CARTAS DE CAMILO MARIA DE SAROLEA
Minha Princesa de mim:
Foi hoje mesmo: tinha acabado de ler, no Público, o manifesto de cem africanos contra o eventual museu das descobertas, quando comecei a ver, no canal Mezzo, A Volta ao Mundo em 80 Minutos - um espetáculo da companhia de bailado Maurice Béjart, coreógrafo suíço hoje já falecido, que ainda conheci, há meio século, em Bruxelas, quando por lá tinha sedeado o seu corpo de balé. Recordo-me de, nesses tempos longínquos, me ter chamado a atenção uma frase do grande poeta senegalês Léopold Senghor, a afirmar, mais ou menos isto: A coreografia do Sacre du Printemps de Stravinsky por Maurice Béjart só se explica pelo sangue africano dos antepassados deste... Foi por esses anos, em 1975, que me aconteceu, na qualidade de perito da ONU para o PNUD, ter de visitar a República Popular do Congo e, ao desembarcar em Brazzaville, no meio de um controlo de chegadas apertado pela evidência de pistolas metralhadoras, ter sido identificado e conduzido a um encontro com o então primeiro ministro daquela república social-comunista, Henri Lopes. De ascendência portuguesa e bantu, logo me contou que me chamara pelo gosto de conhecer um português que, enviado por uma universidade europeia num programa da ONU, vinha prestar um serviço ao seu país. E falou-me, com sentido afeto e alguma melancólica amargura, na família da mestiçagem, tema que, aliás, redescobri no seu romance Le Chercheur d´Afriques (Seuil, Paris, 1990), que ganhou o Grand Prix Jules Verne, narrativa quiçá autobiográfica de um jovem mestiço que vai procurando, na saudade, a memória de seu pai branco... Quase trinta anos mais tarde, para recordar a história, mandou-me um livro seu - que ainda guardo - intitulado Ma grand-mère bantoue et mes ancêtres les Gaullois. Como saberás, Princesa de mim, nas colónias francesas as crianças logo no abc aprendiam a recitar nos ancêtres les Gaullois... Mas também sabes que, em processos de integração ou assimilação voluntarista, a aculturação das gentes pode desvirtuar-se e, para além de confusões e crises de identidade, pode obstruir as janelas de lucidez de que todos precisamos. Por tudo isso se torna imperioso praticarmos a lição de Tomás de Aquino que nos ensina a diferenciar para compreender. A aventura humana, científica, técnica, moral, económica, política das Descobertas, das grandes viagens de descobrimento do mundo, isto é, de uma revelação de terras, povos e culturas até então ignorados, quer pelos que partiram primeiro para a busca, quer pelos que, ao serem por esses descobertos, reciprocamente os descobriram, é um evento maior, melhor, um encadeamento de acontecimentos que muito mudaram o mundo de antes e fomentaram encontros novos. Nestes, como em todos as cheganças das nossas vidas, houve, ocasional ou forçosamente, um pouco de tudo: compreensões e incompreensões, simpatias e antipatias, acordos e beligerância, guerras ganhas e perdidas, dominadores e dominados...eu sei lá... tudo do que o género humano é capaz! Mas a celebração ou, sequer, a memória museológica das Grandes Descobertas, não é necessariamente, um sancionamento do colonialismo, nem da escravatura (sendo, aliás, o primeiro uma prática europeia novecentista, e a segunda muito anterior às Descobertas) Muito pelo contrário, se o seu projeto for concebido em partilha e com espírito de verdade e justiça, ele poderá ser motivo de novo encontro e redescoberta mútua. Permito-me agora, Princesa de mim, uma longa citação do ensaio de Henri Lopes Ma grand-mère bantoue et mes ancêtres les Gaulois, por vir de quem vem, de um homem que começou a sua vida política na esquerda africana anticolonialista:
A África foi descoberta pela Europa no século XIX. A África redescobriu-se duas vezes no século XX. Uma primeira vez na véspera das Independências, tomando consciência do seu passado, da sua história, assumindo a sua negritude e as suas identidades. Uma segunda vez com as guerras civis de fim de século.
A nossa primeira redescoberta foi salutar para a nossa dignidade. Despertou-nos, convenceu-nos de que não éramos esses selvagens sem história e sem direito, que os nossos senhores humilhavam, mas povos ricos de uma herança suscetível de fertilizar o património da humanidade. Essa tomada de consciência pôs em combate o movimento de reconquista das nossas soberanias. Mas a vitória embriagou-nos e considerámo-nos incensuráveis.
A segunda redescoberta impõe-nos, simultaneamente, uma meditação e uma ação imediata. Porque o Rwanda mais não foi do que a reedição do que já se tinha passado no Burundi, na Libéria, no Katanga, no Sudão, exemplo extremo do que tinha acontecido no Congo, do que ameaçou o processo de normalização na África do Sul, do que grassa noutras regiões da África. A primeira lição a tirar é a de que devemos tornarmo-nos modestos e pôr termo à nossa logomaquia. Tal como as outras sociedades humanas, nós temos antepassados de que nos podemos orgulhar e outros que não valem grande coisa... [...]
