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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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CARTAS DE CAMILO MARIA DE SAROLEA

 

Minha Princesa de mim:

 

   Gabriel Fauré (1845-1924), compositor francês, foi mestre de capela na igreja da Madalena, em Paris. Gosto de o pensarsentir como um agnóstico de alma profundamente religiosa, e talvez seja no seu Requiem que ele assim tal qual mais se revela. Li algures - não me recordo de onde nem quando - a notícia de que essa obra foi executada pela primeira vez na própria igreja da Madalena, nas exéquias de um paroquiano. No final, o pároco perguntou a Fauré que peça era aquela, pois não a conhecia. O compositor respondeu que era uma missa de requiem sua, o que lhe valeu uma reprimenda e a injunção de não voltar a repeti-la ali, pois no acervo da Madalena já havia coisas dessas em número suficiente... Por outro lado, sei que a primeira intenção de Fauré foi comemorar a morte do pai, terminando a primeira versão da obra já para acompanhar a morte da mãe, dois anos mais tarde. Digo-te isto por sentir que a mansidão da música desta encomenda de almas se inspira muito na devoção de um amor filial.

 

   É verdade que, como muito bem aponta Lionel Salter na apresentação do registo da peça na EMI (entre os Great Recordings of the Century), interpretada pela Orchestre de la Société des Concerts du Conservatoire e os Choeurs Elisabeth Brasseur, sob direção do belga André Cluytens, e com os solistas Victoria de los Angeles (soprano espanhola) e Dietrich Fischer Dieskau (barítono alemão), este Requiem se afasta muito dos modelos clássicos, de Mozart a Cherubini, da ênfase teatral do Requiem dramático de Verdi, em que o homem tremendo de terror fala, balbuciando, em morte eterna, e sobretudo da visão apocalíptica grandiosa de Berlioz, com as suas "fanfarras fulminantes"... O próprio Gabriel Fauré disse, em carta a um amigo, que o meu Requiem é tão meigo como eu. O meu Requiem... já alguém disse que ele não exprime o susto da morte, já lhe chamaram uma cantiga de embalar a morte. Mas é assim que sinto a morte: como feliz libertação, aspiração à felicidade do além, mais do que um trânsito doloroso. Compreendo Fauré:  todo ele, pensossinto eu, se exprime essencialmente nessa prece pelo descanso do coração na mão de Deus, na sua mão direita, como sonhou o nosso Antero, e que o breve Pie Jesu exprime : Pie Jesu, Domine, / dona eis requiem. / Pie Jesu, Domine, / dona eis requiem sempiternam. Escuto hoje esse sereno pedido de ternura («piedoso Jesus, Senhor, dá-lhes descanso, / misericordioso Jesus, Senhor, dá-lhes eterno descanso») na voz de Victoria de los Angeles e, já noutro registo, nas dos meninos do Choir of New College de Oxford, sob a direcção de Edward Higginbottom (ERATO). Na verdade, fui buscar ambos os discos, para me acompanharem na reflexão  sobre a primeira das Cinq méditations sur la mort - autrement dit sur la vie, de François Cheng (Albin Michel, Paris, 2013). A morte, afinal, terá o mérito de - traduzo - nos levar a tomar consciência do que é, na essência, a noção de vida. Vem-nos ao espírito uma palavra que parece caracterizar essa noção: a palavra «devir». Sim, é isso a vida: algo que advém e que devém. Logo que vinda, entra em processo de devir. Sem devir, não haveria vida: a vida só é vida enquanto devir. A partir daí, compreendemos a importância do tempo. É no tempo que aquilo se passa. Ora, é precisamente a existência da morte que nos confere o tempo. Vida-tempo-morte: eis um todo indissociável, a não ser que seja morte-tempo-vida. Façamos os malabarismos que quisermos, não conseguiremos escapar a essas três entidades concomitantes e cúmplices, que determinam qualquer fenómeno vivo. Pois se o tempo nos parece um terrível devorador de vidas, ele é simultaneamente o seu grande fornecedor. Sujeitar-nos ao seu domínio é o preço que temos de pagar para entrar no processo do devir. Esse domínio manifesta-se por incessantes ciclos de nascimentos e de mortes; fixa a condição trágica do nosso destino, condição essa que também poderá ser fundação de uma certa grandeza.

 

   Nesse sentido, para o sino-francês François Cheng, refugiado em França aos vinte anos, sem saber uma palavra da língua local, hoje membro da Académie Française, poeta e pensador que respira uma espiritualidade alimentada de taoísmo e cristianismo (que descobriu, anos depois de chegar à Europa, em Assis, pelo exemplo da São Francisco), a morte corporal, que tanto nos angustia e assusta, pode revelar-se como a dimensão mais íntima, mais secreta, mais pessoal, da nossa existência. Pode ser esse núcleo de necessidade à volta do qual a vida se articula. Neste sentido, é mesmo revolucionário o Cântico das Criaturas de S. Francisco de Assis, que à morte corporal chama «nossa irmã». Abre-se-nos então uma mudança de perspectiva : em vez de encararmos a morte como um espantalho, a partir deste lado da vida, poderíamos encarar a vida a partir do outro lado, que é a nossa morte. Nessa postura, enquanto estivermos em vida, a nossa orientação e os nossos actos serão sempre impulsos para a vida.

