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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

O VERDADEIRO GALO DE BARCELOS…

 

TU CÁ TU LÁ

COM O PATRIMÓNIO

 

Diário de Agosto * Número 16

 

Alguns dirão, erradamente, que o galo é uma invenção relativamente recente, vinda de uma lenda, talvez seiscentista ou setecentista, de um galo que salvou um condenado injustamente ou de uma descoberta tardia nas feiras de Entre-Douro-e-Minho. O “nosso“ galo de Barcelos, que Joana Vasconcelos estilizou e enriqueceu decorativamente, tornando-o ainda mais simbólico de nós mesmos, vem inequivocamente do nosso fundo céltico – esse fundo que António Pedro sentia no âmago de si mesmo e que o levava a gostar de gaitas de foles e das cores garridas que Amadeo de Souza Cardoso tão bem soube transmitir nas suas telas inesquecíveis e irrepetíveis. O gal de Portugal não engana. Aí está o elemento indo-europeu que nos liga aos Gálatas, do Médio Oriente à Turquia, à Galicia polaca, ao País de Gales, aos Gauleses, à Galiza – todos irmãos. É verdade que Leitão de Barros, António Manuel Couto Viana e Artur Maciel foram em busca de um símbolo popular – encontrando-o e enriquecendo-o com cores fortes e corações ilustrativos de mil afetos. No entanto, já Rocha Peixoto, no século XIX, nos fala do ”Galo de apito”, que ainda se encontra nas feiras e que tem a ver com a forte simbologia de quem anuncia, na aurora, o novo dia e um novo tempo. O nosso inconfundível galo insere-se na tradição dos druidas, no diálogo com o Oriente e a China, mas também na simbologia cristã de S. Pedro. O galo é arauto da luz do sol, mas sinal da verdade e da fidelidade. Tendo sido redescoberto nas feiras de Entre-Douro-e-Minho e pintado com as cores fortes que conhecemos, é o revelador de um amorável coração, do amor como contentamento descontente da lavra camoniana, mas também da saudade como lembrança e desejo e de magníficos ágapes, banquetes de amor e amizade, que encontram a sua origem na mais afetuosa das palavras gregas. Culturalmente, o galo significa ainda o cadinho que nos caracteriza neste lugar onde a terra se acaba e o mar começa, Finisterra. O Galo liga a cultura popular e a cultura erudita – e liga o presente ao passado e ao futuro. Naturalismo e espiritualismo aqui se encontram como no-lo ensinou Pascoaes. Tradição e modernidade estão aqui. Os azulejos portugueses são, afinal, reminiscência do Oriente! Os múltiplos caminhos do mundo que os portugueses foram trilhando levaram os nossos símbolos até às Índias, a África, ao Brasil.… O tema da identidade cultural exige a compreensão de que só a abertura e o diálogo, a relação fecunda entre a herança e a memória, o entendimento dinâmico de património podem permitir o desenvolvimento de uma cultura de paz e de respeito mútuo. A identidade que cristaliza morre. A memória que se centra exclusivamente no passado mítico torna-se pobre, ensimesmada e ressentida. A herança que não se fortalece com a criação contemporânea e com um permanente renascer crítico dissipa-se. A referência da utopia de Tomás Morus é-nos trazida por um marinheiro português. A ideia da viagem à Índia ou de passar para além da Taprobana corresponde a um apelo à aventura criadora e criticamente reconstituidora dos mitos. E mais. Como podemos entender o Candomblé e a religiosidade sincrética – reunindo animismo e tradição cristã – que liga o Senhor do Bonfim à corte dos orixás, tão presentes desde S. João Baptista de Ajudá a Salvador da Baía? Oxalá, o grande Senhor de Todos, e Iemanjá, a Deusa do Mar, dominam esse Olimpo. E o galo é a ave de batalha, o anunciador de bons augúrios. 

 

E hoje recordamos António Manuel Couto Viana:

 

Queres cantar fados, ler sinas
Por ruas tortas, escusas?
Ou tens pretensões mais finas?
- Não me esperem nas esquinas:
Não marco encontros a musas.

Cantem outros a desgraça
Em quadras fáceis, banais,
Cheias de mofo e de traça:
Soluços de fim de raça,
Com vinho, amor, ódios, ais.

