MAFRA – UM MEMORIAL DE CONVENTO…
TU CÁ TU LÁ
COM O PATRIMÓNIO
Diário de Agosto * Número 28
O Convento e Palácio Nacional de Mafra constitui uma das grandes referências europeias do barroco setecentista. A edificação propriamente dita, a Biblioteca única na diversidade e valia das obras nela integradas, o sistema de carrilhões (apoiado pela campanha dos 7 monumentos maia ameaçados da Europa Nostra), os órgãos da basílica – tudo aponta para um dos exemplos mais importantes da criação artística e arquitetónica da humanidade. Os trabalhos da construção iniciaram-se em 1717 por iniciativa de D. João V, em virtude de uma promessa em nome da descendência que viesse a ter da rainha D. Maria Ana de Áustria. Concebido inicialmente como um pequeno convento para 13 frades, o projeto para o Real Convento foi sofrendo sucessivos alargamentos, acabando num imenso edifício de cerca de 40.000 m2, com todas as dependências e pertences necessários à vida quotidiana de 300 frades da Ordem dos Frades Menores. O edifício ocupa uma área aproximada de quatro hectares (37.790 m2). Construído em pedra de lioz, abundante na região, é constituído por 1200 divisões, mais de 4700 portas e janelas, 156 escadarias e 29 pátios e saguões. No convento gastavam-se, quando começou a funcionar, anualmente 120 pipas de vinho, 70 pipas de azeite, 13 moios de arroz (cada moio corresponde a 828 litros) ou 600 cabeças de vaca. Junto ao Convento ficava o chamado Jardim da Cerca, com horta e pomar, vários tanques de água e sete campos de jogos, quatro da bola, um do aro e dois de laranjinha. Foi escolhido para arquiteto João Frederico Ludovice, ourives, arquiteto e engenheiro militar prussiano de formação italiana. Dirige a obra até 1730 e para sua conclusão ficará seu filho João Pedro Ludovice, também arquiteto. Para os altares da Real Basílica e diversas capelas, bem como áreas conventuais, como a portaria e o refeitório, o rei encomendou uma coleção de pintura religiosa, na qual avultam obras dos pintores italianos Masucci, Giaquinto, Trevisani e Battoni e de portugueses bolseiros em Roma como Vieira Lusitano e Inácio de Oliveira Bernardes. A coleção de escultura foi encomendada a grandes mestres italianos, entre os quais se contam Lironi, Monaldi, Bracci, Maini, Corsini, Rusconi e Ludovisi, constituindo a mais importante coleção de escultura barroca italiana fora de Itália, formada por 58 estátuas de mármore de Carrara, que inclui estudos em terracota e a produção da Escola de Escultura de Mafra, criada no reinado de D. José, sob a direção do mestre italiano Alessandro Giusti, e por onde passaram importantes escultores como Machado de Castro. Há ainda uma importante coleção de paramentos produzidos em Itália e em França.
A construção e a mitologia em seu entorno foi tema do romance de José Saramago “Memorial do Convento”. Entre os operários do Convento estava Baltasar Mateus, o Sete-Sóis, e o romance trata do seu grande amor por Blimunda Jesus, mulher dotada do estranho poder de ver o interior das pessoas. Os dois conhecem o célebre padre Bartolomeu Lourenço de Gusmão, que entrou na história como pioneiro das máquinas voadoras. Desse encontro vai resultar a construção de um aparelho voador, a Passarola, que sobe em direção ao Sol, sendo que este atrai as vontades, que estão presas dentro da Passarola. Blimunda Jesus, ao ver o interior das pessoas, recolhe as suas vontades, descritas pelo autor como nuvens abertas ou nuvens fechadas.
Após um dos voos da passarola, Bartolomeu foge para Espanha, perseguido pela Inquisição. Blimunda e Baltasar vão tratando de esconder e de fazer a manutenção à Passarola, que estava dissimulada por arbustos em Montejunto. Um dia, Baltasar ficou preso à Passarola, enquanto fazia a sua manutenção, e os cabos que a impediam de se elevar nos céus rebentaram, tendo sido levado pelos ares. A aeronave despenhou-se e Baltasar foi capturado pela Inquisição, acusado de bruxaria. No epílogo da ação, Blimunda recolhe a vontade de Baltasar, enquanto este morre, condenado à fogueira.
Aqui património, tradição, sonho e imaginação encontram-se notavelmente…
E oiçamos José Saramago:
“Tu és Sete-Sóis porque vês às claras, tu serás Sete-Luas porque vês às escuras, e, assim, Blimunda, que até aí só se chamava, como sua mãe, de Jesus, ficou sendo Sete-Luas, e bem batizada estava, que o batismo foi de padre, não alcunha de qualquer um. Dormiram nessa noite os sóis e as luas abraçados, enquanto as estrelas giravam devagar no céu, Lua onde estás, Sol aonde vais.”
“Que sentes tu dentro de ti, Que ninguém se salva, que ninguém se perde, É pecado pensar assim, O pecado não existe, só há morte e vida, A vida está antes da morte, Enganas-te, Baltasar, a morte vem antes da vida, morreu quem fomos, nasce quem somos, por isso é que não morremos de vez, E quando vamos para debaixo da terra, e quando Francisco Marques fica esmagado sob o carro da pedra, não será isso morte sem recurso, Se estamos falando dele, nasce Francisco Marques, Mas ele não o sabe, Tal como nós não sabemos bastante quem somos, e, apesar disso, estamos vivos, Blimunda, onde foi que aprendeste essas coisas, Estive de olhos abertos na barriga da minha mãe, de lá via tudo.”
“Baltasar Mateus, o Sete-Sóis, está calado, apenas olha fixamente Blimunda, e de cada vez que ela o olha a ele sente um aperto na boca do estômago, porque olhos como estes nunca se viram, claros de cinzento, ou verde, ou azul, que com a luz de fora variam ou o pensamento de dentro, e às vezes tornam-se negros noturnos ou brancos brilhantes como lasca de carvão de pedra.”
Agostinho de Morais
A rubrica TU CÁ TU LÁ COM O PATRIMÓNIO foi elaborada no âmbito do
Ano Europeu do Património Cultural, que se celebra pela primeira vez em 2018
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