Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!
O quadro de Ticiano diz tudo. O Sacro Imperador Carlos V de Habsburgo, I das Espanhas, depois da morte de sua mulher, apenas ficou com esta memória física realizada por Ticiano – que não me canso de visitar no Prado! A melhor das obras-primas! Como S. Francisco de Borja, o Duque de Gândia, disse e Sophia de Mello Breyner deixou escrito em letras de oiro – Isabel era a projeção sublime da beleza eterna. Não há, assim, muitos comentários a fazer… Quando morreu em 1539, com 36 anos, a Imperatriz estava no auge da sua beleza e do seu poder, sendo estimada e respeitada por todos na Alemanha e na Europa. Carlos V decidiu que Francisco de Borja deveria acompanhar os restos mortais de D. Isabel até ao panteão real de Espanha, em Granada. Aí chegados, quinze dias depois, e sob um sol abrasador, Francisco de Borja teve que reconhecer o corpo já em adiantado estado de decomposição. Nessa altura refletiu profundamente sobre a fragilidade das glórias do mundo e decidiu que só valia a pena amar a Deus, o único ser que é eterno: nunca mais amarei quem não possa viver sempre! No Escorial reclinado durante a noite o Imperador, quando acordava, podia ver o quadro de Ticiano e com ele recordar o grande amor de Isabel de Portugal…
Oiçamos Sophia…
«Nunca mais a tua face será pura limpa e viva, nem teu andar como onda fugitiva se poderá nos passos do tempo tecer. E nunca mais darei ao tempo a minha vida.
Nunca mais servirei senhor que possa morrer. A luz da tarde mostra-me os destroços do teu ser. Em breve a podridão beberá os teus olhos e os teus ossos tomando a tua mão na sua mão.
Nunca mais amarei quem não possa viver sempre, porque eu amei como se fossem eternos a glória, a luz e o brilho do teu ser, amei-te em verdade e transparência e nem sequer me resta a tua ausência, és um rosto de nojo e negação e eu fecho os olhos para não te ver.
Nunca mais servirei senhor que possa morrer.
Nunca mais te darei o tempo puro Que em dias demorados eu teci Pois o tempo já não regressa a ti E assim eu não regresso e não procuro O deus que sem esperança te pedi».
Liu An, autor desse ensaio ou seleta de inspiração taoista designado por Huainan zi, terá nascido em 179 a.C. e ofereceu o seu manuscrito ao imperador Wu (141-87 a.C.), seu sobrinho. O mesmo Liu An era neto do fundador da dinastia Han, Liu Bang (206-196 a.C.), e, desde os seus quinze anos, príncipe de Huainan. Do texto introdutório de Charles Le Blanc e Rémi Mathieu à edição do Huainan zi, na sua tradução francesa, pela Bibliothèque de La Pléiade (Gallimard, Paris, 2003), respigo dois trechos que me parecem necessários a uma nossa (tua e minha) ocidental leitura. Perceberás porquê, tal como eu vou continuando a tentar compreender muitos desses textos que traduzo:
1. Curiosamente, a filosofia do Huainan zi não invoca a noção ocidental de causalidade, certamente em razão da sua conceção substancial (e não acidental) da mudança. Os «dez mil seres» fazem parte de uma só estrutura, cuja parte mais ínfima, «o bater de asas de uma borboleta», modifica a configuração do conjunto da rede. Mas eis aí um olhar «extrinsecista»; o Huainan zi antes privilegia um olhar «intrinsecista» ou «imanentista», segundo o qual cada ser percebe a mudança como ressonância (ganying), por «afinidade eletiva» da sua própria essência com os outros seres e o universo inteiro. [Estou em crer, Princesa de mim, que esta observação deve ser repetida e meditada, a fim de melhor nos ajudar a penetrar numa intuição e num ecossistema de pensamento (de pensarsentir) alheios ao nosso discurso próprio.]
2. O Huainan zi propõe um projeto de sociedade ideal assente em disposições interiores de homens sages e perfeitos, isto é, numa certa forma de santidade. Define-se esta pela união ao dao, fonte de uma sageza e de uma criatividade que ultrapassam a comum medida humana e se actualizam como "não-conhecer" e "não-agir". De essência taoista, não exclui achegas confucionistas e legistas. É sua marca original maior não comportar qualquer referência a um deus pessoal transcendente. A santidade é simplesmente a plena realização da ordem natural e humana. Se dela decorre uma necessidade mais pressionante para os soberanos e os funcionários do Estado, é em razão das maiores responsabilidades destes relativamente ao bem comum. [Quando acima digo sages e sageza em vez de sábios e sabedoria, não o faço só pelo gosto de me servir de palavras que, na língua portuguesa, foram autorizadas já por Fernão Lopes, mas para vincar ainda mais que, nesta filosofia chinesa, além de uma intuição talvez mais mística do que metafísica, mais comungante do que objetiva, uma mais contemplação do mundo do que a sua arrumação lógico-discursiva, também se privilegia a prudência na sabedoria, ou seja, a antiga virtude da sageza.] Eis-me tentado a recordar o Novalis que disse quanto mais poético mais verdadeiro, ao deparar com intuições ou revelações poéticas do real absoluto. Como, a dado passo, se canta, no Huainan zi, o Yuandao, ou dao inicial:
Nada debaixo do céu é mais flexível e fraco do que a água.