... A segunda lição a tirar desses acontecimentos é a de que as nossas culturas, como todas as culturas, tinham zonas de luz e zonas de sombra, onde a barbárie se dava à tripa forra. O nazismo tropical tem raízes profundas. Estava em maceração nos nossos inconscientes coletivos. Bestava um catalisador para o acordar. Sabíamos acolher com consideração e calor o estrangeiro de passagem, mas também alimentávamos inimizades tenazes com alguns dos nossos vizinhos. Era às terras deles que íamos buscar os nossos rebanhos de escravos.
Ao dizer isto, tenho consciência de estar a revelar tabus embaraçosos... [...]
... O francês, tal como o inglês, o espanhol, o português ou o árabe, devem o seu estatuto internacional à sua larga difusão. O chinês e o hindi são, cada um deles, falados num só país... ... Será preciso acrescentar mais comentários?
Primos gauleses: nós temos corpos e, quiçá, espíritos diferentes, mas certamente uma alma comum. Tal implica deveres recíprocos. Acima de todos, o da solidariedade.
Antes de terminar esta carta, que vai longa, permite-me, Princesa de mim, confiar-te mais duas recordações pessoais:
O Senghor, que foi Presidente do Senegal e membro da Academia Francesa, orgulhava-se de dizer que a família era originária da Casamança, território inicialmente administrado por Portugal (que depois o trocou, com a França, por outro no sul da atual Guiné-Bissau, em Catió) e que o seu apelido derivava do português Senhor. Foi isto várias vezes assim dito e escrito por esse chantre da negritude. Ouvi-o da própria boca do grande poeta francófono senegalês.
Ainda em viagem "onudense" pela África (selecionava então candidatos a bolseiros para a Universidade Católica de Lovaina), ia eu embarcar, no aeroporto de Lomé (Togo), num voo da Air Afrique para Libreville, quando os altifalantes clamam: Monsieur d´Oliveira, passager d´Air Afrique à destination de Libreville, est prié de se rendre au comptoir de la compagnie. Lá vou, intrigado, até ao balcão em que me acolhe uma hospedeira sorridente numa farda de garridas chitas africanas, anunciando-me que Monsieur Oliveira désire vous parler... Retorqui Mais... monsieur Oliveira c´est moi! e eis que ela larga um riso aberto e me aponta um oficial da companhia aérea, negro africano em alva farda branca, distinto e amável, que me estende um carão de visita onde li: Fernand H. Oliveira - Commissaire de Bord. Sorri e ele disse-me Il se peut qu´on soit cousins... Ao que respondi: J´en suis absolument sûr! Meses depois, ao fazer uma escala em Bruxelas, veio visitar-me e oferecer-me uma bela lembrança de África. Almoçámos juntos, como primos que se estimam.
Já várias vezes te escrevi sobre o ressentimento e a história, e sabes bem como pensossinto que o ressentir pode ser masoquismo ou, quando não é remoer o que na nossa própria vida nos afetou ou magoou, poderá ser ainda pior, como que uma busca insistente do que nos afasta ou antagoniza. A História foi, certamente, a nossa vida antes de nós, essa parte dela em que não fomos atores nem somos atuais. Nesse passado comum, houve de tudo, ou de tudo um pouco mais ou menos explicável - julgamos e discutimos - pelas ou nas circunstâncias de outros tempos. O que disso resta, o que ficou guardado, é parte da nossa cultura partilhada. O que disso vale ainda é o reconhecimento mútuo, e o comum anseio de que a memória nos ajude, no presente, a construir, em paz e justiça, o futuro de todos. Devidamente arrumados os agravos e as falsas "glórias", saibamos celebrar a descoberta recíproca e continuá-la em respeito mútuo e obra comum. Assim entendido, um Museu das Descobertas, sem os preciosismos rebuscados - até no nome (Museu da Interculturalidade de Origem Portuguesa, p. ex., que disparate!) - nem laivos de pretensiosismos de primazia, precedência ou superioridade (o nosso ridículo jeito de nos pormos em bicos de pés) poderá ser um ponto de encontro e repartida. A História é já testemunha de obras esforçadas, como de erros e omissões. Mas, gostemos ou não, o que assim foi é o nosso passado comum. E é natural e amável o sentimento do pequeno povo português quando recorda os seus varões assinalados / que em perigos e guerras esforçados / mais do que permitia a força humana / passaram inda além da Tabrobana... Paul Butel, bretão que foi professor de história moderna na Universidade de Bordéus, abre a sua Histoire de l´Atlantique com o seguinte parágrafo:
Pretende uma lenda que aqueles que iam ver o pôr do sol ao alto do cabo de São Vicente, em Portugal, o viam cem vezes maior do que parecia noutros sítios, e podiam ouvir o assobio do astro imenso a apagar-se nas ondas. A visão lendária aumenta com o sol a dimensão de um horizonte marinho que sempre fascinou os homens para simultaneamente os atrair e afastar...
Vencer o medo para que a audácia nos leve ao encontro do desconhecido, ter esperança de que mergulhar na névoa pode não ser desaparecimento, mas achamento de um novo abraço do mundo - eis, Princesa de mim a descoberta que queremos recordar.
Camilo Maria
Camilo Martins de Oliveira