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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

CARTAS DE CAMILO MARIA DE SAROLEA

 

Minha Princesa de mim: 

 

    Como prometido, vamos então descontraidamente procurar pistas que nos guiem num passeio histórico pelas institucionalizações humanas, mais ou menos ideológicas, "políticas", sempre canónicas, desse corpo místico cuja cabeça é Jesus Cristo, e é, no mundo, conhecido por assembleia ou Igreja dos seus fiéis ou batizados. Pelo Novo Testamento é esse povo, por Cristo, com Cristo e em Cristo, o único sacerdote.

 

   Para frei (e cardeal) Yves Congar, a Igreja inicial, ou dos Apóstolos, continua no período dos mártires (não esqueças, Princesa, que mártir quer dizer testemunha) até à paz constantiniana (1ª metade do século IV); segue-se-lhe o período dito "monástico", de que te falei em carta anterior, que mantém o princípio da autoridade episcopal como fator de união, em osmose com a comunidade dos cristãos e com carácter acentuadamente carismático ou espiritual. Período definido até ao século XI. Volto a citar-te São Cipriano (2ª metade do século III): Tenho por regra, desde o inicio do meu episcopado, nada decidir sem o vosso conselho (de padres e diáconos) e sem o sufrágio do povo, algo que fosse só da minha opinião pessoal... E traduzo o comentário de Yves Congar:

 

   De facto, todo o povo eclesial, e especialmente os leigos, intervinha na eleição dos bispos e na designação dos ministros, nos concílios aonde levavam informações, e, finalmente, na criação dos costumes pelos quais as próprias comunidades regulavam em grande parte as suas vidas. Contribuição tanto melhor acolhida quanto, apesar de bem estruturada canonicamente, a Igreja primitiva se queria dócil às intervenções do Espírito Santo. Ora, é do agrado de Deus dar a conhecer a sua vontade através do mais pequenos ou menos considerados...

 

   Pergunto-nos, Princesa de mim, se, na atual instituição clerical da Igreja Católica, não acabaremos por estar mais próximos da igreja senhorial, a da classe social chamada "primeiro estado" na nomenclatura sociopolítica medieval (clero, nobreza e povo, lembras-te?), do que da inicial Igreja dos Apóstolos, já que com tanta pujança se mantém o uso - pode dizer-se o costume, a consuetudo - das designações dos ministros dos fiéis (diáconos, presbíteros e epíscopos, sejam bispos ou arcebispos) como títulos honoríficos e até graus de uma carreira de honras clericais. Assim, continuam a ser nomeados bispos ou arcebispos de dioceses desaparecidas, clérigos nomeados para funções (que, por vezes, nem pastorais são) na cúria vaticana ou, até, junto a entidades estranhas à Igreja. Esquece-se que diácono, padre, bispo ou arcebispo não são patentes nem sequer graus hierárquicos, são designações de prestadores de serviços das comunidades eclesiais. Ou, dito de outra maneira: no povo de sacerdotes que são os batizados, escolhem-se ou elegem-se (como é, claramente, o caso do bispo de Roma ou papa) pessoas preparadas para o exercício de certas funções da palavra, do culto, dos sacramentos. O conceito - e a respetiva prática socio-eclesial - de uma classe de batizados de primeira (também erradamente chamados, a meu ver, consagrados) gerou a praga do clericalismo, que é sentimento de si e atitude de presumida superioridade de quem pensa deter e poder dispor do poder divino na terra, sobretudo o de absolver erros e pecados, declarar nulidades, ou mesmo ainda o de, no passado, se terem pregado e justificado guerras religiosas. Parece-me indispensável erradicar este mal clericalista... Por isso mesmo penso também que é verdadeiramente justa e digna de louvor a disposição da Igreja denunciar às legítimas instâncias judiciais civis os crimes cometidos pelos seus ministros.

 

   Vai-se alongando esta carta e ainda não cheguei a falar-te de parte do pensarsentir que me inspirou a escrevê-la. Ficará para a seguinte. Todavia, deixa-me dizer-te agora coisas que, creio eu, poderão ajudar a melhor entendermos o que a seguir vier. Sobretudo na medida em que for capaz de te pôr a adivinhar outro rosto de uma Igreja que, sendo mais fiel àquelas que os Apóstolos fundaram, seja também uma comunidade do nosso tempo, mais livre de tantos rebocos e pinturas que lhe foram fazendo, ao ponto de muitas vezes nos esquecermos da sua alma evangélica, para antes a encararmos como uma organização ideológica e jurídica de funcionários do sagrado  -  ou mesmo como um Estado transnacional, com sistema jurisdicional próprio e funcionalismo dispensador de passaportes para o paraíso...

 

   Recorro, uma vez mais, a Congar e ao seu Pour une Église servante et pauvre, livrinho que muitos consideram o "livro-programa do Papa Francisco". Refere-se a um artigo de Chateaubriand, publicado a 5 de Julho de 1824 e citado nas Mémoires d´outre-tombe, que diz assim (traduzo Chateaubriand): O tempo reduziu esta monarquia [a francesa] ao que ela tem de real : em política, já se ultrapassou a idade das ficções; já não se pode ter um governo de adoração, de culto e de mistério : cada qual conhece os seus direitos, nada é possível fora dos limites da razão, e até mesmo o favor, última ilusão das monarquias absolutas, é, como tudo o mais, pesado e apreciado nos dias de hoje. O teólogo e historiador dominicano transpõe assim a inspiração deste trecho:

 

   A sociedade moderna tende a construir-se sobre a razão, não sobre o sagrado. E pergunto se a Igreja operou a crítica correspondente, ou seja, a dessa parte de profano, de imperial, de feudal e de senhorial, que durante tanto tempo não só tolerou como buscou... Já não há Sacro Império, mas muitos títulos e insígnias, muitos cerimoniais ou ritos de visibilidade do seu prestigiado esplendor ficaram na Igreja... Não será já tempo, não haveria benefício nisso, de «sacudir a poeirada imperial que se foi depositando, desde Constantino, no trono de São Pedro?»