E todavia o seu tamanho ultrapassa qualquer medida
e é insondável a sua profundidade;
alaga-se até ao infinito,
e perde-se lá longe no ilimitado.
Quer cresça quer se esgote, aumente ou diminua,
ela participa do incomensurável.
Subindo ao céu, torna-se chuva e orvalho
e, caindo, humecta e rega a terra.
Sem ela os dez mil seres não nasceriam
nem seriam terminados os cem afazeres.
Envolvendo largamente a multidão dos seres,
não se atém a qualquer preferência.
Os seus benefícios estendem-se aos insetos e aos vermes,
sem esperança de qualquer recompensa.
Com sua virtude cumula os cem nomes, sem prodigalidade.
O seu fluxo ora se enche sem limites,
ora se torna tão ténue que fica fugidio.
Podem bater-lhe e não sofrerá esquimoses,
chicoteá-la e não ficará ferida,
cortá-la sem conseguir seccioná-la,
e nem pelo fogo será consumida.
Dócil e acomodatícia, corre desposando múltiplos contornos
e ramifica-se em rede múltipla, sem por isso se dispersar.
A sua finura penetra a pedra e o metal
e a sua força carrega o mundo.
Move-se no território do sem-forma
que se ergue em espiral para além do indistinto.
Ora serpenteia pelos vales,
ora desagua na planície inculta dos grandes confins.
Segundo a sua sobreabundância ou a sua insuficiência,
ela vai buscar-se e volta a dar-se ao céu e à terra.
Abastece os dez mil seres sem ordem de precedência
e para si não tem domínio privado nem público.
Fervente e transbordante,
forma uma grande união com o céu e a terra.
Sem reconhecer direita nem esquerda,
ramifica-se e serpenteia
acompanhando os dez mil seres do princípio até ao fim.
Por isso lhe chamam virtude perfeita.
E sendo dócil, acomodatícia e penetrante,
a água chega à perfeição da sua virtude no mundo...
...O sem-forma é o grande antepassado dos seres
e o sem-ruído é a grande origem dos sons.
O filho deles é a luz, o neto a água.
Todos nasceram do sem-forma.
A luz é visível mas não se pode agarrar;
a água é palpável mas indestrutível.
Assim, entre os seres que têm forma,
nenhum é mais estimável do que a água.
Do nascimento até à morte, o homem vacilando entre o que é e o que não é, afunda-se na mediocridade. Assim, a perfeição da virtude reside na pureza e na serenidade, a quintessência do dao, na flexibilidade e na fraqueza, e a eficiência dos dez mil seres na calma e contentamento decorrentes do vácuo. Assim, ao responder com diligência aos incitamentos e ao retornar resolutamente à raiz, os seres se imergem no sem-forma.
O que chamo «sem-forma» significa o Uno. O que chamo «o Uno» é o que não tem qualquer contrapartida debaixo do céu. Sublime, ergue-se independente; desligado, permanece sozinho. No alto, o Uno penetra os nove céus, em baixo atravessa os nove campos. A sua circularidade não se desenha com compasso, nem a sua quadratura com esquadro. O Uno forma um todo confuso, comparável a folhas que proliferam sem raiz. Envolve o céu e a terra, e serve de fecho ao dao. Secreto e esconso, preserva intacta a sua virtude. Podemos espalhá-lo sem o esgotar e utilizá-lo sem o enfraquecer. E também podemos procura-lo com os olhos e não ver a sua forma; prestar-lhe ouvidos e não ouvir a sua voz; querer palpá-lo e não conseguir tocar-lhe. Dele nascem o sem-forma e o com-forma. Inaudível, faz tocar as cinco notas; insípido, harmoniza os cinco sabores; incolor, forma as cinco cores. Assim, o ser nasce do não ser, e a plenitude emerge do vácuo.
Escrevo-te, Princesa, esta carta, recolhido na relativa frescura do meu gabinete, em manhã de intransigente canícula, ao som do Gloria de François Poulenc, interpretado pela orquestra e coro da Fundação Calouste Gulbenkian, sob direção de Michel Corboz, sendo solista a soprano Brigitte Fournier. A gravação, feita ao vivo, em Lisboa, a 4,5 e 6 de junho de 1993, conjuntamente com a da Messa da Gloria de Puccini, é de produção francesa, para a Aria Music-Fnac. Poulenc, alto burguês rico (da família dos patrões da Rhône-Poulenc), homem dividido por amores de vária natureza (a que chamava a sua sexualité parisienne), sujeito a períodos de depressão (por desgostos de amores) que constratavam com o seu modo malicioso e jovial de estar em sociedade, católico crente e mordido pelas interrogações da e à fé, sobretudo pelos seus confusos amores, compositor de música de câmara de que muito gosto, mas também de música burlesca como Les Mamelles de Tirésia, ou ainda dessa magnífica profissão de fé e de esperança nascida do martírio que são os Dialogues des Carmélites (libreto de Georges Bernanos), como desse belo "de profundis" de uma solidão abandonada que dá pelo título de La Voix Humaine, sobre texto de Jean Cocteau. O Gloria que ora escutei foi composto em 1959, pouco depois dos Dialogues, não é uma peça litúrgica, mas, nas palavras do próprio compositor, uma grande sinfonia coral. A segunda parte deu escândalo, nem sei porquê, pensei simplesmente, ao escrevê-la, nesses frescos de Gozzoli em que os anjos deitam a língua de fora, e também naqueles beneditinos de ar grave que eu vi a jogar futebol...
