A FORÇA DO ATO CRIADOR
O elogio da rua, no plano de Berlage.
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O elogio da rua, no plano de Berlage.
1. A perseguição aos cristãos foi particularmente feroz durante a Revolução Cultural no tempo de Mao. Mas a situação está a mudar de modo rápido e surpreendente. Desde 1976, com a morte de Mao, as igrejas começaram a reabrir e há quem pense que a China poderá tornar-se mais rapidamente do que se julgava não só a primeira potência económica mundial mas também o país com maior número de cristãos. “Segundo os meus cálculos, a China está destinada a tornar-se muito rapidamente o maior país cristão do mundo”, disse Fenggang Yang, professor na Universidade de Purdue (Indiana, Estados Unidos) e autor do livro Religion in China. Survival and Revival under Communist Rule (Religião na China. Sobrevivência e Renascimento sob o Regime Comunista). Isso “vai acontecer em menos de uma geração. Não há muitas pessoas preparadas para esta mudança assombrosa”.
Cresce sobretudo a comunidade protestante. De facto, a China tinha apenas um milhão de protestantes. Em 2010, já tinha mais de 58 milhões. Segundo Yang, esse número aumentará para cerca de 160 milhões em 2025, o que faria com que a China ficasse à frente dos Estados Unidos. Em 2030, a população cristã total da China, incluindo os católicos, superará os 247 milhões, acima do México, Brasil e Estados Unidos. “Mao pensava que poderia acabar com a religião. E julgava ter conseguido”, diz Yang. “É irónico pensar que o que fizeram foi fracassar completamente.”
A situação parece preocupar as autoridades chinesas, que, por outro lado, não quererão 70 milhões de cristãos como inimigos.
2. Os católicos serão uns 12 milhões. Desde 1951 que a China não tem relações diplomáticas com o Vaticano. Mas o Governo chinês felicitou Bergoglio a seguir à sua eleição como novo Papa e exprimiu o desejo de que, sob o pontificado de Francisco, o Vaticano “elimine os obstáculos”, para uma aproximação. Francisco declarou por várias vezes não só o seu apreço pelo povo chinês como o seu desejo de visitar Pequim. Por exemplo, disse aos jornalistas: “Estamos próximos da China. Enviei uma carta ao Presidente Xi Jinping quando foi eleito, três dias depois de mim. E ele respondeu-me. Há contactos. É um grande povo do qual gosto muito.” E que está à espera de um sinal para uma visita.
O que é facto é que, aquando das viagens de Francisco à Ásia, a China, pela primeira vez, abriu o espaço aéreo para que um Papa pudesse sobrevoá-la. Não se pode esquecer que Francisco é jesuíta e que o jesuíta Matteo Ricci, cujos conhecimentos científicos deixaram o imperador deslumbrado, juntamente com Marco Polo são os dois estrangeiros recordados por Pequim entre os grandes vultos da China. Aliás, a inculturação do cristianismo na cultura e religião chinesas poderia ter-se dado nos séculos XVI-XVII, por influência precisamente do génio de Ricci, não fora a cegueira do Vaticano, que interveio desgraçadamente, impedindo essa síntese entre o Evangelho e a cultura milenar chinesa.
3. Francisco é um jesuíta da estirpe de Ricci, que admira: o processo da sua beatificação avança e a frase “venho dos confins do mundo” será citação de Ricci, que dizia ter passado a vida nos “confins do mundo”. Francisco é também considerado um “animal político”, que sabe de geoestratégia, acompanhado pelo secretário de Estado, cardeal Pietro Parolin, um diplomata de primeira água, como disse o Papa, no regresso da sua viagem aos países bálticos, respondendo às perguntas dos jornalistas sobre o acordo assinado dias antes entre o Vaticano e Pequim: “o Secretário de Estado que é um homem muito devoto, o cardeal Parolin, que tem também uma especial devoção pela observação. Estuda todos os documentos, até nos pontos, nas vírgulas e acentos. Isto dá-me uma segurança muito grande.” Foi um acordo que durou anos de negociações e é sabido que, acrescentou o Papa, “quando se faz um acordo de paz ou uma negociação, as duas partes perdem alguma coisa. Esta é a lei. As duas partes, e continua-se. E isto continuou. Dois passos para a frente, um para trás, dois para a frente, um para trás. Depois, passaram meses sem falarmos e depois chegou o tempo de falar, à maneira do tempo chinês, lentamente. Esta é a sabedoria, a sabedoria dos chineses.” Não houve improvisação, mas um caminho que durou a percorrer “mais de dez anos”.
Francisco fez questão de sublinhar que assumiu a total responsabilidade pelo que se passou: “Fui eu que assinei o acordo.” Em que consiste esse acordo de 22 de Setembro passado? Antes, havia a Igreja Patriótica, com bispos nomeados pelo Governo, e a Igreja clandestina, com bispos nomeados e fiéis ao Papa. Agora, “há um diálogo sobre eventuais candidatos. A coisa faz-se em diálogo, mas quem nomeia é Roma, o Papa. Isto é claro.” Há uma consulta entre os fiéis para o candidato a bispo, o Governo aprova, mas o Papa tem o direito de veto, havendo neste caso a necessidade de encontrar outro candidato.