O dito é de João XXIII…

 

   Creio que nos será ainda útil respigar e traduzir mais uns trechos de frei Yves Congar, que nos ajudarão a melhor considerar certos aspetos ou facetas da Igreja que, sendo historicamente datados e circunstancialmente explicáveis, tendem muitas vezes a ser apresentados como traços essenciais da tal "Igreja fundada por Cristo"... Vou busca-los a um capítulo que aquele autor dominicano intitulou L’invasion du juridisme:

 

   Se interrogarmos os Padres [os Padres da Igreja, a Patrística] e a liturgia sobre o sentido que dão à Igreja, damos connosco num clima diferente do da eclesiologia moderna, pelo menos da que tem prevalecido nas escolas desde finais do século XVI ou quiçá começos do século XIV e a renovação atual [Vaticano II]. Essa eclesiologia das escolas mais não era do que a versão apologética de um tratado de direito público eclesiástico: só falava de poderes e direitos. Os Padres, a liturgia, falam de Igreja em termos de vida e comunidade espirituais, de Cidade santa, de combate espiritual do espírito contra a carne. Dela falam com os símbolos ou tipos dos patriarcas, de Rahab, a cortesã salva pela fita vermelha que põe à janela e pressagia a fé no sangue de Cristo, de Madalena, a impura que se torna pura, da Virgem Maria, mais feliz por ter acreditado do que por ter gerado Jesus Cristo... É que a Igreja deles é feita do conjunto dos homens que se convertem ao Evangelho. A sua eclesiologia inclui uma antropologia e os meios (sacramentos, regras de vida santa) pelos quais os homens podem viver na comunhão com Deus em Jesus Cristo.

 

... A alta Idade Média, e os grandes escolásticos, são ainda largamente tributários de tal perspetiva... Mas, pelo final do século XI, impõe-se a reforma gregoriana (de Gregório VII, papa): ... para operar a necessária conversão do clero, libertando-o do mal do nicolaísmo (incontinência) e sobretudo da simonia [transação comercial de bens religiosos] pela retirada da Igreja da sujeição a poderes laicos, reforçando a autoridade do papado e, consequentemente, a ação deste.

 

    Desta conjuntura surgirá necessariamente a procura e elaboração de um ordenamento jurídico da sociedade eclesial, donde o desenvolvimento do direito canónico cuja proeminência se revelará, por exemplo, no facto de que, após Alexandre III (papa de 1159 a 1181) e por dois séculos, quase todos os papas terem sido juristas, não apenas canonistas mas também doutores in utroque jure, isto é em direito romano e eclesiástico. Escreve frei Ivo:

 

   Esse desenvolvimento, essa ascensão do direito serviram sobretudo o papado nos conflitos com as potências seculares, conflitos esses que cobrem todos os «séculos de fé»: são os séculos da «cristandade», ou seja, esses em que, idealmente, os dois poderes são como os dois braços de um mesmo corpo, dois «ministérios» de uma única sociedade cristã...   ... É no contexto da luta do papa contra o imperador Henrique IV que se situa essa palavra de Gregório VII: «Ecclesia non est ancilla sed domina», "a Igreja não é serva mas senhora". Palavra que se deve entender em relação com o contexto histórico (tratava-se de sacudir a tutela, ou a dominação, da potência temporal), mas que não deixa de ser embaraçosa, por representar, materialmente, o contrário do princípio evangélico: non dominari sed ministrare, "não dominar mas servir".

 

   Aqui te ficam umas pistas para tua reflexão - como também orientam a minha: na verdade, é a todos nós, cristãos batizados, que compete essa abertura ao Espírito Santo para, em comunhão, irmos renovando a face da Igreja...

 

Camilo Maria

 

Camilo Martins de Oliveira

TEATROS REAIS NO SÉCULO XVIII

 

Remontamos aqui ao século XVIII para dar notícia evocativa de alguns Teatros Reais, no sentido de teatros régios e da corte. E importa ter presente que se referem sobretudo teatros de ópera, pois como bem sabemos a tradição do espetáculo dramático propriamente dito, na corte e nas cidades, vinha de traz: basta lembrar que Gil Vicente representava para a família real a partir de 1502.

 

Mas o primeiro espaço teatral público, o Pátio das Arcas de Lisboa, surge em 1590 por influência da Corte filipina e por iniciativa de Fernão Dias de La Torre. E ao longo do século XVII e XVIII surgem documentos e noticias relativos a edifícios e espaços de espetáculo, sobretudo (mas não só) em Lisboa: cite-se o Pátio do Borratem ou da Mouraria, o Pátio das Hortas do Conde, onde depois existiriam os sucessivos três Teatros e Cinema Condes, ou os Teatros do Bairro Alto.

 

Mas é evidente que temos descrições de espaços onde, antes disto, se faziam espetáculos.

 

Herculano, nas “Lendas e Narrativas”, descreve a representação de um Auto inaugural, digamos assim, no Mosteiro da Batalha, em 1402. E Gil Vicente é ainda mais explicito em indicações plausíveis de cena: por exemplo da Câmara da Infanta no “Auto da Visitação – Monólogo do Vaqueiro” em 1502 ou do chamado Mosteiro de Enxabregas no “Auto da Sibila Cassandra” em 1513.