Por que atalho cheguei à escolha da escuta deste Gloria cantante, jovial e jubilante, ao ler filosófica poesia taoista em manhã canicular? Quiçá antes pudesse ter desembocado num coliseu de lamentações e invetivas, contestações e confrontos sobre, por ou contra, as chamadas alterações climáticas, entre as visões circunscritas pelo imediatismo de ganâncias e aquelas que se debatem no meio de formulações rigorosas e prudentes, de utopias generosas e sonhadoras, ou de panoramas de sustos e desastres apocalípticos... Por estranho que te pareça, Princesa de mim, esta quietude quente, quase totalitária, de um ar mais de abafar do que de respirar, traz-me mais um modo de comungar o mundo, um pouco como numa minha experiência antiga do calor húmido de um Verão japonês quando, em cabana perdida nas montanhas, vivi a alegria suave do sossego duma transpiração que me libertava da tirania dos ares condicionados de Tokyo e me abandonava ao modo universal de ser da terra, como James Joyce, creio, um dia terá dito. [As minhas memórias nem sempre batem certo, talvez me tenha ocorrido o Joyce pela sua ambiguidade entre o sagrado e o profano.] Assim te "explico"(?) este momento de mim, aqui submisso ao calor dos astros, ainda que protegido pela sombra com que enchi a casa e também pertence à luz dos nossos dias e cobre troços do nosso caminho espiritual. Descubro agora em mim o surto de uma nascente a jorrar essa tal alegria mansa, que vai crescendo e alagando tudo, água da vida universal do dao ou pirotecnia dos sons strawinskianos do Laudamus te do Gloria do Poulenc...
Laudato sì... Louvado sejas, meu Senhor, pela grandeza da humildade partilhada, pela comunhão no mistério único da vida.
Já está noite cerrada, dá para abrir cortinados e janelas, e sento-me no escuro mais fresco, iluminado só pela televisão acesa sobre o inferno dantesco que ameaça a vila de Monchique e atemoriza suas gentes... Quedo-me a partilhar visões de labaredas e aflições de almas, dói-me como queimadura a cena, pesa-me, perturba-me, é-me quase insuportável a pena de outros que, apenas por sua aparição aqui, se vai tornando minha. Fui hoje submisso ao calor do dia, procurando comungar na sua natureza, sem o combater e sem deixá-lo esmagar-me. Afinal, terei querido aprender com ele algo mais do nosso fugidio-sempre-presente que é o inacessível mistério de tudo. Como um zen japonês a contemplar o efémero como sacramento, qual impermanente permanência. Agora, na solidão silenciosa (apaguei o som da TV) desta sala, frente ao horror consumidor do fogo, fico perplexo perante uma comunhão impossível. Terá havido erros e curto alcance humano, poder-se-ão mudar condições circunstanciais, mas permanecerá ainda o inesperado, o imprevisível, muitos factos e entendimentos fora do nosso alcance. E talvez nem haja reza ou sacrifício propiciatório que, para o efeito, nos valham. O mistério, como ignoto, conserva o seu domínio. Ao contemplá-lo assim, neste momento de comunhão rompida, já nem sei se tenho saudade daquele louvor de ação de graças que me trazia paz e fazia feliz. Estou perplexo. E é então que a minha comunhão deixa de ser um dado adquirido para se transformar em esperança. Louvado sejas, meu Senhor, pela irmã esperança...
Já pela manhã seguinte, antes de fechar esta carta, reparo que, nesta 2ª feira, dia 6 de agosto, se celebra a transfiguração de Jesus, que é como que uma festa da revelação do invisível pelo visível, um sacramento, um mistério. No relato evangélico de São Marcos, depois da transfiguração de Jesus numa figura de resplandecente alvura, os discípulos que o acompanhavam estavam cheios de medo e não sabiam que dizer. E esse trecho prossegue assim: De repente, olhando em redor, não viram mais ninguém, a não ser Jesus, sozinho com eles. Ao descerem do monte, Jesus ordenou-lhes que não contassem a ninguém o que tinham visto, enquanto o filho do homem não ressuscitasse dos mortos. Eles guardaram a recomendação, mas perguntavam entre si o que seria ressuscitar dos mortos. Assim também medito que a fé é a substância das coisas que hão de vir, nem sempre sabendo bem se ela é só mãe, ou filha também, da esperança. E sorrio-me a pensar que não me culpo de não saber tudo.