Sucede, pois, que o Papa reconheceu sete bispos da Igreja Patriótica, que ficaram, em igualdade com os outros, em comunhão com o Papa. É compreensível que alguns bispos e muitos católicos que foram perseguidos e tiveram de viver na clandestinidade se tenham sentido um pouco traídos e sofram. Para esses Francisco teve também uma palavra: “Penso na resistência, nos católicos que sofreram. É certo, e sofrerão, num acordo, há sempre sofrimento, mas eles têm uma fé grande, e escrevem, fazem chegar mensagens. Sim, a fé martirial desta gente avança. São grandes.” E, numa alusão a Viganó, que o acusou na célebre carta bem conhecida, Francisco contou: “Quando saiu aquele famoso comunicado de um ex-núncio, os episcopados do mundo inteiro escreveram-me, dizendo de modo claro que se sentiam próximos, que rezavam por mim... Os fiéis chineses também escreveram e a assinatura desse escrito era do bispo, digamos, da Igreja tradicional católica e do bispo da Igreja Patriótica, os dois juntos e os fiéis juntos com eles. Para mim foi um sinal de Deus. Rezamos pelos sofrimentos de alguns que não entendem ou que têm às suas costas muitos anos de clandestinidade.”
O primeiro resultado visível deste acordo provisório é a presença no Sínodo dos Bispos sobre os jovens, a decorrer em Roma, de dois bispos da República Popular da China: um da Igreja tradicional e outro da Igreja Patriótica. Na Missa de abertura do Sínodo, ao referir os seus nomes, um nomeado por Bento XVI e outro que pertencia à Igreja Patriótica, Francisco comoveu-se: “Hoje, pela primeira vez, estão também aqui connosco dois irmãos bispos da China continental. Demos-lhes as nossas afectuosas boas vindas: graças à sua presença, a comunhão de todo o episcopado com o Sucessor de Pedro é ainda mais visível.”
4. Poderia Francisco culminar o seu pontificado com uma visita à China? No quadro da reconfiguração geoestratégica daquela região — pense-se nos encontros entre o Presidente Donald Trump e o Presidente Kim Jong-un, no convite deste ao Papa para uma viagem à Coreia do Norte, nas próximas viagens de Kim a Seul e a Moscovo, na visita próxima do Presidente da China, Xi Jinping a Pyongyang... — e da importância deste acordo sobre um tema que era a principal razão de conflito entre Pequim e o Vaticano, não se pode excluir essa possibilidade ou até, diz-se, probabilidade.
Mas haverá ainda outro longo caminho a percorrer. O bispo de Hong Kong, Michael Yeung, apoiou — “Eu disse: Santo Padre, avance, não tenha medo, mas seja cauteloso” — e apoia este acordo com a China, mas adverte: “Não creio que a assinatura deste acordo provisório signifique a solução de tudo. É preciso tempo, um par de anos, para ver.” Acrescentou que “um acordo provisório não poderia ter parado a opressão” dos católicos chineses por parte do regime comunista nem tão-pouco “ter evitado que as igrejas sejam destruídas” ou que “os jovens sejam proibidos de ir à Missa”. “Estas coisas exigirão tempo para serem resolvidas”. De qualquer forma, pede que daqui em diante o Vaticano vele especialmente por duas coisas: os clérigos “clandestinos” encarcerados por Pequim e a liberdade religiosa.
Uma questão maior. Como é sabido, para o estabelecimento de relações diplomáticas, a República Popular da China pressiona todos os Estados para que cortem relações com Taiwan. Ora, a Santa Sé continua a reconhecer Taiwan e o Vaticano é mesmo o único aliado que Taiwan tem na Europa. John Hung Shan-chuan, arcebispo de Taipé, declarou em relação ao acordo: “Estamos felizes pelo progresso das relações, fomos informados antes”, e acrescentou: “O que vemos é que pela primeira vez o partido comunista está a abanar. Eles dizem que não querem que poderes estrangeiros se metam no seu país, mas desta vez permitiram-no. E isso é um bom sinal, embora não saibamos quais serão as consequências no futuro. Mas não estamos preocupados, porque o Papa disse-nos que não nos ia abandonar nem prejudicar Taiwan. Pedimos-lhe isso e sabemos que como bom pastor não nos vai abandonar”.
Neste enquadramento, a Presidente de Taiwan convidou oficialmente o Papa a visitar a ilha, que tem 300.000 católicos, aproximadamente 1, 5% da população. E os dois bispos chineses que estiveram no Sínodo — foi a primeira vez — convidaram o Papa a visitar o seu país, a República Popular da China. Para que a visita se concretize, será necessário um convite formal de Pequim.
Imediatamente a seguir, neste passado dia 18, o Papa Francisco recebeu, como previsto e como escrevi aqui na semana passada, o Presidente sul-coreano, Moon Jae-in, que lhe transmitiu oralmente, a pedido de Kim Jong-un, o convite para visitar a Coreia do Norte. Depois do encontro, o porta-voz presidencial sul-coreano, Yoon Young-chan, declarou que “o Papa disse: ‘Darei uma resposta incondicional, se me chegar um convite oficial e puder ir’”. Já em relação ao convite para visitar Taiwan, o porta-voz do Vaticano, Greg Burke, confirmou, no mesmo dia, o convite, mas “posso afirmar que essa visita do Santo Padre não está a ser estudada”, disse.
Questões da diplomacia, imensas e complexas.
Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia
Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN | 20 OUT 2018
TU CÁ TU LÁ
COM O PATRIMÓNIO
Nova série. 30.10.2018
Um dia destes fui dar com um velho texto e uma fotografia jovial entre um conjunto de papeis amarelecidos no fundo de uma gaveta. Li e achei que havia interesse em regressar ao tema… Nos tempos da "Raiz e Utopia" da saudosa Helena Vaz da Silva, um dos autores mais citados era Ivan Illich. Era um pensador rebelde. As suas obras podem ser lidas com redobrado interesse, uma vez que foi dos primeiros a pôr o dedo na ferida aberta pelo consumismo e por aquilo que hoje designamos como fundamentalismo de mercado. Disse-nos, com veemência, que o crescimento material é enganador, sobretudo se visto na ótica da destruição da natureza e da insaciabilidade por novos bens e novas riquezas, ainda que esses se adquiram à custa da miséria e da exclusão. Há uma semana invocávamos o conceito de justiça de Rawls, hoje falamos do inconformismo de alguém que acreditava sinceramente em que era possível inverter a tendência para que as instituições se tornassem fatores de limitação e de bloqueamento da sociedade humana. Illich acreditava na "convivialidade", porque via tudo a partir das pessoas e da necessidade de ir ao seu encontro. Questionou, por isso, a escola, a saúde, as administrações e a organização económica de uma industrialização predadora. "A solução da crise obriga a um volte-face radical: só mudando a estrutura profunda que regula a relação do homem e do instrumento poderemos dar-nos instrumentos justos" - dizia. "O instrumento justo deverá, porém, obedecer a três exigências - deve ser gerador de eficiência sem degradar a autonomia pessoal, não deve criar nem escravos nem mestres, deve, no fundo, alargar o raio de ação das pessoas". Para Illich, do que precisamos é de instrumentos com que trabalhar, e não de instrumentos que trabalhem em vez de nós. Afinal, necessitamos de uma tecnologia que tire o melhor partido da energia e da imaginação pessoais, não de uma tecnologia que nos torne servis e programados… Compreende-se bem que Illich, ao longo da sua vida, tudo tenha procurado fazer para conciliar raízes e utopia, lutando para que esta não se tornasse escravizadora. Numa vida muito rica (1926-2002), desde Viena, onde nasceu, a Cuernavaca (México), onde animou o CIDOC (Centro Intercultural de Documentação), passando por Florença, Roma, Nova Iorque e Porto Rico, Illich procurou ser sempre fiel à defesa intransigente da dignidade das pessoas e da força de uma cultura humana. Tudo para que os "mecanismos de usura não ameacem o direito das pessoas à sua tradição, o recurso ao que nos precede, através da língua, do mito e do ritual". Que valerá a utopia sem fidelidade às raízes?
E assim recordo “Os pássaros de Londres” de Cesariny!
«Os pássaros de Londres
cantam todo o inverno
como se o frio fosse
o maior aconchego
nos parques arrancados
ao trânsito automóvel
nas ruas da neve negra
sob um céu sempre duro
os pássaros de Londres
falam de esplendor
com que se ergue o estio
e a lua se derrama
por praças tão sem cor
que parecem de pano
em jardins germinando
sob mantos de gelo
como se gelo fora
o linho mais bordado
ou em casas como aquela
onde Rimbaud comeu
e dormiu e estendeu
a vida desesperada
estreita faixa amarela
espécie de paralela
entre o tudo e o nada…»(«Poemas de Londres»).
Agostinho de Morais
A rubrica TU CÁ TU LÁ COM O PATRIMÓNIO foi elaborada no âmbito do Ano Europeu do Património Cultural, que se celebra pela primeira vez em 2018 #europeforculture |
De 29 de outubro a 4 de novembro de 2018.
Passam no dia 3 de novembro cem anos sobre o nascimento do Padre Manuel Antunes (1918-1985) na Sertã.
UM MESTRE INIGUALÁVEL
Os alunos e os discípulos do Padre Manuel Antunes lembram-se bem do auditório da Faculdade de Letras de Lisboa, completamente cheio, plenamente disponível para o ouvir, como paradigma da sabedoria pura. E isso era admirável, numa escola em que o seu exemplo era uma exceção (graças ao convite de Vitorino Nemésio). A figura frágil do professor contrastava com a segurança no desfiar dos conhecimentos, dos tempos, das épocas, dos autores e das suas obras… Maria de Lourdes Belchior lembrou “este homem de muitos saberes e rigorosos dizeres, que muito viu porque pensou e muito sentiu porque muito sofreu”. A cultura clássica era sobretudo oportunidade para tomar contacto com a essência do conhecimento. A propósito de T. S. Eliot, referia-se a um humanismo nascido “do seio da vida e da cultura dos tempos modernos em crise”, por contraponto à degenerescência em arrivismo e mera expressão quantitativa. E era essa interrogação sobre as raízes e sobre a essência dos problemas que atraía aquela multidão de ouvintes interessados. E assim se entendia como uma atitude humanista pressupunha a compreensão da memória do tempo e uma tomada de consciência da complexidade. E essa memória obrigava a ligar a tradição, enquanto transmissão e herança, com a contemporaneidade que se preocupa com as bases de um futuro de justiça e verdade. Em lugar de uma tradição repetitiva e esclerosada e de uma tradição objeto da curiosidade erudita, tornar-se-ia essencial encarar a tradição como atualização do outrora no agora, “que é diálogo dos vivos com os grandes mortos vivos, que é prolongamento da sua experiencia e que é consciência do seu saber”. Daí a paixão pelos clássicos (“os grandes mortos vivos”), que para Eliot implicaria o culto da maturidade, de uma língua, de uma civilização, de um espírito, implicando, além da perfeição do estilo comum, “a história e a consciência da história, de uma história mais ampla que a simples ‘história paroquial’, na expressão de Toynbee”. E assim o mestre jesuíta recordava os belíssimos versos do poeta anglo-americano, em “Four Quartets”: “O tempo passado e o tempo futuro, / Aquilo que poderia ter sido e aquilo que foi / Tendem para um único fim, que está sempre presente”. Afinal, “ser consciente é não estar no tempo”. Como? O professor fazia compreendê-lo, procurando não se deixar iludir pelo curtíssimo prazo. E assim se entende o apego do Padre M. Antunes à História e ao espírito, que Henri de Lubac, o celebrado teólogo, encontrava na grande mensagem de Orígenes.