 

Mas avancemos no tempo.


O que agora nos importa evocar é os Teatros Reais a partir do seculo XVIII. E desde logo, o do Palácio de Queluz.

 

Vale a pena recordar que o Palácio começou a ser construído ainda nos anos 50 do século XVIII, segundo projeto de Mateus Vicente de Oliveira e de Robilllon. Em 1778, inaugurou-se lá um Teatro de madeira, projetado por Inácio de Oliveira Bernardes. Mas esse Teatro pouco durou: na verdade, D. Maria I manda derruba-lo em 1790 para construir no local um Pavilhão onde se instala depois da subida ao trono do filho e sucessor D. João VI.

 

E aqui citamos o que escrevemos no livro “Teatros de Portugal”:

 

“Fez-se ópera em salas e pavilhões armados desde pelo menos 1761, e ficou uma tradição insólita de D. Miguel cantar o papel de D. Quixote na ópera de António José da Silva e António Teixeira em 1833! Restou no entanto, e está completamente recuperado, um pequeno Teatro no interior do edifício fronteiro ao Palácio, chamado Torre do Relógio”. (Edições INAPA pág. 20).

 

DUARTE IVO CRUZ

CRÓNICAS PLURICULTURAIS

 

17. AO PRAZER SEM CULPA DE BEBER UM COPO!

 

Beber um copo, só ou com companhia, é um ato social que se universalizou, em especial nas gerações mais novas. 

 

Por vezes corresponde a uma imagem de marca, quando esse beber, no seu sentido literal, é protagonizado por protagonistas famosos, em séries de sucesso, pronto a ser imitado, como referência ou com reverência. 

 

Refiro, a propósito, a protagonista feminina principal de House of Cards, a atriz norte-americana Robin Wright, ao beber e saborear, só, um copo de vinho tinto, de vez em quando, em momentos de evasão, inspiração, relaxe, refúgio e sossego. Com uma elegância escultural tantas vezes distante, fria, gélida ou glaciar. Poderia ser de vinho branco ou verde, bem fresco, mas talvez o clima, por aquelas paragens, apele mais ao tinto.   

 

E se há 50, 40, 30 ou 20 anos, ou mais, era um ato de rebeldia mulheres sozinhas pedirem um copo de vinho, hoje é cada vez mais usual, mas ainda chamativo, por vezes um distintivo bem distinto, numa rebeldia elegante e fina sem perder o chá, em que pedir, por exemplo, um copo de vinho branco, bem fresco, numa esplanada em pleno verão, entre nós, já não é um ato ousado e de coragem, como outrora.

 

Pode ser o culto do prazer, na solidão ou na comunhão, no convívio ou na conversação, na amizade ou no amor, podendo-nos também ajudar a exaltar o prazer da mesa, e outras dimensões metafísicas, como a alegria, a inspiração, fazendo-nos esquecer, nem que seja por breves momentos, as agruras da vida, preocupações e maus pensamentos.

 

Pode haver momentos de alegria, criatividade, desinibição, euforia, introspeção,  melancolia, nostalgia, paixão, saudade, tristeza, entre outros, incluindo uma associação de culpa, quando o excesso campeia.

 

O importante é que, com equilíbrio, nos libertemos da culpa associada ao prazer.

 

O que interessa é o prazer sem culpa. 

 

O prazer sem culpa de beber um copo.   

 

Ao prazer sem culpa de beber um copo! Chim, chim!   

 

Mas não a qualquer preço.          

 

25.09.2018
Joaquim Miguel de Morgado Patrício

CONDIÇÃO

 

Também amor

 

São folhas que se soltam das saias

Acesas e no meio de muitas memórias

Palavras completas como oceanos

 

Também amor

 

É o que atravessa o amor

É o que existe ao cimo

É o leme amor dentro

 

Também amor

 

É uma vida de cegueira

Uma alegria furibunda

Pureza de mundo só

 

Também amor

 

É o que se desdobra da alma apertada

Pela dor da seta fragmentada

Coração uno de uma dor inexplicável

 

Também amor

 

É limite recriado

Truculento principiante

De canto contra o muro humano

 

Também amor

 

É uma selvajaria celeste

É ator, verdade e cenário

Janela, bocado de estrela

Divagação de maçã

Holofote de grandeza

Casa louca, ninho verde

Magnólia essência de oficina

Afinal poema

 

Condição

 

 

Teresa Bracinha Vieira

A FORÇA DO ATO CRIADOR

 

Casa em Boliqueime, de Ricardo Bak Gordon.


A casa em Boliqueime (2002), de Ricardo Bak Gordon (1967) faz lembrar ‘o jogo sábio, correcto e magnífico dos volumes sob a luz’, que Le Corbusier mencionava em ‘Vers une Architecture’. É uma casa branca que só precisa de sol para ser vivida por dentro. E traz o espanto inesperado que toda a arquitectura deveria ter.

 

A casa em Boliqueime torna poética a experiência daquele lugar - porque preenche falhas, radicaliza, revela, acrescenta e sobretudo introduz um novo modo de olhar e uma nova relação do ser humano com o mundo.

 

‘O sol de lado, banhando

uma casa sem pontes, tempo

sem luz, ou casa

como tenda’, Ana Luísa Amaral


Para Bak Gordon, a apropriação de um lugar, a ordem das formas, a ligação dos volumes à terra e a organização programática acontece sempre através do desenho. O desenho é expressão, é gesto, é processo físico mas sobretudo investigação.

