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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

CARTAS DE CAMILO MARIA DE SAROLEA

 

 

 

Minha Princesa de mim:

 

   A Foreign Affairs publicou um artigo assinado por Jeremy Shapiro, com elucidativo título: WHY TRUMP CAN SAFELY IGNORE EUROPE: Its Leaders Readily Condemn But Never Act.

 

   Talvez tenha vindo a ser assim há tempo de mais. Proximamente - depois da retirada americana do acordo com o Irão (sobretudo tendo em vista as ameaças de penalização, pelos EUA, das empresas europeias que mantenham os seus negócios persas) e da extemporânea e provocatória mudança da sua embaixada para Jerusalém - veremos se e como, parafraseando jargão jurídico, a UE e cada um dos seus membros irão continuar a "promulgar" os "decretos" estadunidenses, ou optarão por "derrogá-los" ou, mesmo, "revogá-los", isto é, como continuarão a seguir as orientações americanas : se total, parcialmente, ou de modo nenhum. Ou ainda, e melhor seria, se ousarão enfrentar desafios diretos lançados pelos EUA, tais como esta última decisão unilateral de agravamento de direitos aduaneiros americanos sobre produtos europeus. Wait and see... 

 

   Tal dilema, é difícil resolvê-lo já e só por via diplomática, sabendo nós que os negociadores europeus estão fraturados (p. ex.: quatro países membros estiveram na "festa" da embaixada em Jerusalém; a Itália, um dos fundadores da CE - com a França, a RFA e os três do BENELUX - é hoje uma interrogação a juntar ao Brexit), além de que, na verdade secreta dos factos e relações económicas, o poder que finalmente delineia, determina e decide, reside mais nos próprios agentes financeiros do que nas instituições e órgãos do poder político. Esta última questão, aliás, é doravante crucial em qualquer projeção do que poderá ser uma democracia no futuro, já que a concentração crescente da riqueza e do poder financeiro anda de mãos dadas com a sua infraestrutura tecnológica e a oferta de bens e serviços básicos, desde a energia à informática e comunicações; e também não tem pátria, nem população a quem prestar contas, além dos seus próprios donos ou acionistas. Cansado de noticiários recitados por "jornalistas" que pouco ou nada sabem do que dizem - e, tantas vezes, até mal conhecem o significado das palavras que usam -, farto de fake news e de mentiras de trumps, putins e quejandos, lembrado do Bernanos que, há tantas décadas já, ergueu a voz contra a robotização dos espíritos, chamo, Princesa, a tua atenção para um livro do alemão Richard David Precht, recentemente publicado: Jäger, Hirten, Kritiker - Eine Utopie für die digitale Gesellschaft (Goldmann, 2018). Traduzo o título: «Caçadores, Pastores, Críticos - Uma Utopia para a Sociedade digital». Numa entrevista à revista Der Spiegel (o espelho), o autor afirma que a Silicon Valley vê no ser humano um organismo que funciona segundo reflexos mecânicos, como um rato de laboratório... Uma minha sucinta interpretação do que diz o próprio livro é que o projeto de sociedade digital ali analisado padece de uma vocação totalitária mais coadunável com um regime iliberal do que com aquilo a que chamamos democracia liberal (no sentido político de sociedade em liberdade de consciência e participação nas decisões coletivas). No fundo, está bem longe dos ideais humanistas da Renascença e da racionalidade das Luzes... Acrescento que nada tem, certamente, a ver com essa espiritualidade a que Romano Guardini tão bem chamou O Valor Divino do Humano (livro que li bem jovem, e ainda guardo)...

 