 

   O mesmo Cheng conta, no seu opúsculo Assise - une rencontre inattendue (Albin Michel, Paris, 2014) como, em 1971, no momento em que se naturalizava francês, teve o privilégio de escolher um nome próprio: François. É certo que tal nome tem o condão de significar «francês», minha nova cidadania. Mas a razão mais determinante foi que, dez anos antes, em 1961, me tinha encontrado com o irmão universal que todo o Ocidente conhece, e no qual qualquer ser, mesmo vindo de longe, se pode reconhecer : Francisco de Assis.

 

   O autor deste encantador livrinho, Princesa de mim, que te aconselho a ler, fez questão em publicá-lo anexando-lhe o Laudato si´... esse canto franciscano das criaturas, que acaba assim:

 

               Louvado sejas, meu Senhor,

               pela nossa irmã, a Morte corporal,

               a quem nenhum homem vivo pode escapar.

               Infelizes os que morrem

               em pecado mortal ;

               felizes aqueles que ela surpreende

               a fazer a tua vontade,

               pois não lhes será ruim segunda morte.

 

               Louvai e bendizei o meu Senhor,

               dai-lhe graças

               e servi-o com toda a humildade!

 

   Fiz esta tradução da versão francesa de François Cheng, por dele falarmos agora. Lembro-me todavia de já te ter enviado outra minha versão para português, essa directamente feita do dialecto úmbrio original, em que foi composto o Laudes Creaturarum - ou Cantico di Frate Sole, assim chamado por virtude da 2ª estrofe (versos 5 a 9) - provavelmente em 1224-25, em São Damião (Assis), onde Cheng também se demorou, 736 anos depois. Para ilustrar o que se diz a seguir, deixo-te hoje, sem tradução, essa estância, como São Francisco a cantou:

 

               Laudato sie, mi´Signore, cum tucte le tue creature,

               Spetialmente messor lo fratre sole,

               Lo qual´è iorno, et allumini noi per lui.

               Et ellu è bellu e radiante cum grande splendore :

               De te, Altissimo, porta significatione.

 

   Pelos vistos, Princesa de mim, o nosso Sto. António não teria tido grande dificuldade em traduzir o seu português alfacinha para um dialecto italiano... Quiçá menos ainda em comungar nesse amor universal, divino, telúrico e humano. Já muitos autores observaram também como o texto franciscano «os laços que tece com a cultura latina, essa escrita ornamentada com rimas e assonâncias, poderosamente ritmadas pelo modelo dos salmos...» (Danielle Boillet) ou sublinharam, como Frédéric Ozanam (Les Poètes franciscains en Italie au treizième siècle, Paris 1882), o «valor humano e religioso deste texto». Traduzo:

 

   O poema de São Francisco é bem curto, e todavia nele encontramos toda a sua alma : a sua fraterna amizade das criaturas; a caridade que guiava esse homem humilde e tímido através das querelas públicas ; esse amor infinito que, depois de ter procurado Deus na natureza e de o ter servido na humanidade sofredora, a mais não aspirava do que a encontrar a morte. 

 

   E é por este santo pobre de Deus que o intelectual, e também poeta, chinês, François Cheng verá em Jesus Cristo a Via (dao) do seu taoísmo de raízes milenares. A fechar esta carta, Princesa, traduzo-te um trecho significativo do Assise - une rencontre inattendue, onde, através dum chinês que escreve em francês também eu experimento um encontro meu que, louvado seja!, é sempre inesperado:

 

   O que ele vê diz-lhe que, apesar de tudo, há sempre razão de louvor. E que outra coisa louvar, se não a própria Criação, com o esplendor do céu estrelado e a magnificência da terra fecunda, essa Criação que, certo dia, a partir do Nada, fez advir o Tudo? Ao louvar, vemos desenrolar-se todo o processo do advento, uma doação total, pela qual só podemos e devemos dizer o nosso reconhecimento. Ele reconhece o facto de que milagrosamente o Ser é, e de que graças a esse facto primeiro, ele mesmo, por minúsculo que seja, ele é. Ao louvar, mergulha totalmente no infinito, no Aberto. Sabe-se parte legítima de uma imensa aventura em devir, a da Vida, com tudo o que ela comporta de desafios e paixões, de dores e de alegrias, de corridas para o abismo e de elevação para a transcendência. Os sofrimentos de cada um e de todos só podem ser ultrapassados no abandono constante à marcha da Via, a única que não nos trairá. Por experiência, Francisco sabe que o que move a aventura da Vida não se limita à potência material, antes é o próprio amor. Por isso, depois de ter louvado as criaturas, cada uma enquanto dom único, ele distingue em particular o destino humano : «Louvado sejas tu, meu Senhor, pelos que perdoam por amor de ti ; que suportam provações e doenças ; felizes os que se mantêm em paz, pois que, por ti, ó Altíssimo, serão coroados!»

 

   Eis o que cantam os versos 23 a 26 do Laudes Creaturarum:

 

               Laudato si´mi´Signore, per quelli ke perdonano per lo tuo amore

               Et sostengo infirmitate et tribulatione.

 

               Beati quelli ke´l sosterrano in pace,

               Ka da te, Altissimo, sirano incoronati.

 

   Há muita vida, Princesa, para além da vanglória e do conforto, da desilusão e do pessimismo, de tudo o que afinal é esse individualismo tacanho que ensombra os nossos dias...

              

Camilo Maria   

 

Camilo Martins de Oliveira