A casa em Boliqueime ergue-se intemporal e sensível à paisagem que a envolve. É uma unidade fechada e contrastante com a natureza. É uma elementaridade esquemática que pertence a qualquer tempo mas somente àquele lugar. Consegue cruzar a herança da arquitectura vernácula e a herança da arquitectura das vanguardas históricas. Consegue transformar e ampliar artificialmente o significado concreto daquele lugar.

 

Esta casa afirma uma essencialidade unitária, uma dureza táctil e uma limpidez matérica. As formas primárias leêm-se claramente, mas escondem que a piscina é também um volume. É uma casa abstracta (que através de uma síntese chega ao essencial), passível de ser ocupada e e de ser capaz de ampliar a experiência de uma vida.

 

‘O sol de lado

e em frente: um verde

de verão, tão verde de

verão

a amanhecer: eu sem

saber’, Ana Luísa Amaral 

 

Ana Ruepp

UM PLANO MARSHALL PARA ÁFRICA

 

1. Desde a década de oitenta do século passado que me tenho manifestado favorável a uma espécie de Plano Marshall para África. A última vez que me pronunciei foi no passado dia 13 de Agosto, na RTP 3, em conversa com a jornalista Sandra de Sousa, a partir de declarações do cardeal António Marto, a propósito das migrações.

 

Fica aí textualmente o que disse nessa conversa, no contexto da leitura dos jornais do dia.

 

Sim, nós estamos perante uma questão dramática, que, no meu entender, será cada vez mais dramática. Estamos a tratar das migrações, dos refugiados. E eu quereria chamar a atenção para dois ou três pontos.

 

Em primeiro lugar, é evidente que a Terra é de todos, o mundo é de todos e, por isso mesmo, há o direito de visita, de hospitalidade, de que já Kant falava. Mas a Europa, neste momento, está com este problema, que é um dos maiores problemas, o das migrações. Sobre isso gostava de chamar a atenção para os direitos humanos, e a defesa dos direitos humanos é qualquer coisa que está profundamente ligada à Europa - a Europa sempre se distinguiu por receber. Mas gostava de chamar também à colação que esta é uma questão da Europa enquanto União Europeia.

 

Em segundo lugar, julgo que é preciso entender que não podemos, para resolver um problema, criar problemas maiores, por exemplo, criar xenofobia, uma direita cada vez mais agressiva... Depois, é necessário também combater os traficantes ­ - é fundamental perceber isso. O próprio Papa Francisco tem dito que o Mediterrâneo não pode ser um cemitério. Estamos completamente de acordo. Mas, ultimamente, chamou a atenção para a prudência. Chamou a atenção para qualquer coisa que me parece fundamental.

 

Há a pequena política e a grande política. Se houver a grande política, vai-se perceber que, como a seguir à Segunda Guerra Mundial, houve o famoso Plano Marshall, que desenvolveu a Europa, que estava completamente destruída, e isso foi bom para a Europa e também para os Estados Unidos, algo parecido pode ser bom para África e para a Europa. Eu penso que é necessário, concretamente em relação a África, um Plano Marshall, isto é, desenvolver África lá. Lá. Com regras, evidentemente, pois sabemos que há governantes africanos que também não têm regras e apoderam-se dos dinheiros que chegam. Então, um Plano Marshall para África, para fixar as populações lá. Os africanos têm direito a viver bem e a desenvolver-se lá. Isso seria bom para África e isso seria bom para a Europa.

 

Sandra de Sousa observou: porque é que a Europa se tem regido pela pequena política? Porque tem pequenos líderes, não tem grandes estadistas?

 

Respondi: porque não há uma real união europeia. Eu penso que a Europa, sem união, sem estruturas minimamente federativas, com o tempo, torna-se insignificante no mundo. Veja: a Alemanha é um país grande, mas dentro da Europa; no quadro de um mundo cada vez mais globalizado, a própria Alemanha é pequena. Portanto, nós precisamos da grande política, no sentido de estadistas que criem uma União Europeia forte. Porque não é apenas a Europa, é o mundo que precisa da Europa. Porque os direitos humanos onde é que apareceram em primeiro lugar? Foi aqui, na Europa. Onde é que há segurança social? É na Europa.

 

Para que a Europa possa responder a esta questão gigantesca - o problema das migrações e dos refugiados é um problema gigantesco -, precisa de estadistas. Hoje, os africanos podem viver em condições difíceis e em lugares recônditos, mas em qualquer sítio há possibilidade de aceder através da internet à situação da Europa, e a Europa aparece como um paraíso e, portanto, vão querer vir. Depois, com a desertificação de África, vão aparecer milhões de africanos às portas da Europa, concretamente da Europa do Sul. Então, é necessária a grande política, e por isso é que eu, há muito tempo, sou defensor de um Plano Marshall para África. Para que se desenvolvam lá.

 

Sandra de Sousa: não se resolve com muros, com portas...

 

Respondi: não é possível, não é possível face a milhões de africanos que vão chegar...

 

2. Fiquei, pois, muito satisfeito, ao saber que a França e o Benelux, numa reunião recente no Luxemburgo, que juntou Emmanuel Macron e os primeiros-ministros luxemburguês, holandês e belga, querem que a Europa concretize esta ideia. "A União Europeia deve implementar uma versão do Plano Marshall em África, com uma ambição operacional concreta com os parceiros africanos", afirmou o belga Charles Michel.