   Mas, ficando pelo universo internacional, passam por aí veleidades e prenúncios de recomposições, precárias ou, quiçá, mais duradouras, de entendimentos e alianças: a busca de um entendimento de europeus com russos (que são não só, mas também, um pouco europeus) sobre a salvaguarda do acordo nuclear com o Irão, é disso exemplo, como de nova arrumação do xadrez diplomático, visto que outros parceiros aparecem, incluindo uma potência maior (a China). E também surgem desafios à periclitante centralidade ou superioridade dos ocidentais, não só vindos dum qualquer misterioso "oriente" - que a nossa corrente vox populi teima em considerar exótico, já que só acha normal e normativo, sempre, evidentemente, o "ocidente" - mas de outras zonas do planeta, como a América Latina, colonizada, larga e continuamente povoada por imigrantes europeus. Lembro, para nossa ilustração, Princesa de mim, um livro recente do colombiano Arturo Escobar, para o qual fui inicialmente atraído pela primeira palavra do título, vocábulo que eu só conhecia, sob a forma pensarsentir, da minha própria escrita: Sentipensar con la tierra. Nuevas lecturas sobre desarrollo, território y diferencia. Basta traduzir-te uma frase desse conhecido militante e antropólogo colombiano, para também perceberes o despertar de uma nova consciência da dignidade dos povos: Nós somos diferentes de vós, Ocidentais, porque beneficiamos de outro modo de sentirpensar com a Terra, porque lutamos contra o individualismo, e temos uma cosmologia muito mais rica e relacional do que a vossa. E assim também volto a pensar no tianxiá.  Sorrindo pelo jeito com que as duas Coreias e a China, falando entre si, lá conseguiram voltar a sentar o presidente Trump à mesa...dando-lhe, presumo, as necessárias garantias de graxa com renovado brilho. Ou, em contrapartida da "compreensão" americana para com a ZTE (empresa chinesa que tem violado os limites impostos pelos EUA para negócios com o Irão e a Coreia do Norte), oferecendo mais reconhecimento de marcas comerciais, e proteção das mesmas, à sua filha Ivanka que, como sabemos, além de empresária, trabalha na Casa Branca e, ocasionalmente, representa o senhor seu pai, como aconteceu na cerimónia de inauguração da embaixada americana em Jerusalém...

 

   A política de Obama não era perfeita, mas tinha o mérito indiscutível de considerar como sua premissa a realidade do atual advento de um mundo plural para o fomento e a prática de uma cultura da paz e do respeito democrático. Os slogans trumpistas de America first! Make America great again!, como o seu comportamento errático-oportunista em todas as negociações e disputas internacionais onde se mete (incluindo as de matéria ou consequências económicas e comerciais), deixam-nos temer, Princesa de mim, um mundo de conflitos cujos manipuladores nem sempre serão só os que deixam os rabos de fora... Poderia escrever-te agora muitos parágrafos acerca do modo aparentemente caprichoso como a política externa americana tem sido "conduzida", desde a obsessão de Trump com o seu "estrelato" (uma quase olímpica primazia) ao seu receio de ser menosprezado ou desconsiderado, tudo isso refletido naquele seu tique de que tudo estava e continua mal, mas será, brevemente, por ele, o Magno Donald, totalmente banido, destruído, ou, então, revisto, corrigido e bem melhorado. Não faz política enquanto ciência e prudência, vontade de consenso e bem querer, mas apenas busca que surjam ou possam surgir -   há que aproveitá-las! - oportunidades de "brilhar" ou afirmar primazia. É, assumidamente, um "business man".

 

   Mas desde há muito que te vou dizendo como, na raiz profunda de tanta confusão - ao ponto de, por vezes, nem sabermos bem quem somos, onde nos situamos ou devemos situar - está uma cultura em crise. A explosiva disseminação de notícias e semânticas novas por meios ditos de "comunicação social", com a consequente superficialização das perceções e variação dos sentimentos, vai minando a nossa capacidade de ponderação e reflexão, isto é, vai fazendo de nós baratas tontas. O que já foi pensarsentir, uma construção mental e espiritual do nosso ser humano na sua circunstância, tende progressivamente a tornar-se numa mera reprodução mimética de fantasmas que nos são propostos ou impostos de fora. Aliás, os casos mais alarmantes de autismo adventício que hoje vão surgindo entre tantos jovens, que se fecham nos seus quartos com um ecrã e um computador, são "vidas virtuais" de seres humanos cuja circunstância real é feita de fantasias.

 

   Por enquanto, todavia, a consequência mais imediatamente gritante desta presente cultura da banalidade e superficialidade, com o seu rodopio de imediatismos proponentes de gozos e usufrutos logo esgotados e substituídos, é esse pulular estulto de idolatrias: desde as dietas adelgaçadoras ao melhor champô, do melhor jogador do mundo ao ator mais sexy, ou à modelo mais glamour; do meu clube que só pode ser campeão, ao meu partido que tem sempre razão, ao líder que tudo sabe e conduz o modelo económico sempre gerador de riqueza, etc... etc... Tal criação de riqueza servindo, obviamente, para me assegurar, na estabilidade garantida pelo tal líder, tranquilo usufruto do maior número possível de bens e serviços adquiríveis.  Num mundo que a chamada globalização progressivamente concentra (o que também quer dizer que vai tornando as suas nações e culturas cada vez mais centrais e menos periféricas), um "ocidente" descuidado e incauto, se não arrogante e distraído, delicia-se, por exemplo, a importar terapias físicas e psíquicas de qualquer arquétipo "oriental", como novidades a juntar à sua panóplia de consumos disponíveis... - mas queda-se sem a inteligência e a vontade (diria mesmo a prudência, esse amor sagaz) necessárias ao entendimento e convívio com novos vultos e outros protagonistas da cena internacional. Isto é: o "ocidente" teima em pensarsentir que o seu modelo económico, o seu regime político, a sua ética de êxito materialista, são o que há de melhor, são incontornáveis e impõem-se universalmente. Desejamos doidamente enriquecermo-nos; mas a riqueza por que ansiamos pouco ou nada tem a ver com a alma, a mente e o coração dos humanos, com essa única perfeição possível pela nossa condição existencial que é o amor na relação de uns com os outros, a busca da utopia das bem aventuranças.

