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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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OS JOGOS DA NOSSA INFÂNCIA

TU CÁ TU LÁ

COM O PATRIMÓNIO

 

Diário de Agosto * Número 21 

 

Hoje o Património Cultural chega ao mundo dos jogos… Todos nos lembramos das tardes chuvosas de inverno, em que íamos buscar as caixas de jogos, avultando entre estes – a Glória. Entre nós, no século XIX, designou-se como Jogo da Glória, com adaptações (90 casas em vez de 63), o que era conhecido na Europa como “Jeu de l’Oie” ou “Juego de la Oca”. Este teve origem na Índia e representa originalmente o percurso da vida e da morte – com as diversas vicissitudes da existência: desde o sucesso ao fracasso, prémios e castigos, virtudes e pecados, considerando ainda a morte, o purgatório e o inferno. O Ganso é o símbolo e a referência universal do jogo. Estamos perante uma progressão em espiral (jogando-se com dois dados e peças de várias cores), mas alguns recordam que a origem é a roda do hinduísmo (Samsara), completada pela referência à filosofia budista do Nirvana (presente na consumação do jogo). Na Europa a primeira referência conhecida do que entre nós designamos como Jogo da Glória data de 1617 na obra de Pietro Carrera sobre jogos de mesa. Depois de referir a antiguidade do jogo do xadrez, afirma que estoutro é muito lúdico, tendo sido popularizado em Florença e oferecido por Francisco I a Filipe II de Espanha e I de Portugal. Recorde-se que se discute a origem do xadrez, segundo uns a China, segundo outros a Pérsia. No século XIV na Europa atualizaram-se as suas regras, tal como hoje as conhecemos – e o xadrez tornou-se ciência. Voltando ao Jogo da Glória, deve dizer-se que no início do século XVII conheceu uma grande voga em toda a Europa – sendo conhecido pela designação francesa “Jeu de l’Oye, renouvelé des Grecs”. O nome deve-se à ideia de que se trata de um jogo indo-europeu adaptado pelos clássicos helénicos. Ao escrever “O Testamento de um Excêntrico”, Júlio Verne (1899) baseia o enredo num Jogo da Glória, no qual um milionário decide atribuir a sua fortuna a quem ganhar um jogo que se desenrola nos diversos estados norte-americanos, partindo de Providence (Rhode Island), com chegada a Chicago (illinois). Selma Lagerlof usa o Ganso como o transporte aéreo de Nils Holgersson para dar a conhecer a Suécia aos jovens estudantes (em 1906 e 1907). Já no decurso do século XX, em Portugal, o jogo foi popularizado pela marca Majora, fundada em 1939, no Porto, por Mário José António de Oliveira, pioneira na produção de brinquedos – e na publicação de pequenos contos tradicionais. Os anos 50 foram fundamentais para a consolidação da iniciativa que se apresentou ao mercado com os cubos da Carochinha, o Rapa o Tacho e a Roda da Sorte. O primeiro jogo de tabuleiro da Majora foi o Pontapé ao Goal (a palavra ainda aparecia assim grafada, antes da forma Golo). Depois apareceu o Sabichão na década de 60 há 54 anos. Até 1992 a Majora produziu sob licença o Monopólio (Monopoly), editado pela Hasbro. São célebres o Mikado, o Loto, as Damas, o Gamão, além do Jogo da Glória, que totalizaram cada um mais de 1.5 milhões de unidades vendidas. Em março de 2013 a empresa de brinquedos encerrou a fábrica no Porto, tendo sido adquirida com o seu espólio em 2014 por um fundo que entretanto retomou a atividade.

 

Nada melhor hoje do que invocarmos Ricardo Reis…

A magia do jogo entra em contradição com a vida.

E que são os jogos senão a busca vã da glória e a interrogação indiferente sobre a morte e a vida?…

 

«Ouvi contar que outrora, quando a Pérsia

Tinha não sei qual guerra,

Quando a invasão ardia na Cidade

E as mulheres gritavam,

Dois jogadores de xadrez jogavam

O seu jogo contínuo.