 

3. Neste contexto, penso também que o clero africano tem um contributo fundamental a dar, desde que assuma as suas responsabilidades, ultrapassando as razões que sustentam críticas de missionários e de bispos. "O sacerdócio não pode ser um trampolim para sair de África porque é pobre", disse à Agência Fides o padre Donald Zagore, da Sociedade de Missões Africanas, citando Marcelin Yao Kouadio, bispo da diocese de Daloa. "As razões recorrentes (da emigração de pessoal eclesiástico) continuam a ser a procura de bens materiais e de prestígio." Além disso, "muitos africanos pensam que são superiores ao resto, particularmente nos círculos eclesiásticos, porque vivem, trabalham ou estudam na Europa. É dramático pensar que a essência de África chegue à sua realização quando goza do prestígio europeu". Em Maio de 2018, Ignace Bessi Dogbo, presidente da Conferência Episcopal da Costa do Marfim, também denunciou o fenómeno dos "sacerdotes errantes": sacerdotes que se negam a voltar a África depois de estudos ou de uma missão na Europa.

 

Seria lamentável que o clero africano, concretamente o mais bem preparado com especializações no estrangeiro, fugisse às suas responsabilidades e não desse o seu contributo imprescindível à promoção e ao desenvolvimento do seu continente e dos seus países.

 

Anselmo Borges

Padre e professor de Filosofia
Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN | 15 SET 2018

RESPOSTA AOS CURIOSOS…

 

TU CÁ TU LÁ

COM O PATRIMÓNIO

 

Nova série. 25.9.2018

 

Já falei dos meus passeios entre Vila Nogueira e Aldeia de Irmãos, já vos lembrei um poeta árabe do século 11 que viveu em terra de saloios, e devo recordar a série de 32 postais sobre diversas formas de encarar o património cultural. Recebo, porém, no meio do correio, três cartas intrigantes. Os meus leitores A. Silva (será António, Arnaldo, Asdrúbal?), J. Eustáquio (será José, João) e a Mariana B. Lopes perguntam-me quem sou. Julgo que é o que menos importa, mas não me escondo. Dir-vos-ei sumariamente a minha identidade… O meu nome, já o sabem, é Agostinho de Morais. Meus pais foram económicos. Sou afilhado de Frei Agostinho da Cruz graças a uma licença especial e de uma tia Maria Olímpia, de antigos pergaminhos. Sou um vetusto interessado por muitas coisas. Fiz jornalismo económico no velho “Jornal do Comércio”, como comentador da conjuntura, com base nas publicações mensais da Estatística. Todos os meses, tinha à minha porta um paquete do jornal, para que eu pudesse debruçar-me sobre fastidiosos quadros que tinha de comparar com os meses anteriores e os anos transatos, cabendo-me escolher ainda um número em cada publicação, para que se compreendesse um pouco o que mudava e o que ficava na realidade económica. Previ muitos disparates, mas enganei-me às vezes (quem não se engana? Talvez os tontos?). As várias bolhas que foram surgindo eram detetáveis (do imobiliário à informática) – e não esqueço aquelas duas caricaturas de um grande jornal de Wall Street – em 1929, viam-se vários capitalistas, gordos e de charuto a atirarem-se das janelas dos arranha-céus de Nova Iorque; enquanto em 2008, os tais capitalistas de charuto estavam à janela, impávidos, a ver os pobres corretores e empregados a saltarem para a morte, agarrados aos seus parcos haveres, como os do Lehman Brothers, depois de terem sonhado enriquecer rapidamente… O certo é que há muito esqueci esse tempo em que usava mangas de alpaca, literalmente. E não foi há tanto tempo assim. Agora dedico-me ao meu jardim, às minhas rosas, que têm segredos inconfessáveis, que tenho estudado aturadamente. Há mesmo uma rosa-chá que leva o nome Morais e está devidamente registada. O cultivar o jardim é o ponto em que concordo com o “Cândide”, já que detesto a imagem do Dr. Pangloss, que as más línguas dizem ser o Leibniz… Não pode ser. Todos os dias leio um pouco de Leibniz, e em cada dia mais me convenço de que foi um dos maiores génios da humanidade de sempre… Adoro matemática, e tantas vezes dedico-me a fazer a análise matemática dos poemas de Camões – de facto, todos os grandes poetas e músicos têm a matemática dentro de si… A biblioteca é o meu refúgio favorito. Que mais vos posso dizer? Jogo xadrez com os amigos, mediocremente, porque sou distraído quando quero. Sou arqueólogo nas horas vagas – procurando afanosamente a chave da nossa misteriosa escrita do Sudoeste. Por isso tenho estudado a escrita fenícia. E tenho esperança de que avancemos proximamente para a descoberta da chave. Não sou solitário nem misantropo. Tenho uma família razoável e gosto da animação. Eis quem sou, não há muito mais a dizer. O relógio marca os meus passos. Sou um maníaco dos horários e fico desesperado quando há atrasos injustificados! O relógio que trago comigo é um Longines histórico de várias gerações que se mantém fiel à certeza e ao rigor. Parece mesmo ter havido um antepassado meu que teve como função manter os relógios certos no Paço Real… Sinto na minha ancestralidade algo que anima meus passos.

 

E, como habitualmente, cito um poema.

Desta feita da autoria de Pedro Tamen.

“A Luz vem das Pedras” de 1975:

 

«A luz que vem das pedras, do íntimo da pedra, 
tu a colhes, mulher, a distribuis 
tão generosa e à janela do mundo. 
O sal do mar percorre a tua língua; 
não são de mais em ti as coisas mais. 
Melhor que tudo, o voo dos insetos, 
o ritmo noturno do girar dos bichos, 
a chave do momento em que começa o canto 
da ave ou da cigarra 
— a mão que tal comanda no mesmo gesto fere 
a corda do que em ti faz acordar 
os olhos densos de cada dia um só. 
Quem está salvando nesta respiração 
boca a boca real com o universo?» (Agora, Estar).