ABRIR CAMINHOS NOVOS
Werner Jaeger, autor de Paideia, era referencial. Longe de qualquer repetição, o que o Padre Manuel Antunes fazia era abrir caminhos para a leitura dos clássicos, não apenas os antigos, mas os de todas as épocas, aqueles que se foram singularizando na maturidade do saber, do exemplo, da experiência e da aprendizagem. Não esquecemos o que nos disse sobre o estar especialmente grato ao grande clássico tedesco: “por, através dos seus livros, lhe ter indicado um fio de Ariana no vasto labirinto da cultura grega – a areté como ideal de perfeição humana -, por lhe ter feito ver um Aristóteles mais real e menos abstrato, por lhe ter apontado a direção das fontes do neoplatonismo e por, mais recentemente, o ter orientado no sentido do humanismo cristão dos primeiros séculos…”. E quando tantos estudantes se quotizavam para partilhar e usufruir a leitura de obras que ultrapassavam as suas posses ou quando procuravam o Padre Manuel Antunes na casa da Rua Maestro António Taborda, rodeado de livros de uma biblioteca preciosa, mas nunca distanciado do mundo e da vida, como se ela fosse uma muralha, o que encontravam era abertura, disponibilidade e conhecimento, que lhes permitia melhor descobrir a humanidade. A cultura viva como tradição e diálogo, como especialização e interdisciplinaridade era a marca que distinguia o seu magistério. De facto, importa cuidar do conhecimento e do método. Muito conhecimento se perde na informação e muita sabedoria se perde no conhecimento, na expressão de T. S. Eliot. Sem tradição haveria o risco de infantilismo e do primarismo. Sem diálogo haveria a tentação da sofística labiríntica e obsessiva, do “hermetismo sem janelas, no mutismo sem possibilidades de comunicação”. Sem especialização cair-se-ia nas “generalidades inócuas e nas afirmações sem fundamento”. Sem interdisciplinaridade haveria o risco de as árvores impedirem a visão da floresta.
SEMPRE PEDAGOGO
Como pedagogo que sempre foi – na cátedra universitária ou nas páginas da revista “Brotéria”, com dezenas de pseudónimos – o Padre Manuel Antunes admirava o modo de cultivar o pensamento e a crítica pelos educadores. Admirou, por isso, António Sérgio “um pedagogo que se propôs ensinar a pensar em voz alta, a olhar para os problemas e as coisas com idealidade e lisura, com olhos despreconcebidos e com amor à verdade, que era a sua versão do espinosiano amor intelectualis Dei, por ele com tanto gosto e tanta frequência citado”. D. Luísa Sérgio, mulher do ensaísta, foi o elo que os ligou. Da Travessa do Moinho de Vento à porta da Rua da Lapa, onde o Padre Manuel Antunes celebrava, gerou-se uma amizade. “Entre ele, o ‘agnóstico’ e o sacerdote católico havia muito naturalmente, divergência. Mas a relação foi sempre irénica, nunca polémica: franca, nunca reservada; respeitadora, nunca impositiva”… O jesuíta admirava a “nobre e lucidíssima figura”, até porque “era o contrário do erudito que se afunda em fichas e morre em citações tanto quanto se situava nos antípodas do isolamento ebúrneo”. E quais os seus amores? O amor das ideias, “na sua pureza diáfana e intemporal” e “o amor dessas pedras vivas do edifício social, que são os homens em carne e osso”… Assim, animava-o uma “consciência vigilante, de sentinela nas fronteiras do espírito”… “Por isso, já quase no crepúsculo da vida (revela o jesuíta), vi-o exultar de alegria e júbilo quando João XXIII publicou a Pacem in Terris. Era uma linguagem que ele compreendia e era um conteúdo que ele aceitava”… Sophia de Mello Breyner disse melhor que ninguém: “Havia uma coisa extraordinária no padre Antunes: uma grande ligação entre a cultura e a vida. Eu penso que isso lhe era dado, em grande parte, pelo facto de ser padre. Ele nunca se revelou um homem escolar. Qualquer homem com o grau de erudição e inteligência, a capacidade intelectual que ele tinha, corria sempre o perigo de esterilizar humanamente num pensamento abstrato e muito teórico”. E João Bénard da Costa lembra como o sacerdote acompanhou o grupo de católicos inconformistas (António Alçada Baptista e os amigos) nos tempos do “Pacto”, tendo visto na sua atitude “um sinal de Deus e de caminhos futuros ou de caminhos do futuro, tendo ainda sido um dos membros da comissão portuguesa do Congresso para a Liberdade da Cultura, estando “em combates muito difíceis nos anos 60 e 70, antes dessa Revolução que ele analisou, como mais ninguém, nesse livrinho sublime a que chamou Repensar Portugal””…
Minha Princesa de mim:
