CAMILO CULTOR DA MEMÓRIA…
TU CÁ TU LÁ
COM O PATRIMÓNIO
Diário de Agosto * Número 31
Chego ao fim deste Diário de Agosto. Muito ficou por dizer.
Hoje falo do Bruxo de Seide. Sim dum bruxo, que soube usar a língua e a narrativa como um modo de enfeitiçar… Camilo Castelo Branco é, por certo, o escritor português que mais sistematicamente cultivou o património e a memória. Ah, como é enganadora a sua fama! Profundo conhecedor do Portugal profundo, deu-nos nos seus romances um retrato rigoroso sobre as tradições, as angústias e as aspirações mais inóspitas e escondidas. Conheceu bem a Patuleia, nas suas diferentes componentes – desde o culto das tradições, das hostes do General Póvoas, à força incontida do inconformismo… E a sua biografia é um verdadeiro alfobre de temas que foi desenvolvendo e desconstruindo ao longo de um conjunto inumerável de títulos. Não se pense, porém, na superficialidade do escritor. Longe disso. Leitor insaciável, reunia informações e documentos, que conhecia como ninguém, e que faziam dele um dos nossos escritores mais cultos. É um caso singularíssimo na língua portuguesa. Longe do repentismo ou da facilidade, estamos perante um verdadeiro cultor das letras que se evidenciou ao saber aliar a um grande talento narrativo, uma capacidade de evocação única e a exigência de um profissional de primeira água, equiparável aos maiores de sempre, como Dickens ou Balzac… Alexandre Cabral fala, com razão, do «exemplo de um profissionalismo sem mácula, nesse estrito aspeto, que não foi ainda ultrapassado». Fialho de Almeida calculava a produção camiliana em cerca de 180 volumes e 54 mil páginas.
Aquando da prisão na Relação do Porto, no processo de Ana Plácido, D. Pedro V fez questão de visitar o romancista duas vezes, em novembro de 1860 e no final do Verão de 1861, com palavras de admiração, e, como corresse a notícia de que o monarca lhe mandara oferecer dois contos de réis, Camilo apressou-se a esclarecer e a desmentir: «Eu creio que o Sr. D. Pedro V é infinitamente delicado, e só dá esmolas a quem lhas pede. Quando S. M. me fez a honra de perguntar, na cadeia, em que ocupava, respondi a S. M.: que trabalhava. Ou o Sr. D. Pedro V entendesse que eu me ocupava em chapéus de palha ou em romances, ou em caixinhas de banha, a minha posição ficava defendida para o inteligente monarca: o homem que trabalha não pede nem aceita esmolas; e, se a pedisse ao rei, julgar-se-ia tão humilhado, como se a pedisse ao ínfimo dos homens». Estava em causa a hombridade e a direitura da sua dignidade.
Como escritor que se empenhava num verdadeiro drama quotidiano, confessa: «Eu inclinava o peito crivado de dores sobre uma banca para ganhar, escrevendo e tressudando sangue, o pão de uma família. A luz dos olhos bruxuleava já nas vascas da cegueira. E eu escrevia, escrevia sempre».
Oiçamo-lo então nas páginas inesquecíveis de “A Queda de Um Anjo”:
«Fermentou na mente dos principais lavradores e párocos das freguesias do
círculo eleitoral a ideia de levar ao Parlamento o morgado da Agra de Freimas.
Os deputados eleitos até àquele ano, no círculo de Calisto Elói, eram coisas
que os constituintes realmente não tinham enviado ao congresso legislativo.
Pela maior parte, os representantes dos mirandeses tinham sido uns rapazes
bem-falantes, areopagitas do café Marrare, gente conhecida pela figura desde o
botequim até S. Carlos, e afeita a beber na Castália, quando, para encher a
veia, não preferia antes beber da garrafeira do Mata, ou outro que tal
ecónomo dos apolíneos dons.
Em geral, aquela juventude esperançosa, eleita por Miranda e outros sertões
lusitanos, não sabia topograficamente em que parte demoravam os povos seus
comitentes, nem entendia que os aborígenes das serranias tivessem mais
necessidades que fazerem-se representar, obrigados pelo regímen da
constituição. Se algum influente eleitoral, prelibando as delícias do hábito de
Cristo, obrigara a urna e o senso comum a gemer nos apertos do doloroso
parto do paralta lisboeta, o tal influente considerava-se idóneo para escrever
ao deputado, incumbindo-lhe trabalhar na nomeação de um vigário chamorro,
ou outra coisa, que foi denominação de bando político, em tempo que a
política não sabia sequer dar-se nomes decentes. Pois o deputado não
respondia à carta do influente, nem o requerente sabia onde procurá-lo fora
do Marrare.