 

Agostinho de Morais

 

 

AEPC.jpg   A rubrica TU CÁ TU LÁ COM O PATRIMÓNIO foi elaborada no âmbito do 
   Ano Europeu do Património Cultural, que se celebra pela primeira vez em 2018
   #europeforculture

 

 

A VIDA DOS LIVROS

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   De 24 a 30 de setembro de 2018

 

«Sua Excelência, de Corpo Presente» (D. Quixote, 2018) de Pepetela é o retrato implacável de um país imaginário, situado em África, visto por um alto dignitário que inesperadamente morre…

 

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COMPREENDER A CULTURA ANGOLANA

Não podemos compreender a cultura angolana contemporânea sem lermos a obra muito rica e multifacetada de Pepetela, Prémio Camões de 1997. Pode dizer-se mesmo que, ao longo do tempo, Artur Carlos Maurício Pestana dos Santos, nascido em 1941, em Benguela, tem procurado refletir de modo dinâmico sobre a evolução da história de Angola – olhando-a não nos seus paradoxos e dificuldades, mas na compreensão das suas potencialidades. Desde “Mayombe” (1980) até “Se o Passado Não Tivesse Asas” (2016) encontramos uma caminhada complexa e interessante, na qual a cada passo encontramos novos problemas e novos desafios. E agora, com “Sua Excelência, de Corpo Presente” talvez se feche um ciclo na análise da evolução da sociedade angolana. Para o romancista trata-se de compreender que há ciclos na vida dos povos, dos quais depende o progresso, o desenvolvimento e a emancipação. Veja-se, por exemplo, em “A Geração da Utopia” como a independência angolana gerou acontecimentos e sentimentos contraditórios que culminaram em mil dramas. Numa análise de diversos momentos-chave, passamos de um entusiasmo épico a uma progressiva instalação, que torna os interesses imediatos, a burocracia, o dinheiro e o favor mais importantes que os valores éticos. Olhando a vida de Pepetela, compreendemos que há uma evolução pessoal em que o sentido crítico e o talento se vão aperfeiçoando. Tendo passado, na sua formação em Portugal, como estudante da Casa dos Estudantes do Império, do Instituto Superior Técnico para a Faculdade de Letras – e contando com a rica experiência anterior em Benguela e no Lubango – cedo Pepetela ligou uma preocupação humanista e a consciência da emancipação social e política, que obrigava a criação de um novo Estado independente e desenvolvido. Como salienta em “As Aventuras de Ngunga”, haveria que ligar as raízes e as tradições do povo angolano ao espírito emancipador e revolucionário. A partir da necessidade de revisitação da história, Pepetela refletiu profundamente sobre a tensão entre a continuidade e a mudança. Pode dizer-se que essa é uma preocupação contínua – que articula a consciência política, o sentido crítico, a compreensão do tempo e da sua evolução e a consciência de um mundo melhor. Tendo sido Vice-Ministro da Educação do Governo de Agostinho Neto (1975-1982), foi chamado à responsabilidade de encontrar, num sector-chave, as medidas indispensáveis nos domínios didático e pedagógico, da coesão social e da dignidade humana, para preparar os jovens angolanos para uma fase decisiva da sua história coletiva. Só a aprendizagem, a experiência e o exemplo podem permitir uma emancipação eticamente fundamentada.

 

ENTRE METÁFORAS E DESAFIOS

Em “Yaka”, romance histórico sobre a colonização de Benguela, o romancista usou a metáfora de uma escultura de madeira, símbolo guerreiro, para articular a consciência das raízes identitárias e do novo espírito da nacionalidade. Pepetela compreende bem o tema da legitimidade numa sociedade que se pretende mais justa – as raízes fortalecem-se graças à capacidade de responder com instrumentos do presente aos desafios que se reeditam. Pensando nas origens da sua própria família, Pepetela procurou investigar a evolução histórica, designadamente em “A Gloriosa Família”, cujo tema nos leva ao século XVII. O que está em causa, porém, é compreender melhor Angola de hoje. A dimensão épica de “Mayombe” evolui para uma perspetiva crítica de “A Geração da Utopia” (1992), onde a história é confrontada com a dura tomada de consciência das divisões e contradições de uma sociedade atravessada pela exploração colonial, pela libertação, pela guerra civil e por um compasso de espera que obriga à reflexão crítica. A emergência da corrupção e da burocracia obriga a uma séria atitude de questionamento. Com Jaime Bunda, o detetive contraditório e vacilante, que é obrigado a entrar no bas-fond, o escritor visa o método satírico, que reforça o sentido agudo da crítica. Ao tratar temas muito sérios, Pepetela fá-lo reforçando os traços caricaturais da sociedade que melhor revelam os elementos dramáticos de um tempo, que em lugar de cumprir os melhores desejos esperançosos dos idealistas da libertação deixa-se arrastar pelas piores tentações do poder, que corrompe e atrai os corrompidos. Por outro lado, o realismo mágico começa a emergir na sua obra, com sentido imagético que não esquece a tradição africana e o culto da compreensão dos mitos – marcado de algum modo pela desilusão. E o tema policial associa-se à crítica do contexto internacional e às ameaças de dependência. O mundo dominado pelas superpotências, os interesses dos grandes blocos económicos, a cegueira relativamente às desigualdades e às injustiças, eis o que encontramos como pano de fundo da procura de descobrir os sintomas de uma doença política, económica e social…

 

QUE UTOPIA?