À sombra de ampla árvore fitavam

O tabuleiro antigo,

E, ao lado de cada um, esperando os seus

Momentos mais folgados,

Quando havia movido a pedra, e agora

Esperava o adversário,

Um púcaro com vinho refrescava

Sobriamente a sua sede.

Ardiam casas, saqueadas eram

As arcas e as paredes,

Violadas, as mulheres eram postas

Contra os muros caídos,

Traspassadas de lanças, as crianças

Eram sangue nas ruas...

Mas onde estavam, perto da cidade,

E longe do seu ruído,

Os jogadores de xadrez jogavam

O jogo do xadrez.

Inda que nas mensagens do ermo vento

Lhes viessem os gritos,

E, ao refletir, soubessem desde a alma

Que por certo as mulheres

E as tenras filhas violadas eram

Nessa distância próxima,

Inda que, no momento que o pensavam,

Uma sombra ligeira

Lhes passasse na fronte alheada e vaga,

Breve seus olhos calmos

Volviam sua atenta confiança

Ao tabuleiro velho.

Quando o rei de marfim está em perigo,

Que importa a carne e o osso

Das irmãs e das mães e das crianças?

Quando a torre não cobre

A retirada da rainha branca,

O saque pouco importa.

E quando a mão confiada leva o xeque

Ao rei do adversário,

Pouco pesa na alma que lá longe

Estejam morrendo filhos.

Mesmo que, de repente, sobre o muro

Surja a sanhuda face

Dum guerreiro invasor, e breve deva

Em sangue ali cair

O jogador solene de xadrez,

O momento antes desse

(É ainda dado ao cálculo dum lance

Pra a efeito horas depois)

É ainda entregue ao jogo predileto

Dos grandes indiferentes.

Caiam cidades, sofram povos, cesse

A liberdade e a vida,

Os haveres tranquilos e avitos

Ardem e que se arranquem,

Mas quando a guerra os jogos interrompa,

Esteja o rei sem xeque,

E o de marfim peão mais avançado

Pronto a comprar a torre.

Meus irmãos em amarmos Epicuro

E o entendermos mais

De acordo com nós-próprios que com ele,

Aprendamos na história

Dos calmos jogadores de xadrez

Como passar a vida.

Tudo o que é sério pouco nos importe,

O grave pouco pese,

O natural impulsa dos instintos

Que ceda ao inútil gozo

(Sob a sombra tranquila do arvoredo)

De jogar um bom jogo.

O que levamos desta vida inútil

Tanto vale se é

A glória; a fama, o amor, a ciência, a vida,

Como se fosse apenas

A memória de um jogo bem jogado

E uma partida ganha

A um jogador melhor.

A glória pesa como um fardo rico,

A fama como a febre,

O amor cansa, porque é a sério e busca,

A ciência nunca encontra,

E a vida passa e dói porque o conhece...

O jogo do xadrez

Prende a alma toda, mas, perdido, pouco

Pesa, pois não é nada.

Ah! sob as sombras que sem querer nos amam,

Com um púcaro de vinho

Ao lado, e atentos só à inútil faina

Do jogo do xadrez,

Mesmo que o jogo seja apenas sonho

E não haja parceiro,

Imitemos os persas desta história,

E, enquanto lá por fora,

Ou perto ou longe, a guerra e a pátria e a vida

Chamam por nós, deixemos

Que em vão nos chamem, cada um de nós

Sob as sombras amigas

Sonhando, ele os parceiros, e o xadrez

A sua indiferença».

 

Agostinho de Morais

 

 

 

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A rubrica TU CÁ TU LÁ COM O PATRIMÓNIO foi elaborada no âmbito do 
Ano Europeu do Património Cultural, que se celebra pela primeira vez em 2018
#europeforculture