SE HÁ ARTISTA PORTUGUÊS…
TU CÁ TU LÁ
COM O PATRIMÓNIO
Diário de Agosto * Número 2
Se há artista português que sentiu, melhor que ninguém, a força da memória, da herança e do património cultural, foi José de Almada Negreiros. Costumava dizer que gostava de olhar para alguma coisa como se fosse a primeira vez, sentir como se não houvesse vez anterior – e por isso desejava sempre que a sua geração pudesse antecipar pudesse funcionar como os primitivos foram para as gerações modernas que se lhes seguiram. No fim da vida, perguntaram-lhe se se sentia velho – e ele respondeu que se fosse assim não teria intitulado o seu painel na Fundação Gulbenkian como “Começar”. Mesmo quando rompeu estrondosamente nas conferências de 1917, nunca deixou de ter uma fortíssima preocupação com a resposta das gerações novas àqueles que nos antecederam, e com a preparação da modernidade dos novos. Conta-se mesmo que houve quem se queixasse a Salazar pelo facto de desenhar saltimbancos nos painéis da Rocha do Conde de Óbidos. António Ferro chegou a ser perguntado pelo facto, mas com inteligência não deu importância ao mal-estar – absolutamente absurdo. Os especialistas consultados manifestaram inteligência nas apreciações – o talento do pintor era inequívoca e os temas adequados. E o tempo veio a confirmar que o Artista tinha toda razão – fazendo o retrato da sociedade tal como ele a via. E os belíssimos painéis são obra-prima em qualquer parte do mundo!
Não disse ele em «A Cena de Ódio»?
«Larga a infâmia das ruas e dos boulevards
esse vaivém cínico de bandidos mudos
esse mexer esponjoso de carne viva
Esse ser-lesma nojento e macabro
Esse S ziguezague de chicote auto-fustigante
Esse ar expirado e espiritista...
Esse Inferno de Dante por cantar
Esse ruído de sol prostituído, impotente e velho
Esse silêncio pneumónico
de lua enxovalhada sem vir a lavadeira!
Larga a cidade e foge!
Larga a cidade!
Vence as lutas da família na vitória de a deixar.
Larga a casa, foge dela, larga tudo!
Nem te prendas com lágrimas, que lágrimas são cadeias!
Larga a casa e verás - vai-se-te o Pesadelo!
A família é lastro, deita-a fora e vais ao céu!
Mas larga tudo primeiro, ouviste?
Larga tudo!
– Os outros, os sentimentos, os instintos,
e larga-te a ti também, a ti principalmente!
Larga tudo e vai para o campo
e larga o campo também, larga tudo!
– Põe-te a nascer outra vez!»
Por isso Eduardo Lourenço fala do «Estranho arco de vida e arte o que une Almada “Futurista e tudo”, Narciso do Egipto da provocante juventude, ao mago hermético certo de ter encontrado nos anos 40, “a chave” de si e do mundo no “número imanente do universo”».
Agostinho de Morais
A rubrica TU CÁ TU LÁ COM O PATRIMÓNIO foi elaborada no âmbito do
Ano Europeu do Património Cultural, que se celebra pela primeira vez em 2018
#europeforculture