BOCAGE – O NOSSO GRANDE FABULISTA…
TU CÁ TU LÁ
COM O PATRIMÓNIO
Diário de Agosto * Número 22
Elmano Sadino é o nosso árcade simultaneamente mais conhecido e mais incompreendido. É por certo aquele cuja vida mais próxima se encontra de Camões, mas a sua epopeia atribulada chegou até nós cheia de sombras, que levam muitos a não reconhecer as suas absolutas qualidades. Manuel Maria Barbosa du Bocage (1765-1805) é, na sua época e no conjunto da cultura portuguesa, alguém que associa plenamente o lirismo, a tragédia marítima e o picaresco do escárnio e maldizer, nesses pontos pode dizer-se é um português paradigmático, que nos permite apreender qualidades e limitações, e a consciência plena de que não temos um carácter idealizado, mas as virtudes e defeitos de uma natural imperfeição, com uma capacidade aventureira multifacetada e tantas vezes inesperada. Hoje cuidamos dos seus escritos educativos, na tradição de Esopo (620 a. C, - 564 a. C,), Fedro (século I, d. C.) e La Fontaine (1621-1695). Aí encontramos em poesia cuidada a interrogação sobre o género humano, através da rica metáfora dos animais… E eis como Bocage se revela um educador fino – claríssimo, pedagógico, cultor essencial da língua pátria. O português é esmerado, por parte de alguém que cultivou como poucos a palavra certa e a ideia clara e distinta. Veja-se, aliás, um primeiro exemplo, no célebre poema “A Raposa e as Uvas”. Como os melhores clássicos, não diz de mais nem de menos. Apenas a palavra que se espera, sem desperdício algum. E quando pensamos que a sentenciosa raposa já tudo disse, eis que se deixa enganar pela subtil parra que lhe cai no caminho…
«Contam que certa raposa,
Andando muito esfaimada,
Viu roxos, maduros cachos
Pendentes de alta latada.
De bom grado os trincaria,
Mas sem lhes poder chegar,
Disse: “Estão verdes, não prestam,
Só os cães os podem tragar!”
Eis cai uma parra, quando
Prosseguia seu caminho,
E, crendo que era algum bago,
Volta depressa o focinho».
E sobre um leão e um porco, aqui nos fala. Não cuidemos, porém, de uma visão literal. Do que aqui se fala é da gente que sem emenda persiste nos erros, sem cuidar de aprender com a experiência e de aproveitar as boas oprtunidades…
«O rei dos animais, o rugidor leão,
Com o porco engraçou, não sei por que razão.
Quis empregá-lo bem para tirar-lhe a sorna
(A quem torpe nasceu nenhum enfeite adorna):
Deu-lhe alta dignidade, e rendas competentes,
Poder de despachar os brutos pretendentes,
De reprimir os maus, fazer aos bons justiça,
E assim cuidou vencer-lhe a natural preguiça;
Mas em vão, porque o porco é bom só para assar,
E a sua ocupação dormir, comer, fossar.
Notando-lhe a ignorância, o desmazelo, a incúria,
Soltavam contra ele injúria sobre injúria
Os outros animais, dizendo-lhe com ira:
«Ora o que o berço dá, somente a cova o tira!»
E ele, apenas grunhindo a vilipêndios tais,
Ficava muito enxuto. Atenção nisto, ó pais!
Dos filhos para o génio olhai com madureza;
Não há poder algum que mude a natureza:
Um porco há de ser porco, inda que o rei dos bichos
O faça cortesão pelos seus vãos caprichos».
Não esqueço as minhas raízes Azeitonenses, e ainda para mais a ancestralidade liga-me a Elmano Sadino, pelos Barbosas. E fui encontrá-lo na Índia em Damão e depois em Macau. Eis por que razão Setúbal não deve ser aqui esquecida. Bocage amigo, corre-te nas veias o mesmo sangue de Fernão Mendes do Pragal!… Dói-me tantas vezes a indiferença… Não esqueço o juízo do elefante perante o discurso do burro. E que tal desdita não se apresente aqui. Lembremos sim o nosso grande poeta!
Agostinho de Morais
A rubrica TU CÁ TU LÁ COM O PATRIMÓNIO foi elaborada no âmbito do
Ano Europeu do Património Cultural, que se celebra pela primeira vez em 2018
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