Oiçamos afinal, o escritor num momento chave de “A Geração da Utopia”: “Isso de utopia é verdade. Costumo pensar que a nossa geração se devia chamar geração da utopia. (…) Pensávamos que íamos construir uma sociedade justa, sem diferenças, sem privilégios, sem perseguições, uma comunidade de interesses e pensamentos, o Paraíso dos cristãos, em suma. A um momento dado, mesmo que muito breve nalguns casos, fomos puros, desinteressados, só pensando no povo e lutando por ele. E depois, tudo se adulterou, tudo apodreceu, muito antes de se chegar ao poder. Quando as pessoas se aperceberam que mais cedo ou mais tarde era inevitável chegarem ao poder, cada um começou a preparar as bases de lançamento para esse poder, a defender posições particulares, egoístas. A utopia morreu. E hoje cheira mal, como qualquer corpo em putrefação. Dela só resta um discurso vazio”. A lucidez do crítico está perante nós. E lendo com atenção, poderemos entender por que razão o sentido crítico de «Sua Excelência, de Corpo Presente» corresponde a uma exigência talvez paradoxal – a de não abandonar o sentido crítico, a de compreender as razões da sociedade imperfeita e a de prosseguir um caminho de emancipação individual mercê de um desenvolvimento comum. Para Pepetela: “Será muito cedo para lançar foguetes, mas não se poderá negar haver uma ‘brisa nova’ soprando nas nossas faces. Que as flores tenham oportunidade de desabrochar e que não percamos (nós continente, nós país) o comboio da modernidade e do progresso, que parece estar ao alcance da mão, é o meu desejo”.

 

Guilherme d'Oliveira Martins
Oiça aqui as minhas sugestões - Ensaio Geral, Rádio Renascença

 

CARTAS DE CAMILO MARIA DE SAROLEA

 

Minha Princesa de mim:

 

   Eufemisticamente falando, não deixa de ser curioso que a Igreja Católica, contando ainda hoje - estatística e oficialmente - com mil e duzentos milhões de fiéis neste mundo terrenal, pareça mergulhada, aqui e ali, numa espiral descendente da sua afluência, precisamente no decurso de um pontificado (no sentido de fazedor de pontes) que lhe trouxe uma aragem de evangelho e a promessa de cara lavada... Ao escrever-te esta palavra afluência, pergunto-me se, afinal, tal decréscimo - também atribuível, no seio da própria Igreja, a sectores erradamente designados por conservadores ou fundamentalistas (pois não me parece que o que pretendem conservar seja propriamente o espírito evangélico ou o novo mandamento do amor fundador da comunhão eclesial) - não será atribuível à infeliz propensão histórica de uma instituição clerical para tentar assegurar, e garantir, uma praxis temporal do seu dogma, deixando a assembleia dos crentes sem ares do Espírito Santo, da vocação evangélica, da boa nova cuja transmissão Jesus Cristo confiou, precisamente, à confissão fiel dos seus discípulos... O escândalo dramático do abuso sexual de menores, sobretudo pela flagrante injustiça que tem sido a proteção sistemática de clérigos criminosos - cuja contrapartida é, sem atenuante possível, a negação de qualquer reparação devida às vítimas inocentes - não só tem minado a confiança de crentes e incréus na instituição eclesiástica, como, pior ainda, não tem gerado maior diligência na renovação, em espírito evangélico, da Igreja dos fiéis de Jesus Cristo. Pois não basta, nem me parece eficiente, procurar apenas restaurar a "imagem da Igreja", mesmo sem recear tomar as mais drásticas medidas punitivas e também dissuasoras de tal criminalidade... Na verdade, ninguém dotado de lucidez negará que esses casos não se tratam com confissões secretas e absolvições, mas deverão ser acompanhados por clínicos devidamente qualificados (na verdade, deparamos com séries de reincidências maníacas, não com quedas súbitas em tentações exaltantes), nem tampouco que os mesmos e os seus encobridores ou absolvidores devam ser sujeitos à lei penal comum. Repito: qualquer crime de pedofilia, nas igrejas ou fora delas, como qualquer outro abuso ou assédio sexual, ou violência doméstica, é prioritariamente matéria para tratamento médico e psiquiátrico e, também, para ser submetido à jurisdição dos tribunais competentes. Num Estado de direito, não é, não pode ser considerado, primeiro, objeto de qualquer processo canónico, e o seu eventual socorro sacramental nem sequer pode antepor-se ou derrogar a prioritária aplicação do direito positivo da sociedade civil.

 

   É evidente que, nem a fé cristã e seus mandamentos, nem a comunhão dos seus fiéis (que é a Igreja), podem ser responsabilizados por crimes cometidos no seu seio, ainda que os seus agentes e encobridores sejam seus ministros. Mas todos estes, mais os pastores encarregados da vigilância da sua disciplina, não podem ser sujeitos isentos das medidas sanitária e legalmente previstas para tais casos, na sociedade civil, jurídica e politicamente organizada, em que vivem. A Deus o que é de Deus, mas sempre, e em tempo oportuno, a César o que é de César. Cumprida a obrigação para com César, terá então a Igreja tempo e disponibilidade, caridade, para procurar restaurar-se (no sentido de refazer forças) e seguir o caminho da sua vocação. E quiçá encontre muito em que meditar e muito para restaurar (no sentido de repor a pujança original). E não bastará sacudir o pó e acomodar-se.

