CARTAS DE CAMILO MARIA DE SAROLEA
Minha Princesa de mim:
A questão do celibato voluntário tem sido obnubilada pela obsessão com a obrigatoriedade do celibato eclesiástico. Esta padece, pela sua própria natureza obcecante, de falta de racionalidade nas aproximações opostas, ou contrárias, de que é objeto: há quem defenda o princípio brandindo pretensas fundamentações bíblicas, teológicas, históricas ou, simplesmente, pragmáticas (maior liberdade e independência na dedicação ao ministério religioso), como há os que se insurgem contra a imposição de um mandamento contra natura e as fatais consequências (pedofilia, etc.) de tal aberração.
Já várias vezes te escrevi, Princesa de mim, que não considero pertinentes os argumentos de uns, nem me parece que a pretensa indignação de outros assente em aceitáveis razões erga omnes. Isto é: não encontro justificação plausível para o carácter coercivo do celibato de quem exerça ou pretenda exercer um ministério eclesial, como tampouco creio que o abuso de menores, o desvio de mulheres casadas, ou a frequentação de bordéis sejam o resultado necessário e exclusivo de falta de alívio conjugal. Por um lado, sei de um número crescente de pastores casados - e de pastoras! - cuja generosa devoção ao serviço das suas igrejas é admirável, tal como, por outro lado, infelizmente sei de pessoas casadas que violam menores, e, sendo quer homo quer hétero sexuais, se viciam em "aventuras" extraconjugais ou se comprazem em encontros remunerados e em "partouses"...
É precisamente porque somos livres que somos responsáveis, isto é, que necessariamente devemos responder pelos motivos e consequências dos nossos atos. Não é por alguém ter nascido homossexual que será incontrolavelmente pederasta ou esteticamente narciso; nem por ser hétero galifão que deverá imparavelmente "iniciar" meninas ou "consolar" senhoras mal desposadas por outrem. Antigo conselho do bom senso comum continua a recordar: "Haja juízo!"
Ou, como prefiro dizer, evocando a definição agostiniano-tomista de prudência: procuremos sempre o amor sagaz. Este deverá inspirar a revisão de conceitos obsessivos e decorrentes modos normativos que a Igreja Católica ainda hoje mantém relativamente à sexualidade. Pretender que "abstinência sexual é exigida pela lei de Cristo" não só revela fraco convívio com a mensagem evangélica, como desconhecimento do plano bíblico do Criador, além de poder indiciar temores insanos das próprias e naturalíssimas pulsões sexuais. Dito isto, repito o que tantas vezes te confidenciei: acredito que haja vocações para a castidade como estado de vida, tais sendo, todavia, aspirações a uma forma muito própria de maior liberdade interior, cuja realização, na tradição cristã, se inicia com os primeiros cenobitas. E volto a recordar-te que, em todos os apelos de Jesus registados nos evangelhos, a quem quiser segui-lo totalmente, não surge qualquer referência ao celibato ou à abstinência sexual, mas sempre se refere o abandono dos bens materiais e terrenos, a pobreza, esta, sim, evidentemente constitutiva de liberdade interior. Para evitar repisar discursos meus, inscritos em cartas anteriores - e, sobretudo, para te trazer uma excelente análise desta questão do celibato feita pelo filósofo ateu e homossexual francês Michel Foucault (1926-1984), cujo conhecimento dos escritos patrísticos cristãos surpreende pela vastidão e profundidade - traduzo seguidamente alguns trechos do capítulo Virginité et Connaissance de Soi, do 4º volume, postumamente editado este ano apenas, com o título Les aveux de la chair, da sua obra Histoire de la Sexualité (Bibliothèque des Histoires, Gallimard, Paris, 2018). Trata-se de um longo comentário dos capítulos que João Cassiano (século IV), nas suas Instituições e nas Conferências dedica às questões da pureza na existência monástica. No mundo hodierno que é o nosso, todo esse discurso poderá soar estranho. Todavia, refletindo, talvez nele encontremos um ar cheio de frescura, bem diferente do ambiente sórdido com que, bem-pensantes, moralmente corretos ou libertinos envolvem qualquer debate sobre assuntos de sexo. Haja arejo!
Cassiano raramente emprega a palavra virgindade. Surge duas vezes nas "Conferências" e, em ambos os casos, em oposição ao casamento. A propósito de Elias e Jeremias que «não querendo servir-se do casamento, preferiram perseverar na virgindade». E a respeito das virgens loucas e das virgens prudentes, umas e outras ditas virgens por não terem esposo, mas as primeiras apenas praticando a virgindade do corpo. É o termo castidade - castitas - que em Cassiano cobre a maioria das questões ou dos temas que Gregório de Nissa, Basílio de Ancira, Crisóstomo ou, de um modo geral os Padres gregos referiam à prática da virgindade e às regras interiores a esse estado.