A dado passo (página 72) do meu Fomos em Busca do Japão, escrevi: Já referi Shusaku Endo, e com ele nos interrogámos sobre o porquê do cristianismo surgir, aos japoneses, como estrangeiro. E verificámos, com o professor Suzuki Norihisa, como o cristianismo progrediu no Japão em tempos de mutação social e subversão de valores, mas esses são, simultaneamente, períodos em que também se faz sentir uma maior necessidade de coesão nacional. Esta manhã, relendo este trecho e outros que adiante citarei, ocorreu-me ainda um passo do An 1000 An 2000 - Sur les Traces de nos Peurs, de Georges Duby (Textuel, Paris, 1995), livro que comprei e li em Tokyo, comparando a Europa medieval (aqui no século XIII) à presente: Também temos uma visão clara da evolução das mentalidades. Nesse período de forte crescimento, como atualmente, os filhos não pensavam como os pais. Apesar dessa sociedade muito hierarquizada cultivar de modo fundamental o respeito dos antigos. Qualquer súbito e novo modo de pensar é sinal, não só de mudança da circunstância económica, social, política e referencial (ou cultural), mas de um sequente salto para a frente de uma nova geração, seus modos de pensar e artifícios. O tempo e o modo: mudam-se os tempos, mudam-se as vontades.
O tempo e o modo do Japão - escrevia eu então - à hora da chegada dos portugueses, será a circunstância em que se desenvolverá o chamado século cristão, com o progresso rápido da evangelização e, depois, com as perseguições, até ao martírio de muitos (sobretudo japoneses) e à expulsão de todos os missionários e dos portugueses mercadores. As rivalidades entre senhores feudais, a sua própria concorrência ao batismo cristão para obterem armas de fogo e o benefício do comércio dos portugueses (sobretudo este, posto que, quanto a mosquetes, depressa os japoneses os fabricaram em Sakai); o movimento de unificação conduzido pelos senhores da guerra Nobunaga, Hideyoshi e Yeasu, este vindo a ser o iniciador do shogunato Tokugawa; a influência política das seitas e mosteiros budistas (e falarei dos kenmon); a desconfiança dos bakufu, aliás alimentada por adventícios holandeses e ingleses, de que a evangelização católica visava objetivos de cruzada e conquista política... Tudo isto pesou no destino do cristianismo e dos portugueses no Japão! Diga-se, a talho de fouce, que a tal ideia de cruzada não era apenas pura invenção protestante: os próprios Xavier, Valignano e outros jesuítas tiveram muitas vezes de enfrentar pessoas e conceitos firmados nas cortes portuguesa e espanhola, que defendiam que o Japão deveria ser outro Peru, como terra de conquista espiritual e temporal!
Claro fique que os concorrentes holandeses e ingleses exploraram quanto possível o receio semeado, servindo-se da sua qualidade de cristãos protestantes e adversários dos católicos ibéricos. Não esqueças, Princesa, que aquilo a que hoje se chama a primeira globalização - e foi a expansão, primeiro ibérica, logo europeia, pelos cantos do mundo - a toda a parte levou essa mistura política, traduzida em guerras, de rivalidades económicas, concorrências comerciais, e confrontos religiosos fratricidas. Aliás, lutas entre irmãos, e intrigas, não foram apanágio exclusivo de reformados contra tridentinos e vice-versa: no Japão, por exemplo, a partir do momento em que se relaxou o Padroado Português e, pela rota de Manila, foram chegando missionários de outras ordens religiosas, também os católicos entre si se foram pregando umas partidinhas... Não quero fazer alarde de investigação histórica (nem sequer historiador sou, muito menos investigador) e procuro não te dar aulas, mas tão somente propor-te uma leitura descontraída de coisas passadas. Portanto, passo a ilustrar o período de que te falo com textos respigados do The Christian Century in Japan (1549-1650) de Charles Boxer (University of Califórnia Press, 1951). Traduzo-te alguns:
Um dos lugares comuns da história é que não há confrontações mais amargas do que as engendradas pelo odium theologicum, que parece inseparável de qualquer disputa doutrinal e, mais ainda, em religiões como o Cristianismo e o Budismo que teoricamente deixam tal tensão à paz e boa vontade. O registo da Igreja Cristã a este respeito até é mais negro do que o dos sequazes do Iluminado, e a calúnia mútua a que as ordens católicas romanas chegaram no Extremo Oriente foi uma das principais causas do relativo falhanço das suas missões na China e no Japão. Como observou o Professor Murdoch [cf. Murdoch, James, e Isso, Yamagata, A History of Japan during the Century of Early Foreign Intercourse, 1542-1651, Kobe, 1903], a simples verdade dos factos é que, entre 1564 e 1614, pelo menos, entre jesuítas e franciscanos, no Japão, se chegou quase à guerra à facada, tal como sucederia no Paraguai, poucos anos depois. Não há historiações da Igreja que cheguem para esconder tal verdade a quem queira dar-se ao trabalho de gastar algum tempo a analisar as cartas que as missões daquelas Ordem e Companhia enviaram às respetivas sedes.
