês, teve o privilégio de escolher um nome próprio: François. É certo que tal nome tem o condão de significar «francês», minha nova cidadania. Mas a razão mais determinante foi que, dez anos antes, em 1961, me tinha encontrado com o irmão universal que todo o Ocidente conhece, e no qual qualquer ser, mesmo vindo de longe, se pode reconhecer : Francisco de Assis.

 

   O autor deste encantador livrinho, Princesa de mim, que te aconselho a ler, fez questão em publicá-lo anexando-lhe o Laudato si´... esse canto franciscano das criaturas, que acaba assim:

 

               Louvado sejas, meu Senhor,

               pela nossa irmã, a Morte corporal,

               a quem nenhum homem vivo pode escapar.

               Infelizes os que morrem

               em pecado mortal ;

               felizes aqueles que ela surpreende

               a fazer a tua vontade,

               pois não lhes será ruim segunda morte.

 

               Louvai e bendizei o meu Senhor,

               dai-lhe graças

               e servi-o com toda a humildade!

 

   Fiz esta tradução da versão francesa de François Cheng, por dele falarmos agora. Lembro-me todavia de já te ter enviado outra minha versão para português, essa directamente feita do dialecto úmbrio original, em que foi composto o Laudes Creaturarum - ou Cantico di Frate Sole, assim chamado por virtude da 2ª estrofe (versos 5 a 9) - provavelmente em 1224-25, em São Damião (Assis), onde Cheng também se demorou, 736 anos depois. Para ilustrar o que se diz a seguir, deixo-te hoje, sem tradução, essa estância, como São Francisco a cantou:

 

               Laudato sie, mi´Signore, cum tucte le tue creature,

               Spetialmente messor lo fratre sole,

               Lo qual´è iorno, et allumini noi per lui.

               Et ellu è bellu e radiante cum grande splendore :

               De te, Altissimo, porta significatione.

 

   Pelos vistos, Princesa de mim, o nosso Sto. António não teria tido grande dificuldade em traduzir o seu português alfacinha para um dialecto italiano... Quiçá menos ainda em comungar nesse amor universal, divino, telúrico e humano. Já muitos autores observaram também como o texto franciscano «os laços que tece com a cultura latina, essa escrita ornamentada com rimas e assonâncias, poderosamente ritmadas pelo modelo dos salmos...» (Danielle Boillet) ou sublinharam, como Frédéric Ozanam (Les Poètes franciscains en Italie au treizième siècle, Paris 1882), o «valor humano e religioso deste texto». Traduzo:

 

   O poema de São Francisco é bem curto, e todavia nele encontramos toda a sua alma : a sua fraterna amizade das criaturas; a caridade que guiava esse homem humilde e tímido através das querelas públicas ; esse amor infinito que, depois de ter procurado Deus na natureza e de o ter servido na humanidade sofredora, a mais não aspirava do que a encontrar a morte. 

 

   E é por este santo pobre de Deus que o intelectual, e também poeta, chinês, François Cheng verá em Jesus Cristo a Via (dao) do seu taoísmo de raízes milenares. A fechar esta carta, Princesa, traduzo-te um trecho significativo do Assise - une rencontre inattendue, onde, através dum chinês que escreve em francês também eu experimento um encontro meu que, louvado seja!, é sempre inesperado:

 

   O que ele vê diz-lhe que, apesar de tudo, há sempre razão de louvor. E que outra coisa louvar, se não a própria Criação, com o esplendor do céu estrelado e a magnificência da terra fecunda, essa Criação que, certo dia, a partir do Nada, fez advir o Tudo? Ao louvar, vemos desenrolar-se todo o processo do advento, uma doação total, pela qual só podemos e devemos dizer o nosso reconhecimento. Ele reconhece o facto de que milagrosamente o Ser é, e de que graças a esse facto primeiro, ele mesmo, por minúsculo que seja, ele é. Ao louvar, mergulha totalmente no infinito, no Aberto. Sabe-se parte legítima de uma imensa aventura em devir, a da Vida, com tudo o que ela comporta de desafios e paixões, de dores e de alegrias, de corridas para o abismo e de elevação para a transcendência. Os sofrimentos de cada um e de todos só podem ser ultrapassados no abandono constante à marcha da Via, a única que não nos trairá. Por experiência, Francisco sabe que o que move a aventura da Vida não se limita à potência material, antes é o próprio amor. Por isso, depois de ter louvado as criaturas, cada uma enquanto dom único, ele distingue em particular o destino humano : «Louvado sejas tu, meu Senhor, pelos que perdoam por amor de ti ; que suportam provações e doenças ; felizes os que se mantêm em paz, pois que, por ti, ó Altíssimo, serão coroados!»

