CARTAS DE CAMILO MARIA DE SAROLEA
Minha Princesa de mim:
Após poucos dias de canícula, saboreio um agosto mestiço, com janelas semiabertas, para que cá por casa corra também uma refrescante aragem a pedir-nos recosto e leitura amena... Já vai meridiana a manhã, nem dei pelos marcadores do tempo, apenas agora vejo que vão sendo horas de me pôr a cozinhar, serviço doméstico que assumo desde que vim para o campo a tempo inteiro. Mas antes de arregaçar mangas e pôr avental (que não é azul...) quero deixar-te um curioso poema de Du Fu, um dos vates maiores, com o seu tão diferente amigo Li Bai, da poesia da dinastia Tang, como te contava na última carta. Dá-se até o caso de ser essa oitava intitulada Em Dia de Primavera, Pensando em Li Bai... Reza assim, na minha versão portuguesa:
É sem rival a poesia de Li Bai
Nada se compara à sua elevação!
É natural e criativo como Yu Xin,
Majestoso e aéreo como Bao Zhao...
Árvore primaveril, a norte da Wei,
nuvem crepuscular a leste do rio,
quando virá o dia de juntarmos poesia,
Com um jarro de vinho por companhia?
Explica-nos Florence Hu-Sterk, tradutora (chinês-francês) e anotadora deste poema para a edição da Bibliothèque de la Pléiade (Anthologie de la Poésie Chinoise, Gallimard, 2015), que Du Fu presta homenagem a Li Bai comparando-o a dois grandes poetas da era das Seis Dinastias, Yu Xin (513-581) e Bao Zhao (414-466), sendo que o estilo imaginativo deste último muito influenciou Li Bai (que o cita 114 vezes nas suas obras). Diz-nos também que, em 746, Du Fu, árvore primaveril, estaria enraizado em Chang´an, a norte da Wei, e Li Bai a leste do rio azul, errante como nuvem crepuscular...
Mas, ainda que distantes no modo de poetar, quiçá no pensarsentir a vida e a ordem do dever, como diversos foram os seus fados, Li Bai e Du Fu comungam no mesmo gosto da contemplação como intuição de tudo, e na partilha desta pela amizade. Pois que contemplar o ser e a sua circunstância não é modo de fuga, antes é ir mais ao fundo do risco que a surpresa traz. Como neste poema de Du Fu, que traduzo duma versão francesa de François Cheng, ilustrada por caligrafia de Fabienne Verdier (Albin Michel, Paris, 2000):
Sozinho me delicio
com o desabrochar das flores
à beira rio
À beira rio,
o infinito
milagre das flores.
E se a outrem me confiasse
para não dar em louco?
Vou a casa do vizinho
meu companheiro de vinho:
mas saiu para ir beber,
faz já dez dias.
Deixou cama por fazer...
Não é que eu ame as flores
para morrer por elas...
Eis o meu receio:
beleza que se apaga,
velhice que se achega!
Ramos carregados:
queda de flores aos cachos!
Tenros rebentos se concertam
para suavemente se abrirem...
Livre e desapegado, até boémio, como era e sempre escolhia ser, Li Bai, por muitos admiradores, protetores e amigos que granjeasse, não escapou a momentos difíceis de ultrapassar, a perseguições e exílios, já que os poderes não apreciam independências do s espíritos... Em dois poemas, quais cartas ditadas por sonho amigo, Du Fu recorda Li Bai, inquieta-se e pergunta por ele, deseja-lhe a glória para além da morte: Meng Li Bai er shou, ou, em português, Sonhando com Li Bai.
Separados pela morte, soluços engolidos;
separados pela vida, tormento infinito.
Do sul do Rio, roído pela febre,
sem qualquer notícia do viajante banido,
esse velho amigo me aparece em sonhos,
sabendo quanto e quanto penso nele.
Assim, agora preso numa rede,
como conseguiste libertar as asas?
É longa a estrada, incomensurável.
Possa a tua alma ser a de quem vive,
a vir por bosques de bordos glaucos,
atravessando portagens de fronteiras negras.
Cai a lua e inunda as traves do teto,
e logo imagino o teu rosto iluminado.
Águas profundas, vagas poderosas,
possam poupar-te os dragões marinhos!
Leves se seguem as nuvens pelo ar,
mas não trazem de volta o viajante.
Por três noites seguidas sonhei contigo,
sinal da tua profunda amizade.
Cada partida parecia perturbar-te,
e lamentavas as durezas da viagem.
Estavam tão bravios os lagos e os rios...
Receavas perder o rumo ao barco.
Ao chegar, coçaste a cabeça encanecida,
quiçá desiludido pela ambição de uma vida.
A capital foi invadida por dignitários,
só tu te vergavas ao peso de cismas.
Quem te disse que a justiça divina é clemente?
Afinal, já velho, cobriram-te de vexames.
Fama que dure mil, dez mil outonos,
Só depois de morto a ganharás!
A intemporalidade universal da amizade e do teor destes poemas ocorreu-me esta manhã, ao sair da cama, quando reli esta frase de uma carta de Hannah Arendt à sua amiga Mary McCarthy, com data de 10 de março de 1975, na página que tinha deixado aberta à cabeceira: Sempre acreditei que somos o que vivemos...
Camilo Maria
Camilo Martins de Oliveira