E dos parques silenciosos
De estátuas, buxo e luar,
Cresçam sonetos cheirosos,
Requintados, vaporosos
Qual uma renda de altar.

Para mim basta o que tenho:
Umas rimas sem valia,
Mas próprias, do meu amanho;
Minha colheita, meu ganho
- Poesia! Poesia!

 

Agostinho de Morais 

 

 

 

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A rubrica TU CÁ TU LÁ COM O PATRIMÓNIO foi elaborada no âmbito do 
Ano Europeu do Património Cultural, que se celebra pela primeira vez em 2018
#europeforculture

 

 

 

 

 

HELENA MARQUES

 

(…) E revoltava – a também que a sua própria mãe, que a dera à luz trinta anos atrás, quando tinha apenas dezassete anos, continuasse a produzir, ano depois de ano, aquele caudal de gritos apavorados, aquelas apaixonadas promessas de nunca mais, nunca mais. E no ano seguinte, tudo se repetiria, o mesmo terror, o mesmo medo cego, a mesma rejeição, a mesma revolta. Como podiam? Como podia o pai provocar e impor tamanho sofrimento? (E ela, a mãe? utilizar como poder?)

 

(…) Marta não quer filhos, não terá filhos, não irá nunca casar-se.

 

Esta passagem do livro de Helena Marques - o livro que eu cheguei a chamar durante muito tempo “o livro da âncora”- refletiu em mim uma luz que insistia em não se mostrar como claridade que eu levasse à escrita. Essa luz, quando chegou, resumiu e ampliou o que eu não tinha colocado no papel, acerca da estranha insatisfação de um prazer doentio, quando este oblitera o caminho do amor, e, levando em si, um tudo em vão, um tudo de poder, portador de um elixir de puro logro que corrói os dias e constitui enfim, sua única sustentação. Disso, disso se quer fugir!

 

E se quer fugir também não casando. Não atribuindo a ninguém o direito de lhe fazer filhos, e que se evitasse que ela os manipulasse, se nascessem.

 

Os homens deveriam ser procurados apenas nas suas saídas solares e se paixão houvesse que ela fosse vivida em fulgor e não no langor da sua dissipação.

 

As mulheres deveriam ser achadas em núpcias de vida breve, antes que tivessem tempo de transmitir os cantos das resignações às suas eventuais descendências. Antes de lhes ensinar que a solidão envolve temer os tempos das laminárias sendo esse o único caminho.

 

Surgia-me assim uma consciência trágica do entendimento dos tempos que Marta vivera. Na sua memória, sempre algo de monstro, algo de envelhecido ao ritmo de um jugo. Algo subtraído às leis da duração da ordem cósmica.

 

Às vezes, Marta despenhava-se no mar e fitava de frente os turbilhões da água na procura de um deus. Outras vezes, julguei ver Marta menos prisioneira e mais afoita às constelações das aves, tão tristemente adiadas do seu conhecer. E sempre o mesmo medo de tudo se repetir como se repetira desde que nascera e a assombrara tanto.

 

Prometia-se ao seu interior num nunca mais. Prometia-se, mordendo-se para que uma marca a fizesse cumprir a promessa, evitando o desespero do desastre de uma vida igual àquela que tanto repudiara.

 

Via-se jovem e sabia que detinha uma passagem, uma cumplicidade subversiva que iria gerir entre dois mundos: o que repudiara e aquele que lhe era plataforma para um outro, um que iria descortinar por entre as duas margens da sua vida, e que saberia gerir.

 

Entretanto o tempo passava, alívio e cansaço, e a fronteira entre o mundo e a morte fechava-se.

 

 

Recordo bem que assim me ative no interpretar do que seria o último cais de Marta. 

 

Desconheço se Helena Marques assim pensou quando escreveu o parágrafo com que iniciei este acontecer. Resta que talvez os humanos possam ter o dom de entenderem várias palavras escritas e por elas comunicarem outras até saciarem a sua sede de saberem do Ser, sobretudo quando Marta foi para mim a criatura vinda de um outro frio; um frio larvado do seu interior, um frio onde seria aposto o dia em que deixaria o mundo, e, esse facto não era terrível, não! nem maligno, antes impenetrável mistério como o das cegonhas quando voando alto, levando consigo o azul, nas suas silhuetas migratórias.

 

Teresa Bracinha Vieira