A CABECINHA ROMANA DE MILREU…
TU CÁ TU LÁ
COM O PATRIMÓNIO
Diário de Agosto * Número 11
Como não apaixonarmo-nos pelo património? Na tarde de domingo dia 5 de agosto em Querença na mesa quadrada sobre Literatura e Artes Plásticas vieram à baila as “Metamorfoses” de Jorge de Sena. E Mário Avelar recordou “A Cabecinha Romana de Milreu”. Uma preciosidade! Não poderia deixar de o fazer aqui em terra algarvia. Jorge de Sena veio ao Algarve em 1959, em fim de fevereiro, em companhia de Erico Veríssimo. E ficou com essa imagem bem marcada, como lembrança daquele momento em que também foi acompanhado pelo poeta Emiliano Costa (1884-1968), médico em Estói.
O que resta desse busto encontra-se no Museu Nacional de Arqueologia e é assim descrito: “Cabeça-retrato de uma jovem mulher, bem modelada, de traços expressivos e grande naturalidade. Tem o nariz fragmentado e pequenas falhas na superfície do queixo e do pescoço. É um bom retrato, realista, de feições corretas, tecnicamente bem executado. (…) Ostenta um característico penteado em “ninho de vespa”, a testa curta quase desaparece sob o diadema formado por uma cadeia tripla de caracóis sobrepostos, que as damas romanas mandavam armar sobre uma rede de fio ou de metal, e na parte anterior da cabeça uma mecha de cabelo enrosca-se em largo carrapito sobre a nuca descobrindo as orelhas. A moda deste penteado foi criada por Júlia filha de Tito e esposa de Domiciano, no período flaviano, tratando-se talvez mesmo de um retrato da própria imperatriz. (…) Proveniente da villa romana de Milreu (ruínas de Estói), este retrato espelha da melhor forma a riqueza, importância e a plena atualidade e inserção sociopolítica das elites municipais da Lusitânia meridional em finais do século I – inícios do século II d.C., adotando posturas e modas estereotipadas de evidente prestígio pela sua conotação com a casa imperial”.
Em 1963, já em Araraquara, Jorge de Sena pegou no registo poético da memória e escreveu um poema que bem ilustra a riqueza do Algarve, no modo como a literatura se alimenta da arte.
«Esta cabeça evanescente e aguda,
Tão doce no seu ar decapitado,
Do Império portentoso nada tem:
Nos seus olhos vazios não se cruzam línguas,
Na sua boca as legiões não marcham,
Na curva do nariz não há povos
Que foram massacrados e traídos.
E uma doçura que contempla a vida,
Sabendo como, se possível, deve
Ao pensamento dar certa loucura,
Perdendo um pouco, e por instantes só,
A firme frieza da razão tranquila.
Viveu, morreu, entre colunas, homens,
Prados e rios, sombras e colheitas,
E teatros e vindimas, como deusa.
Apenas o não era: o vasto império
Que os deuses todos tornou seus, não tinha
Um rosto para os deuses. E os humanos,
Para que os deuses fossem, emprestavam
O próprio rosto que perdiam. Esta
Cabeça evanescente resistiu:
Nem deusa, nem mulher, apenas ciência
De que nada nos livra de nós mesmos».
Agostinho de Morais
A rubrica TU CÁ TU LÁ COM O PATRIMÓNIO foi elaborada no âmbito do
Ano Europeu do Património Cultural, que se celebra pela primeira vez em 2018
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