Não tenho bem a certeza de em quem é que o Professor Murdoch pensava quando empregou o termo "historiações da Igreja" [Church historianizing], visto que os coevos participantes em tão pouco edificantes disputas não tentaram esconder o que tinham por verdade histórica, nem tampouco o fizeram os protagonistas Jesuítas e Dominicanos da igualmente amarga querela acerca dos ritos chineses, que convulsionou a Igreja Católica no século seguinte. Pelo contrário, a franqueza e chã linguagem dos seus respetivos porta-vozes não deixam a mínima dúvida da sua sinceridade, pense-se o que se pensar dos motivos (muitas vezes irrisórios quanto baste) que inspiraram essas erupções de inveja, ódio, malícia e falta de caridade. Frailes idiotas era um termo de opróbio usado pelos jesuítas muito antes de se tornar num grito de guerra dos anticlericais espanhóis no século XIX.
[Ainda que não te escreva esta para te falar de história, aproveito-lhe a oportunidade de abrir um trecho só para te dizer que, na circunstância do Padroado Português do Oriente, em que se incluíam China e Japão, e apesar da sede do paralelo Patronazgo Espanhol estar nas Filipinas, a norma estabelecida pela coroa dos Áustria espanhóis, que submetia a si os dois reinos (Espanha e Portugal) e seus impérios, ordenava que a administração ultramarina de cada um fosse independente da do outro, bem como separadas as respetivas áreas de missionação. Desse modo, a presença e atividade das missões espanholas de outras ordens religiosas no Japão era ilegal, visto que, desde Dom João III, o Padroado fora confiado aos cuidados da Companhia de Jesus. Mas não te será difícil entender como o mui lucrativo comércio triangular (luso-nipo-chinês) era naturalmente cobiçado pelos mercadores espanhóis estabelecidos em Manila, onde arribavam pela rota do Pacífico, vindos do Peru... E a ganância pode muito.]
Fechado o parêntese, volto ao tema da distorção de outrem e do próprio, por força, não tanto de divergências ou de propostas alternativas, em si mesmas, mas da concorrência entre rivais e das consequentes ganas de cada qual ser superior aos outros. É interessante verificar como a ideia das virtudes da concorrência como indispensáveis fatores de progresso e, finalmente, de justiça, não só fez dela a palavra de ordem para a viabilização de qualquer sociedade política e económica verdadeiramente liberal e democrática, como até canonizaram a agressividade como virtude heroica, e a ambição de dinheiro e poder como causa efetiva de saúde social e fim último do esforço individual.
Concomitantemente se esquecem os efeitos colaterais ou secundários decorrentes da degenerescência da competição em tirania concorrencial. Ou, se assim melhor entenderes, Princesa de mim, se olvida a parábola do barranco de cegos. Tal como os missionários cristãos, no Japão do século XVI/XVII, não aprenderam com a lembrança de que uma das razões do seu êxito inicial na conversão de japoneses estar precisamente na incerteza que os nipónicos experimentavam com a divisão e a concorrência agressiva das seitas budistas entre si, tal acontecendo, diria o professor Norihisa, em período de necessidade de coesão nacional. Assim também hoje, muito se fala de crise das democracias liberais, ameaçadas por populismos, nacionalismos estremes ou, ainda, por agressões de fundamentalismos islâmicos e sabotagens russas e chinesas... Mas pouco se faz uma nossa introspeção - exercício que talvez nos conduzisse à perceção de revisões necessárias da nossa cultura e comportamentos. Ao correr da pena epistolográfica - que, neste caso, é um teclado de computador portátil - vou então desafiar-te a recordares comigo alguns exemplos das nossas correntes contradições e perplexidades. Não seguirei qualquer ordem preestabelecida, vai tudo ao jeito do Vitorino Nemésio, isto é, do meu se bem me lembro... E assim irá por etapas, isto é, por cartas várias.
Camilo Maria
Camilo Martins de Oliveira
Referimos hoje dois livros que fazem a evocação histórica da chamada Ópera do Tejo, teatro inaugurado em Lisboa em 31 de março de 1755 e destruído pelo terramoto de 1 de novembro do mesmo ano.
Há uma larguíssima bibliografia sobre essa tragédia e sobre as consequências imediatas e as políticas de recuperação e restauro urbano. Mas no que se refere especificamente à Ópera do Tejo, citamos então hoje os dois estudos: “Os Nove Magníficos - Os Grandes Reis da Nossa História” de Helena Sacadura Cabral (ed Clube do Leitor – 2017) e “Ressuscitar a Ópera do Tejo – O desvendar do Mito” de Aline Gallasch-Hall de Beuvink (ed. Caleidoscópio - 2016).
Ambos são de excelente qualidade. E em ambos encontramos descrições do edifício do Teatro, sendo certo que o livro de Aline comporta uma análise descritiva obviamente mais desenvolvida, até porque o livro de Helena Sacadura Cabral abarca os reinados de nove Reis de Portugal, a começar pelo fundador D. Afonso Henriques e a encerrar em D. Carlos, num período que vai de 1109 a 1908.
Mas mesmo assim: transcrevemos a referência detalhada à Casa da Ópera feita por Helena Sacadura Cabral.
