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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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CRÓNICA DA CULTURA

 

A garrafa de cristal

 

A porta ao fundo do corredor estava sempre fechada e nunca nenhuma criada a abria para ir limpar aquela que era uma sala comum aberta aos natais.

 

Um dia, atrevi-me e abri a porta espreitando lá para dentro transida de medo. Desconhecia o segredo e isso criava em mim um imaginar de coisas ruins, pelo estranho respeito que todos tinham pela porta fechada. Atrevi-me, e, vi uma sala num lusco-fusco de janelas quase fechadas e um brilho estranho em cima de um dos aparadores.

 

Fechei a porta e desapareci dali. Depois comecei a reparar que a Tia Carolina cada vez que passava junto à porta colocava a mão na chave da fechadura e puxava-a para si, como se estivesse a tirar alguma duvida de que a porta pudesse não estar bem fechada. A avó fazia o mesmo. Depois pela hora do jantar quando o dono da casa chegava, todos ficavam atentos ao seu percurso até à saleta. Este “todos” abrangia as criadas, sabedoras do segredo. Era visível que se sustinha a respiração até ele passar pela porta sempre fechada da sala e rumar à saleta. Entendi, então, que ele nunca deveria abrir a porta e que se o fizesse a casa explodiria em discussões e tremuras de vidas não ditas.

 

Lembrei-me do brilho que vira. Ia criando a ideia de que o problema era aquele brilho branco e avermelhado, o que continha o mistério. Um dia, num repente, abri a porta e entrei e fechei-a atras de mim num ápice. Olhei para o brilho da garrafa bem de frente e percebi que era uma garrafa de cristal esguia e alta com tons avermelhados e brancos. Ao seu lado uma salva de prata que lhe garantia estatuto. Percebi tudo. Era uma lâmpada de Aladino desta vez em formato de garrafa. Realidade preciosa; mas qual a razão que impedia o dono da casa e afinal todos nós de a vermos, mesmo que desconhecêssemos os seus poderes? por desconhecimento do código que a massajasse no angulo certeiro?

 

A tia deu-me um grito

 

Que fazias dentro da sala? Não sabes que não é local de brincadeiras?

 

Fui ver a garrafa

 

Ah a garrafa! Dentro dela existe a emanação de uma alma, não sabias? De dentro dela saem sombras se a luz do sol as acordar. Nunca mais te quero ver ali.

 

Senti-me aniquilada como um grão de areia quando pisado. Escapei-me para o meu quarto e enrolei-me na cama entre os cobertores, mas o frio não passava. De repente tudo naquela casa era dividido por criaturas e destinos. De repente entendi que as perguntas decisivas nunca as poderia fazer ali. Ali havia inclemência, ninguém saía da escuridão para a vida. Só a garrafa acedia a entender a sua força, o impacto do seu tempo íntimo. Corri com Aladino e convoquei o olimpo. E exatamente naquele momento ouvi a chegada do dono da casa. Ouvi-o a dar a volta à fechadura da porta da sala comum. Perguntou num grito ameaçador e seco, onde estava a garrafa.

 

Abri a porta do meu quarto e ainda vi a avó sair quase correndo para a rua, submissa, de cabeça inclinada para o chão. Saía só com o que tinha vestido e era final da tarde da chegada de um inverno. A tia Carolina respondia aos gritos do homem da casa, gritando-lhe também e recordando-lhe a sua inocência total no desaparecimento da garrafa e que a culpa era da avó que tinha acabado de provar essa mesma culpa, fugindo.

 

Pela manhã, ainda em robe, a tia entrou no meu quarto e inquiriu

 

Não sabe que tem de ir buscar a avó? Levanta-se. Vá. Ela deve estar à espera, leve-lhe o casaco dela e não entre na pensão onde ela está. Diga à porta que a vai buscar e nada mais. Já sabe onde é.

 

Viemos as duas quase sempre caladas. Eu e a avó. Junto à entrada da nossa casa eu disse-lhe

 

Não tenha medo da garrafa. Ela é falsa.

 

Entrei em casa com a avó que se dirigiu a chorar para a saleta.

 

Entendi que o tempo era enfim chegado. O tempo de descobrir a porta de acesso a outro reino distante daquela casa tinha chegado e que forçaria todas as sortes: a decisão ancorara-se no meu espirito. A soluçar, compreendi que um poema muito tempo ao abandono pode sofrer a erosão do tempo de vida e envolver-se no túmulo da garrafa de cristal.

 

Levantou-me uma grua firme e, tendo ali ficado, fugi para sempre.

 

Teresa Bracinha Vieira