Tal como os seus predecessores haviam procedido quanto à virgindade, Cassiano diferencia a continência da castidade. Nas "Instituições", assenta essa distinção no uso tradicional das palavras gregas e, simultaneamente, marca a hierarquia de valores entre os dois termos: «Não negamos que, nas comunidades, também se encontram homens continentes, e reconhecemos que tal pode facilmente acontecer. Na verdade, trata-se de duas coisas diferentes ser continente - isto é "enkratés" - e ser casto, passando assim a esse estado de integridade ou de incorrupção a que chamamos "hagnos", virtude que só é concedida àqueles que permanecem virgens na sua carne e no seu espírito, como foram Jeremias e Daniel.» Entre as duas noções há a diferença do negativo para o positivo. De um lado, abstenção exterior de sexo; do outro, um movimento interior do coração. «A incorrupção da carne reside menos na privação de mulher do que na integridade do coração que guarda sem corrupção a sua santidade por temor a Deus ou amor da castidade»...
... Para se chegar à castidade, diz Cassiano num texto notável, «deve cada qual inflamar-se com o mesmo desejo e o mesmo amor que encontramos no avarento devorado pela cupidez, no ambicioso que labora a sede de honrarias, no homem arrebatado pela violência intolerável da sua paixão por uma beldade feminina, quando, no ardor de excessiva impaciência, querem saciar o seu desejo.»
Apesar de bastantes pontos em comum com os grandes teóricos da virgindade no século IV, a distinção que Cassiano estabelece entre continência e castidade revela, de facto, uma paisagem muito diferente, dominada pelas noções de pureza de coração e combate espiritual que ganham sentido na especificidade da vida monástica, em que se inspira.
Vocação singular de um projeto especial de vida, aliás de origem oriental, como testemunham hinduístas e budistas, ou também, no judaísmo do tempo de Jesus, a comunidade de Qumran. Ainda que se diferenciem entre eles por outros fatores próprios a cada um dos universos ascéticos ou religiosos. A designação "monaquismo", como a de "monge", deriva do grego "monachos", que indica quem escolhe a solidão, ou a separação do "mundo" para se consagrar à oração e exercícios espirituais e ascéticos que o aproximem do imaterial, do invisível, do Nirvana, de Deus. No ocidente europeu, os monges surgem na 2ª metade do século IV, vindo, entre outros, no sul de França, Jean Cassien (360-430), ou João Cassiano, a instigar, na Provença, em Leiris e Marselha, a formação de comunidades ascéticas e a escrever textos muito influentes sobre a espiritualidade cristã: as Instituições Cenobíticas e as Conferências. Nestas duas obras se encontram tratados os temas que, de acordo com Nicole Lemaître, professora na Sorbonne e no Institut Catholique de Paris, constituirão, durante séculos, os arquétipos fundamentais do monaquismo: forma perfeita da vida cristã, na senda de Cristo, pelo qual o monge a tudo renuncia. Num mundo onde as perseguições violentas se tinham tornado raras [o cristianismo já era religião do Império Romano] a vida monástica será o substituto do martírio sangrento dos primeiros séculos, na medida em que implicava mortificação do corpo e da consciência, luta contra os demónios e suas tentações, perseverança até à vitória final.
Já a instituição do chamado sacerdócio católico, tal como hoje a conhecemos, é bem mais tardia, remonta ao século XII, com a fixação do direito canónico que faz do padre - e volto a citar Nicole Lemaître - aquele que recebeu o sacramento da ordem, pelo qual lhe foi remetido, por Deus e pela Igreja, o poder de batizar, abençoar, celebrar, e absolver os pecados. Doravante, e por muito tempo, esse estatuto permitiu-lhe dispor de privilégios, em especial o do foro eclesiástico que o protegia das justiças seculares. O padre torna-se celibatário, e modelo do cristão, a partir do século XI. Toda uma defesa ideológica da sua perfeição pessoal acompanhará a sua excecionalidade... na promoção eclesial de uma sociedade perfeita.
Foi-se então buscar à exceção que sempre fora a vocação monástica um elemento normativo da condição de servidor do ministério eclesial. Ora, no primeiro milénio, as coisas eram bem diferentes: na origem da Igreja, o enquadramento das comunidades era assegurado por diversos ministros, e o ministro encarregado dos serviços materiais e da assistência (diácono), servidor de todos (Mateus, 10, 42) exercia um autêntico apostolado, não era, de modo algum, um separado, uma exceção. Mas as primeiras comunidades também são hierárquicas: têm anciãos (presbíteros) à cabeça (Atos, 14,23). São eles que vigiam cada Igreja e têm por missão velar pelo rebanho de Deus (Atos, 20, 28; I Pedro, 5, 4). Passadas as primeiras gerações, estabelece-se uma hierarquia a três níveis: um bispo (epíscopo), pastor e presidente da comunidade, rodeado de presbíteros assistidos por diáconos. Não é necessário percorrer todas as etapas [isto é: não há carreiras eclesiásticas] - São Cipriano tornou-se bispo sem ter sido padre nem diácono. Na verdade, o ministério põe-os a todos ao serviço do sacerdócio de Cristo e, como sucessores dos Apóstolos, qualifica-os para serem intendentes de Deus. Recebem a imposição das mãos, mas prosseguem a sua vida normal, casam-se e exercem uma profissão.