Por muitos factos desta natureza conspiraram os influentes do círculo de
Miranda contra os delegados do Governo; e a ideia de eleger o morgado foi
recebida entusiasticamente por todos aqueles que o ouviram falar no adro da
igreja, e por quantos tiveram notícias da sua parlenda.
O partido, que o mestre-escola ganhara de eloquente assalto, cedeu ao império
das razoáveis conveniências, e centralizou-se na maioria. A verbosidade,
porém, do professor não ficou despremiada, sendo nomeado secretário da
junta de paróquia.
Resistiu Calisto de Barbuda tenazmente às solicitações dos lavradores, que o
procuraram com o mestre-escola à frente, facto que muito honra este
desinteresseiro e reportado funcionário. Neste encontro, o professor excedeu
o juízo avantajado que ele propriamente fazia da sua vocação oratória.
Mostrou as fauces do abismo escancaradas para travarem Portugal, se os
sábios e virtuosos não acudissem a salvar a Pátria moribunda. Calisto Elói,
enternecido até às lágrimas pela sorte da terra de D. João I, voltou-se para a
esposa, e disse, como o agricultor Cincinato:
— Aceito o jugo! Assaz receio, mulher, que os nossos campos sejam mal
cultivados este ano.
Estavam próximas as eleições.
A autoridade, assim que soube da resolução do morgado da Agra, preveniu o
Governo da inutilidade da luta. Não obstante, o ministro do Reino redobrou
instâncias e promessas, no intuito de vingar a candidatura de um poeta de
Lisboa, mancebo de muitas promessas ao futuro, que tinha escrito revistas de
espetáculos, e recitava versos dele ao piano, cuja falta ou demasia de sílabas a
bulha dos sonoros martelos disfarçava. Redarguiu o administrador do
concelho ao governador civil que pedia a sua demissão para não sofrer a
inevitável e desairosa derrota.
Quis assim o Governo aliciar no círculo algum proprietário, que
contraminasse a influência do candidato legitimista, fazendo-se eleger. Alguns
lavradores, menos aferrados à candidatura de Calisto, lembraram à autoridade
o professor de instrução primária, estropeando frases dos discursos dele,
proferidos na botica. O administrador riu-se, e mandou-os bugiar, como
parvajolas que eram.
Por derradeiro, o governador civil fez saber ao ministério que os povos de
Vimioso, Alcanissas e Miranda se tinham levantado com selvagem
independência e tinham fugido com a urna para os desfiladeiros das suas
serras.
Pelo conseguinte, não pôde ser proposto o poeta, que, beliscado na sua
vaidade, assanhou-se contra o Governo, escrevendo umas feras objurgatórias,
as quais, se tivessem gramática à proporção do fel, o Governo havia de pôr as
mãos na cabeça e demitir-se.
À exceção de uma lista, o morgado da Agra de Freimas teve-as todas. A que
não tinha o nome simpático aos eleitores votava em Brás Lobato, professor de
instrução primária, secretário da junta de paróquia, e ex-sargento das milícias
de Mirandela. Parece que votara em si o mestre-escola. Afinal, maculou a
alvura do nobilíssimo desprendimento com que perorara em pró da eleição de
Calisto! Fragilidade humana!
Principiou, desde logo, o morgado eleito a refrescar a memória com as suas
leituras de história grega e romana. Era isto entroixar ciência e enfeixar flores
para o Parlamento. Depois, releu a legislação dos bons tempos de Portugal, a
fim de restaurar os costumes desbaratados, fazendo remoçar as leis, que
tinham sido o tabernáculo da moral humana guardado pelo temor de Deus.
Tosquenejou muitas noites sobre os bacamartes pulvéreos; e, desde que a
manhã raiava até horas de almoço, ia à margem do Douro, que lhe lambia a
ourela da quinta, declamar, como Demóstenes nas ribas marítimas, ao estridor
de um açude e das rodas de duas azenhas. Os moleiros, que o viam bracejar, e
lhe ouviam o vozeamento, benziam-se, pensando que o sábio treslera, ou
coisa má lhe entrara no corpo. A Sra. D. Teodora Figueiroa, vendo o marido
assim tresnoitado, seguia-o às vezes, de madrugada, espreitava-o de um
cabeço sobranceiro ao rio, e benzia-se também, dizendo: «Dão-me com o
homem em doido!»
(A Queda de Um Anjo)
Agostinho de Morais
A rubrica TU CÁ TU LÁ COM O PATRIMÓNIO foi elaborada no âmbito do
Ano Europeu do Património Cultural, que se celebra pela primeira vez em 2018
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