CARTAS DE CAMILO MARIA DE SAROLEA
Minha Princesa de mim:
Eufemisticamente falando, não deixa de ser curioso que a Igreja Católica, contando ainda hoje - estatística e oficialmente - com mil e duzentos milhões de fiéis neste mundo terrenal, pareça mergulhada, aqui e ali, numa espiral descendente da sua afluência, precisamente no decurso de um pontificado (no sentido de fazedor de pontes) que lhe trouxe uma aragem de evangelho e a promessa de cara lavada... Ao escrever-te esta palavra afluência, pergunto-me se, afinal, tal decréscimo - também atribuível, no seio da própria Igreja, a sectores erradamente designados por conservadores ou fundamentalistas (pois não me parece que o que pretendem conservar seja propriamente o espírito evangélico ou o novo mandamento do amor fundador da comunhão eclesial) - não será atribuível à infeliz propensão histórica de uma instituição clerical para tentar assegurar, e garantir, uma praxis temporal do seu dogma, deixando a assembleia dos crentes sem ares do Espírito Santo, da vocação evangélica, da boa nova cuja transmissão Jesus Cristo confiou, precisamente, à confissão fiel dos seus discípulos... O escândalo dramático do abuso sexual de menores, sobretudo pela flagrante injustiça que tem sido a proteção sistemática de clérigos criminosos - cuja contrapartida é, sem atenuante possível, a negação de qualquer reparação devida às vítimas inocentes - não só tem minado a confiança de crentes e incréus na instituição eclesiástica, como, pior ainda, não tem gerado maior diligência na renovação, em espírito evangélico, da Igreja dos fiéis de Jesus Cristo. Pois não basta, nem me parece eficiente, procurar apenas restaurar a "imagem da Igreja", mesmo sem recear tomar as mais drásticas medidas punitivas e também dissuasoras de tal criminalidade... Na verdade, ninguém dotado de lucidez negará que esses casos não se tratam com confissões secretas e absolvições, mas deverão ser acompanhados por clínicos devidamente qualificados (na verdade, deparamos com séries de reincidências maníacas, não com quedas súbitas em tentações exaltantes), nem tampouco que os mesmos e os seus encobridores ou absolvidores devam ser sujeitos à lei penal comum. Repito: qualquer crime de pedofilia, nas igrejas ou fora delas, como qualquer outro abuso ou assédio sexual, ou violência doméstica, é prioritariamente matéria para tratamento médico e psiquiátrico e, também, para ser submetido à jurisdição dos tribunais competentes. Num Estado de direito, não é, não pode ser considerado, primeiro, objeto de qualquer processo canónico, e o seu eventual socorro sacramental nem sequer pode antepor-se ou derrogar a prioritária aplicação do direito positivo da sociedade civil.
É evidente que, nem a fé cristã e seus mandamentos, nem a comunhão dos seus fiéis (que é a Igreja), podem ser responsabilizados por crimes cometidos no seu seio, ainda que os seus agentes e encobridores sejam seus ministros. Mas todos estes, mais os pastores encarregados da vigilância da sua disciplina, não podem ser sujeitos isentos das medidas sanitária e legalmente previstas para tais casos, na sociedade civil, jurídica e politicamente organizada, em que vivem. A Deus o que é de Deus, mas sempre, e em tempo oportuno, a César o que é de César. Cumprida a obrigação para com César, terá então a Igreja tempo e disponibilidade, caridade, para procurar restaurar-se (no sentido de refazer forças) e seguir o caminho da sua vocação. E quiçá encontre muito em que meditar e muito para restaurar (no sentido de repor a pujança original). E não bastará sacudir o pó e acomodar-se.
Outrossim me parece urgente um regresso da inspiração cristã aos ensinamentos elementares de Jesus e ao espírito do Pentecostes que animou a constituição das primeiras comunidades e igrejas cristãs. A Igreja Católica que hoje nos é dado ver é a instituição resultante de uma longa evolução histórica, em que atuaram circunstâncias e fatores demográficos, culturais, económicos, políticos e teológicos, variadíssimos e até contraditórios. Simplificando, Princesa de mim, posso arriscar dizer-te que, basicamente, ela terá tido duas tipologias : 1.- A das igrejas locais, nascidas em comunidades judaicas da Palestina e da diáspora, tal como em populações gentias convertidas no mundo helénico; as tais que, por habitarem o Império Romano, no seio do mesmo comunicavam entre si, ganhando assim uma comum identidade, que a frequência de sínodos e de concílios ia solidificando (pois essas reuniões de epíscopos representantes iam definindo expressões comungantes da fé), tendo naturalmente concordado na primazia do bispo de Roma como sinal de união católica de todas elas. 2.- E, mais tardiamente, vai-se impondo, quer pelo fim das perseguições, quer pela conversão dos imperadores e a proclamação do cristianismo como religião do Império (até em modo de substituição do culto divino do imperador) um modelo mais marcadamente centralizado - e, por isso mesmo, gerador de autoritarismo e de hierarquia, seguindo o exemplo político do próprio Império Romano, sobretudo quando o desmoronar dessa entidade, pelas invasões bárbaras, abriu à Igreja Romana um espaço novo de afirmação. E foi fazendo dela uma instituição "política" e administrativamente organizada, formatada por um padrão que hoje ainda prevalece, a tal ponto que muitas vezes nos esquecemos de que Jesus Cristo não fundou qualquer instituição...
No jeito informal que me permite a nossa comunicação epistolar, e tão somente com o mero propósito de refletirmos conversando, em próximas cartas procurarei descobrir pistas para uma Igreja mais evangélica nos tempos que corremos.
Camilo Maria
Camilo Martins de Oliveira