 

   Eis o que cantam os versos 23 a 26 do Laudes Creaturarum:

 

               Laudato si´mi´Signore, per quelli ke perdonano per lo tuo amore

               Et sostengo infirmitate et tribulatione.

 

               Beati quelli ke´l sosterrano in pace,

               Ka da te, Altissimo, sirano incoronati.

 

   Há muita vida, Princesa, para além da vanglória e do conforto, da desilusão e do pessimismo, de tudo o que afinal é esse individualismo tacanho que ensombra os nossos dias...

              

Camilo Maria   

 

Camilo Martins de Oliveira

UM LIVRO SOBRE OS TEATROS DO BAIRRO ALTO

 

Nesta série de artigos sobre os Teatros portugueses ou de raiz histórica portuguesa, tivemos já ocasião de evocar e descrever um conjunto de edifícios ou espaços vocacionados para a atividade teatral: muitos perduram, outros desapareceram, muitos representam uma tradição histórica e arquitetónica, outros não se destacam pela qualidade do projeto e /ou da edificação e conservação.

 

A maioria corresponde ao território nacional, aí incluindo obviamente os teatros dos Açores e da Madeira: mas também aqui referimos numerosos teatros das ex-colónias e até, no que se refere à perspetiva histórica, ao Teatros romanos de Mérida e ao Teatro Manoel de La-Valetta, em Malta.

 

De qualquer forma, são assim descritos ou evocados centenas de teatros, pois muitos dos artigos referem mais do que um, por vezes bastante mais quando decorrem da implantação urbana ou da identificação do arquiteto: sendo certo, entretanto, que também há teatros analisados mais de uma vez. E temos ainda referências a livros sobre cidades ou zonas urbanas de grande tradição e implantação de salas de espetáculo, por vezes ao longo de centenas de anos.

 

E é esse o caso que hoje nos ocupa.

 

Referimo-nos então agora a um livro recentemente publicado, “O Bairro dos Jornais - As Histórias que Marcaram o Bairro Alto e os Seus Jornais”, da autoria de Paulo Martins (Quetzal ed. 2018).

 

Precisamente: o Capítulo 1, intitulado “Em Rutura com a Cidade Medieval”, cita e descreve os Teatros que a partir do século XVIII, foram lá implantados, desde logo em 1733, com o então chamado Teatro do Bairro Alto, no Palácio dos Condes de Soure, onde se realizaram os espetáculos de marionetas de António José da Silva.

 

Mas diz-nos o autor: “Arrasado pelo terramoto, o teatro ressuscitou em 1761. É provável que tenha adquirido a nova designação de Casa da Ópera do Pátio do Conde de Soure, talvez aproveitando parte das ruínas do palácio, uma vez que se situava na Rua da Rosa. Dinamizado pelo empresário João Gomes Varela, proporcionou a estreia a Luísa Todi em 1769” (pág. 33).

 

E o livro de Paulo Martins cita mais uma série de Teatros situados na mesma área urbana: um chamado Teatro Pitoresco, assim mesmo, de 1814, onde terá estreado o “Catão” de Almeida Garrett. E em 1836 Garrett fundou a Conservatório e instalou-o no antigo Convento dos Caetanos.

 

E na mesma zona de Lisboa instalaram-se sucessivas salas de espetáculo, com destaque, porque dura até hoje, para o Teatro da Trindade.

 

O livro de Paulo Martins cita outros teatros e cinemas, alguns que já aqui também referimos, outros não: o Trindade, o Ginásio, mas também, próximos, o São Carlos, o São Luís, e cinemas como o Chiado Terrasse ou o Ideal, que, por incrível que pareça, vem de 1912, com sucessivas e variadas designações: “Foi sucessivamente Cinema Ideal, Cine Camões (após 1978, depois de obras de remodelação) e Cine Paraíso nos anos 1990”. Depois fechou: “reabriu em 2014 completamente renovado. De novo Cinema Ideal, valoriza o conceito de cinema de bairro” (ob. cit.pág. 35).

 

Assim fossem todos!...   