Começa por referir que “contrataram-se tenores, compositores, músicos, cantores, pintores, de cenários, entre outros”. E acrescenta:
“Algumas descrições sugerem que a dita casa possuía um palco muito grande, em oposição ao espaço reservado à assistência que seria reduzido. Espaço de demonstração do poder, também aqui aconteceriam as disputas na precedência dos lugares que cada um ocupava e que mais não eram do que o sinal do seu estatuto na hierarquia dos poderes” (pág. 203).
O certo é que o terramoto, para alem da imensa tragédia em si, conduziu a situações existenciais com implicações socio-urbanas que durante décadas se fizeram sentir.
E o que diz a este respeito o livro de Aline Gallasch-Hall de Beuvink? Vamos ver em próximo artigo.
DUARTE IVO CRUZ
8. NÃO CULPEM NEM SACRALIZEM O MAR (II)
Mas há quem culpe o mar:
“Mas o mar, o Atlântico, desequilibrou-nos. Ao pé da sedução e do mistério do mar, tudo é relativo. Tudo é pouco. A dificuldade de motivação que os Portugueses têm e a sua dependência do carisma motivador de alguém vêm daí”.
“Faz-nos olhar para o fim das coisas sem olhar para o princípio ou para o meio delas”, pelo que “Os Portugueses, de uma forma geral, confundem desejo com vontade, fantasia com ambição, improvisação com genialidade, esforço com método, impunidade com tolerância”.
Daí a culpa, em todo o caso, ser do mar e, por contraditório que pareça, “O mar tem sempre razão, diz-nos a nossa identidade”[1].
Ter como caraterísticas duradouras, senão mesmo como carateres intrínsecos dos portugueses, por exemplo, uma alegada dificuldade de motivação, falta de método e incapacidade de planeamento aliada ao talento para improvisar, em consonância com o mistério do mar, que nos atrai e torna difícil distinguir o sonho da realidade, é redutor, simplificando, em demasia, o que é complexo. Tê-las como resultantes do modo de ser português, em que a culpa é do mar, que torna tudo pouco, indiferente e relativo, é esquecer que aquelas são sempre suscetíveis de modificação, em razão de condições culturais, económicas, sociais, ou outras, alterando os nossos carateres comportamentais à medida que se altera a natureza estrutural de tais condições.
Se o mar “desequilibra” na sua imensidão avassaladora e misteriosa, como se justifica que não vingue igual raciocínio, em paralelo ou por analogia, em relação a países como a pequena e rica Dinamarca, com uma única fronteira terrestre (como nós), por sinal com a poderosa Alemanha? E por que não quanto a outros, também confrontados com a relevante componente marítima, realçando o que lhe devem em competitividade, liberdade, individualidade, riqueza e soberania, como Singapura, Japão, Canadá, Islândia, Inglaterra e Estados Unidos? Embora influenciando-nos, nunca foi, nem é, culpando-o que nos redimimos, tornando-nos mais europeus através do desejo de dissolução em espaços mais “civilizados” e “desenvolvidos”, mas antes, e sempre, em conjunção com ele.
Há que afastar tendências para hipostasiar o mar como componente da realidade portuguesa, quer culpando-o ou exaltando-o.
Não é culpando-o através de teorias culpabilizantes, endeusando-o, idolatrando-o ou sacralizando-o, através de teorias míticas e messiânicas sobre o seu inexplicável “mistério” e consequente singularidade e universalidade do povo português, que melhor o compreenderemos como fator essencial da nossa identidade e em termos de estratégia.
Para além de um dos maiores ativos que possuímos, a par da língua, é ainda, à semelhança desta, uma realidade óbvia e consensual, que não se restringe a um interesse nacional claro, evidente, manifesto, permanente e irrenunciável, mas também a uma realidade e a um interesse permanentemente estratégico.
Se o critério é a objetividade, há que não qualificar abusivamente como realidade absoluta, inferior ou ter como culpável algo que o não é, havendo que normalizar o mar, objetivando-o racionalmente. Embora saibamos, pela experiência comum, que também tudo é subjetivo, se tivermos como referência que os nossos conhecimentos e pensamentos são consequência da perceção pessoal de cada um de nós, tornando discutível a mera objetividade como critério total.
23.10.2018
Joaquim Miguel de Morgado Patrício
[1] Pinto Leite, António, Portugal, a culpa é do mar, crónica de imprensa publicada e reunida no livro Qual é o mal?, Sopa de Letras, 1.ª edição, Novembro 2002, pp. 31 a 33.
Pescávamos com búzios à beira do mar
Acedendo à festa dos mistérios das ilhas
Seguros de que aquele animal tutelar
Viria a nós ressurgir e libertar
À noite recolhíamos o cabo
Que nos segurava o espirito
E escutávamos o regresso sem dano
De uma visita às origens
E os búzios espias
Contavam dos espelhos
Superfícies polidas onde as sereias
Se comparavam na ideia de si
Com a que acreditavam que delas tivessem
E logo vaidoso
Cnossos – palácio cretense
Expunha-se ao nosso olhar de dentro e de fora
Abrindo as portas do seu labirinto
Expondo saídas, vocalizando tensões
E nós
Pescadores
Que nenhum ângulo queríamos perder
Acasalávamos ondulando no céu
Como se o desejo nos subtraísse ao peso
Prisioneiros de quem assim se ofereceu
Mas era demais
A grande borboleta hipnótica do escutar
- semi-deusa grega que o era de sempre
Saciou-se de nós pescadores
Que julgávamos saber pensar os limites
Nimbados do impensável
Nós que só estávamos na história
De corpo e arco a ceder
Então libertamos os búzios
E ao largá-los aflorámos seu feitiço
Enquanto a vida breve se eternizava
Ao abrigo do tempo
Ao lado das coisas
E ainda assim
Projeto
Delicado e difícil
Teresa Bracinha Vieira
O Bloco da Carvalhosa (1945-50).