 

   Outrossim me parece urgente um regresso da inspiração cristã aos ensinamentos elementares de Jesus e ao espírito do Pentecostes que animou a constituição das primeiras comunidades e igrejas cristãs. A Igreja Católica que hoje nos é dado ver é a instituição resultante de uma longa evolução histórica, em que atuaram circunstâncias e fatores demográficos, culturais, económicos, políticos e teológicos, variadíssimos e até contraditórios. Simplificando, Princesa de mim, posso arriscar dizer-te que, basicamente, ela terá tido duas tipologias : 1.- A das igrejas locais, nascidas em comunidades judaicas da Palestina e da diáspora, tal como em populações gentias convertidas no mundo helénico; as tais que, por habitarem o Império Romano, no seio do mesmo comunicavam entre si, ganhando assim uma comum identidade, que a frequência de sínodos e de concílios ia solidificando (pois essas reuniões de epíscopos representantes iam definindo expressões comungantes da fé), tendo naturalmente concordado na primazia do bispo de Roma como sinal de união católica de todas elas. 2.- E, mais tardiamente, vai-se impondo, quer pelo fim das perseguições, quer pela conversão dos imperadores e a proclamação do cristianismo como religião do Império (até em modo de substituição do culto divino do imperador) um modelo mais marcadamente centralizado - e, por isso mesmo, gerador de autoritarismo e de hierarquia, seguindo o exemplo político do próprio Império Romano, sobretudo quando o desmoronar dessa entidade, pelas invasões bárbaras, abriu à Igreja Romana um espaço novo de afirmação. E foi fazendo dela uma instituição "política" e administrativamente organizada, formatada por um padrão que hoje ainda prevalece, a tal ponto que muitas vezes nos esquecemos de que Jesus Cristo não fundou qualquer instituição...

 

   No jeito informal que me permite a nossa comunicação epistolar, e tão somente com o mero propósito de refletirmos conversando, em próximas cartas procurarei descobrir pistas para uma Igreja mais evangélica nos tempos que corremos.

 

Camilo Maria

 

Camilo Martins de Oliveira

TEATROS HISTÓRICOS NO BRASIL

 

Nesta sucessão de evocações e descrições de teatros atuais e teatros históricos de tradição cultural e arquitetónica, recorremos em primeiro lugar a um livro de Luis Norton, editado em 1936, sobre “A Corte de Portugal no Brasil”, assim mesmo denominado.

 

Trata-se efetivamente de um denso e vasto estudo histórico, amplamente fundamentado em numerosos documentos inéditos, designadamente do Arquivo Histórico do Ministério das Relações Exteriores brasileiro, aí incluindo ou complementando-o com vasta correspondência diplomática relativa às negociações do casamento da Arquiduquesa Dona Leopoldina com D. Pedro de Bragança, como bem sabemos futuro Imperador do Brasil e Rei de Portugal.

 

Para além do interesse histórico-diplomático em si, o estudo evoca e descreve a realidade cultural do Rio de Janeiro na época, vista tanto no ponto de vista de criatividade, como de atividades diversas e ainda pelo património subjacente. E é extremamente interessante, na perspetiva cultural e de infraestrutura, a referência vasta e devidamente documentada aos teatros e espetáculos, bem como da vida da corte e da cidade.

 

E mais: quando a Família Real ainda se encontrava no Palácio denominado Real Quinta da Boa Vista, o próprio D. Pedro cantou uma área de ópera, dirigido por Marcos Portugal, a quem se deveu a revisão de musica original ali executada para a Corte. Sobre Marcos Portugal esclarece Luis Norton que “o Rei e toda a Família Real apadrinharam o novo maestro que passara a ser um elemento indispensável na orquestração musical da nova Corte brasileira” (pág. 93).

 

E mais acrescenta que D. Pedro foi ele próprio compositor de mérito, com obras que se destacaram na época e ainda hoje se destacam: cita designadamente “o Te Deum que foi composto para as suas segundas núpcias, uma ópera em português executada em 1832 no Teatro Italiano de Paris, uma sinfonia para grande orquestra, as músicas para o hino constitucional português e para o hino da independência brasileira” (pág. 95).  

 

No que respeita a teatros-espaços/edifícios, temos no livro de Luiz Norton a descrição detalhada dos festejos da aclamação de D. João VI como Rei de Portugal, ocorridos na Corte então sediada no Palácio do Rio de Janeiro, em fevereiro de 1819. E nesse contexto, o autor refere o Real Teatro do Rio de Janeiro, citando e descrevendo um “painel monumental”, em que figurava a Rainha D. Carlota Joaquina.

 

E transcreve um curioso documento da época, que se refere a D. Carlota Joaquina “com dois génios coroando-a de louro e sustentando outras tantas coroas de louro, quantas são as Augustas Princesas com que Sua Majestade tem esmaltado o Trono português e que fazem hoje as delícias de duas nações poderosas”, assim mesmo! (pág. 79).

 

A bibliografia sobre este tema é vastíssima.

 

Acrescente-se ainda que J. Galante de Sousa refere a existência de mais seis teatros no Rio de Janeiro e mais 11 espalhados pelo imenso território brasileiro, isto ao longo da primeira metade do século XIX. (cfr. “O Teatro no Brasil” (ed. Ministério da Educação e Cultura” Rio de Janeiro 1960)

 

E finalmente, remete-se para o vasto estudo sobre a “História do Teatro Brasileiro”, dirigido por João Roberto Faria, e que precisamente assinala e descreve uma vasta atividade de teatro e de teatros, nesta época, e ao longo da vastíssima extensão do Brasil! (ed. SESCSP e Perspetiva - São Paulo 2012).

 

E muito mais haveria a dizer sobre este tema!

 

DUARTE IVO CRUZ

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