DUARTE IVO CRUZ

A LÍNGUA PORTUGUESA NO MUNDO

 

XXXVI - O REINO UNIDO E O INGLÊS

 

Com o fim da segunda guerra mundial, para além da vitória dos aliados anglófonos sobressai, em termos linguísticos, a vitória da língua inglesa.

 

As economias e nações ocidentais sobreviventes da guerra, ficaram dependentes dos países falantes de inglês, em especial dos Estados Unidos da América, o mesmo sucedendo com o Japão e países da Ásia em geral.  

 

Ficaram de fora, temporariamente, os países que integravam o então bloco de leste europeu, afetos ao espaço de influência da então União Soviética. 

 

Apesar do papel decisivo e fundamental dos Estados Unidos, descendente do Reino Unido, ambos países falantes de inglês e tendo como património comum a mesma língua,  nada impediu que a antiga potência colonizadora tivesse uma estratégia visionária para a difusão e expansão da língua inglesa a nível mundial.     

 

Uma das instituições usadas para a qualificação linguística do inglês, foi o British Council, organismo oficial do Reino Unido, fundado em 1934, primeiro sob a designação de British Commitee for Relations with Other Countries, sob tutela do Foreign Office, para a promoção da ciência, cultura, educação e tecnologia britânicas.

 

Esta difusão inicial (e em geral) da língua e cultura britânicas, evoluiu e adaptou-se ao contexto mundial do momento, passando o British Council a apresentar-se como uma instituição vocacionada para a construção de relações reciprocamente vantajosas entre o povo britânico e demais povos, visando desvincular-se da associação a formas de imperialismo cultural e linguístico a que a cultura e língua inglesa, incluindo a anglofonia, são associadas. 

 

Deixou de proporcionar apenas o ensino da língua e cultura britânica, passando também a promover as “educational opportunities”.  

 

Tornou-se insuficiente recrutar leitores para lecionarem em universidades estrangeiras, apoiar escolas e bibliotecas no exterior, organizar e apoiar eventos e espetáculos culturais, mesmo com o apoio de embaixadas e consulados, passando a ser primordial proporcionar ferramentas culturais e educacionais vantajosas, numa projeção para voos mais altos que os do governo. 

 

Mudança de estratégia que tem como subjacente a constatação de que a língua inglesa, a nível internacional, está a deixar de ser, cada vez mais, para muitos, uma língua estrangeira, antes sim uma segunda língua, para além da materna, ou em paralelo com esta, sendo tida como uma ferramenta indispensável em termos pessoais e profissionais. O elevado número de pessoas que aprendem atualmente inglês, prevê-se que diminua para 500 a 600 milhões em 2050, não por qualquer desinteresse pelo inglês, mas, tão só, por, previsivelmente, a maioria da população mundial já o dominar.  

 

Uma reflexão útil, por certo, para os responsáveis em Portugal pela atuação e intervenção do Instituto Camões, no âmbito das políticas em redor da língua e cultura portuguesa e lusófona.             

 

19.06.2018
Joaquim Miguel de Morgado Patrício 

O POETA DA BOLA

 

No segundo incerto

A certeza que segura no respirar e no olhar

Suspenso e unânime dentro de si e iminente

E já subindo o impossível na aresta viva de um conseguir

Apertados que estão todos os sonhos trabalhados à exaustão

De encontro aos ásperos pilares das inúmeras barragens

Eis a vida cumprida no golo que é naquele momento

O que lhe resta, livre, altivo, humano

E Cristiano

Num coro de milhões é um sinal aos homens

Que desde as suas profundidades inimagináveis

Se podem encontrar numa fulguração indizível

A tal ponto inatingível que o conseguem

E chegarão à verdade

Até onde sem palavras o riso franco, feliz

Aberto de par em par

Se nos oferece

E eis o poeta da bola no pé

A desvendar-se desde sempre e neste agora

Um diamante de menino que cria

A sua poesia - possante abraço

Que tudo alaga e nos corre

Por dentro

Ligando coisas que não sabemos

 

Teresa Bracinha Vieira
Junho 2018

 

P.S. Já tenho escrito sobre Cristiano Ronaldo, tentando interpretar o seu saber crescer. Hoje gostaria que a minha bandeira fosse este poema que lhe ofereço à custa de sempre o ter entendido como entendo o mar: uma ilha, uma fruta onde ferve a vida espessa já que só é espessa a vida que se desdobra em mais vida, tal como a flor é mais espessa que a fruta e o dia se adquire a cada dia.

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