 

   Finalmente, ou seja, para acabar esta carta - que, como todas as outras, é mera conversa entre nós, Princesa, para puxar a cabeça um ao outro - deixa-me referir-te que a França das luzes tem andado a olhar bastante para uma Itália politicamente caótica (que vai, paradoxalmente, assustando e, a talho de fouce, alertando e despertando a Europa). Parece-me, pelas traduções do italiano que em francês se vão sucedendo, que a Gália, também inquieta com a sua própria crise de identidade e valores, procura ali encontrar memórias, razões e motivos para voltar a beber mais das águas que regaram as nossas greco-latinas raízes culturais. Sabes como, pessoalmente, penso que o abandono, no ensino liceal, de letras clássicas, por retirar etimologia ao aprender da nossa própria língua, e fechar outro acesso à literatura e à filosofia, foi um erro de "casting"(autorizas-me esta modernice?) dos curricula escolares. Sobretudo - e compreendê-lo-ás melhor quando te falar da escrita chinesa na própria estruturação do discurso intelectual -  a medida em que nos prejudicou a base de construção verbal e escrita dos nossos modos de discorrer. Hoje, direi, caricaturando, já nem neologismos há. O que por aí se ouve é um chorrilho de ditos na moda, cujo próprio significado os seus mesmos emissores não tiveram tempo de compreender. Não faz mal, pensarão alguns: amanhã teremos mais novidades. Traduzo uns trechos do professor Lucien d´Azay (escritor e tradutor, ensina francês no liceu Marco Polo, em Veneza) respigados de um artigo publicado no Figaro Littéraire de 24 de maio p.p., em que fazia a resenha de duas obras vertidas do italiano para francês: La Langue Géniale - 9 bonnes raisons d´aimer le Grec, de Andrea Marcolongo (Les Belles Lettres, Paris) e Vive le Latin - Histoires et Beauté d´une Langue Inutile, de Nicola Gardini (Éditions de Fallois):

 

   Porque nos chegam de Itália estes dois livros? Porque esse país, diferentemente da França, nunca duvidou da sua herança clássica, nem do estudo, desde o liceu, do que outrora se chamava «humanidades greco-latinas». Na Itália, o filão mais prestigiado do segundo ciclo do ensino secundário permaneceu o liceu dito «classico», cujas matérias principais, durante cinco anos (dois anos de «ginnasio» e três de «liceo» propriamente dito), são precisamente o latim e o grego antigo. Deve-se atribuir a essa escolha o sentido da urbanidade, o bom humor e a alegria de viver que qualquer cidade italiana testemunha? É certo que o clima e a beleza do cenário para tal muito contribuem. Mas o gosto da civilização clássica participa do mesmo espírito, da mesma graça.

 

   Seria curioso que uma sociedade como a nossa, que tão ostensivamente aspira ao hedonismo e à beleza, quisesse sacrificar o imenso prazer providenciado pela aprendizagem e a prática das línguas antigas, com o pretexto de que elas já não servem para uma cultura sujeita à atualidade, às mercadorias e à tecnologia. Na Renascença, o latim e o grego galvanizavam aqueles homens universais, modelos de humanitas, como foram Aldo Manuce e Ange Policiano. Inspiremo-nos neles. Gaudeamus igitur!

 

   Apesar de ser um "bota de elástico", não estou a propor que se restaure, em Portugal, a escolástica! Mas parece-me razoável poder, pelo menos, esperar mais cultura na educação da fala, da leitura e da escrita. Quanto mais não seja, para que a gente não fale por falar e como ouviu soar, mas para procurar exprimir algo que faça sentido. E deixo o sentido do yi chinês para a próxima carta.

 

Camilo Maria

 

Camilo Martins de Oliveira