Estarás lembrada, Princesa de mim, de que, em carta talvez já distante, eu te falava de conselhos de São Paulo, no sentido de serem os ministros escolhidos de preferência entre bons pais de família, pois estes já deram provas de saber guiar um "rebanho". Revogar a obrigatoriedade do celibato eclesiástico parece-me ser questão do foro do bom senso, tal como a ordenação de mulheres deve ser encarada no contexto cultural das nossas sociedades hodiernas. Além de que já passou o tempo em que, cautelarmente, se escolhiam entre eunucos os bons servidores. Sem prejuízo de continuar a haver quem possa escolher um caminho que o próprio Jesus Cristo enunciou, avisando logo que seria radical e que poucos compreenderiam agora o que é ser eunuco por amor de Deus. Todavia quem responde a uma vocação à vida monástica ou religiosa, não o fará por contemptatio mundi, mas porque tal separação o leva, no seu próprio sacrifício pessoal, à misteriosa presença de Deus. Enquanto que os ministros do culto, da palavra, dos sacramentos, homens ou mulheres, são servidores escolhidos entre aqueles que permanecem vivendo no mundo humano.
Referindo-se a São Cipriano (século III), que acima te recordo, frei Yves Congar escreve: Para o cristianismo antigo, a realidade primeira é a ecclesia. Ora, esta palavra, diferentemente da palavra "Igreja" tal como hoje a usamos, significa a comunidade cristã, a assembleia ou unidade dos cristãos. São Cipriano diz: a Igreja é o povo unido ao seu pontífice e o rebanho que permanece junto ao seu pastor. Por aí deveis compreender que o bispo está na Igreja e a Igreja no bispo.
É essa ecclesia toda inteira que exerce a maternidade espiritual, pela sua caridade, pela sua unidade, pela sua oração, pela sua penitência; é ela mesmo que é o autêntico e adequado sujeito das ações santas e santificantes. E eis que encontramos esta mesma compreensão da ecclesia nos textos litúrgicos, expressão da Tradição: a ecclesia é assembleia de irmãos realizada por um ato do Senhor e pela sua presença entre eles. A liturgia antiga não conhece um eu separado do nós comunitário: o celebrante, isto é, o presidente da assembleia e chefe da comunidade, fala ali em nome de todos e a todos estando unido. [Cf. Yves Congar, o.p., L´Église e Pour une Église Servante et Pauvre, Les Éditions du Cerf, Paris, 1963].
Deixo-te aqui, Princesa de mim, estas reflexões sobre a Igreja para que, meditando-as, possamos juntar mais uma achega circunstancial ao debate, tantas vezes descontextualizado, acerca da pedofilia e celibato eclesiástico, etc., etc. ... Até arrisco um olhar diferente: tal como não parece provado (longe disso!) que a Igreja Católica tenha, no seu seio, o exclusivo ou sequer a maioria dos casos de abuso de menores, também não creio que se possa estabelecer uma relação direta de causa a efeito entre celibato e violência sexual. Na verdade, nas notícias ou revelações de abusos que têm vindo a lume, o pecado ou responsabilidade da instituição eclesial descobre-se e encontra-se sobretudo no seu encobrimento e na recusa ou reticência de entrega às autoridades judiciais competentes (falando claramente, sem rodeios e sem prejuízo das medidas canónicas, isto é, do foro eclesiástico, que também devam ser tomadas), autoridades essas legitimamente constituídas pelo poder civil dos Estados de direito em que vivemos. Que as "hierarquias" religiosas metam bem nas suas cabeças que qualquer crime deve ser denunciado e entregue ao processo inalienável e sem exceções dos tribunais dependentes do poder judicial do Estado.
Por outro lado, já será tempo de nós, católicos, revermos alguns dos preconceitos que guardamos quanto à função clerical ou, mesmo, à natureza da própria instituição. Os trechos de testemunhos e reflexões que te deixei acima podem ajudar-nos a perguntar se, abreviando, o padre é mesmo uma exceção consagrada, e se, até por isso, deverá ser assexuado e renunciar a constituir uma família, tal como o podem fazer magistrados, médicos, professores, militares, missionários leigos... E já agora, não poderão ser mulheres, como tantas há nessoutras profissões e missões pelo bem comum?
Creio que é no 2º volume da sua Histoire de la sexualité (L´ Usage des Plaisirs) que Michel Foucault escreve estas seguintes linhas que eu próprio, que sempre quis ser filósofo, repito pensando que filósofos, afinal, com alguma curiosidade e esforço, todos podemos ser:
Mas, aliás, o que é a filosofia - quero dizer a atividade filosófica - se não o trabalho crítico do pensamento sobre si mesmo? E se, afinal, não consistirá, em vez de legitimação do que já sabemos, no empreendimento de saber como e até onde poderemos pensar de outro modo?
Camilo Maria
Camilo Martins de Oliveira