Desde a emergência do movimento moderno, a partir de meados dos anos 20, os projetos de habitação coletiva demonstram um gosto pela cultura moderna (urbana, rápida e exposta a novas tecnologias); pela continuidade espacial (os projetos modernos apesar de separarem os espaços e por vezes diferenciarem a altura dos pés direitos e as proporções de cada divisão, conseguem criar mais ou menos intimidade); pela organização funcional (que facilita as tarefas do dia-a-dia); por reduzir e simplificar todo o programa doméstico (que faz aumentar o fluxo dos espaços internos); por inovar todos os elementos relacionados com circulação; por introduzir novos equipamentos, novo mobiliário e novos materiais (que promovem um ambiente mais leve, mais despojado, mais higiénico, com mais luz e mais ar); e finalmente pela importância das relações entre o interior e o exterior.
Ora o Bloco da Carvalhosa (Rua da Boavista, Porto, 1945-1950), projetado pelos arquitetos Arménio Losa e Cassiano Barbosa, representa uma arquitetura moderna cada vez mais capaz de transformar a vida e a sociedade. Os arquitetos modernos acreditam que, ao seu alcance, está a solução dos problemas humanos - através da manipulação de todo o mundo das formas, desde a intimidade do quarto ao desenho das cidades. O problema central do mundo moderno é o problema da habitação.
'Para Arménio Losa os graves problemas das grandes cidades não poderão ser resolvidos à luz dos velhos métodos de urbanismo. (...) Ciência, arte e técnica da organização social das cidades e dos campos, representa o universo supremo da organização do território de modo a permitir o 'desabrochar da pessoa humana'.', Ana Tostões In 'Os Verdes Anos na Arquitectura Portuguesa dos Anos 50.'
O Bloco da Carvalhosa materializa uma resposta invulgar, pioneira e única a um programa de prédio de rendimento. A sua expressão formal e linguagem inédita (capaz de criar novos paradigmas) concretiza-se pela singular ocupação do lote, pela inteligente orientação dos espaços internos e pela introdução de um pátio interior.
A ocupação do lote garante uma nova relação com a rua - a fachada ao desalinhar concede uma autonomia, uma outra escala ao edifício, uma afirmação urgente de um novo modo de vida, que rompe com a história e com as tradições. O recuo do bloco cria uma zona de transição, tratada com um pequeno jardim.
A solução aproveita (densamente) o lote em profundidade - o projeto inclui jardim, garagens, pátio e edifício com planta em T (para assegurar iluminação e ventilação dos quartos que estão virados a sul, para o interior do lote) e com seis andares (sendo que o rés do chão ao elevar-se cria uma cave habitável e o último andar recua em relação ao pano de fachada).
O Bloco apresenta uma orientação norte/sul - sendo que a fachada norte é a fachada virada para a rua muito movimentada e ruidosa. Por isso, os arquitetos optaram por organizar os espaços internos de modo a que as zonas de serviço se virassem a norte e as zonas de descanso se virassem para a fachada sul, para o silêncio e para o sol. A distribuição interna assenta numa partição entre os espaços de serviços, os espaços comuns e os quartos. A sala, habilmente encaixada no braço do T e sendo um compartimento amplo, consegue abrir-se para os dois lados (norte e sul). Sendo assim a orientação do bloco segue princípios de comodidade - 'foge-se da rua, caminha-se para a luz e para o ar puro'. E sem dúvida que uma das mais importantes introduções, neste programa de habitação, foi a conceção dos terraços-solário (uma espécie de jardins suspensos ou sala exterior) e de um pátio interior aberto.
Arménio Losa e Cassiano Barbosa buscam, assim, com este projeto uma casa que transporta a ideia de conforto para todos, através de uma exigente comceção espacial adequada ao mundo novo da máquina.
Ana Ruepp
A notícia chegou completamente inesperada e surpreendente: o Presidente da Coreia do Sul, Moon Jae-in, será portador de um convite formal do Presidente Kim Jong-un ao Papa Francisco para que visite o seu país, a Coreia do Norte. E está preparado para recebê-lo em Pyongyang “com entusiasmo”.
A Coreia do Norte ocupa hoje o primeiro lugar na lista dos países onde os cristãos são mais perseguidos. Nos princípios do século XX, a capital, Pyongyang, foi chamada “a Jerusalém do Oriente” ou “a Jerusalém da Ásia”. Na Coreia do Norte, em 1950 viviam ainda mais de 55.000 católicos, com 57 igrejas construídas, com missionários, escolas católicas e actividades pastorais florescentes. A perseguição tinha começado antes, mas acentuou-se com a guerra da Coreia e o brutal regime instalado: as igrejas foram arrasadas, os cristãos, católicos e protestantes, mortos ou enviados para campos de concentração, num processo de eliminação de qualquer presença religiosa. As comunidades católicas tornaram-se verdadeiramente a “Igreja do silêncio”. Hoje existe apenas uma igreja católica, construída em 1988, mas sem padre nem religiosos nem baptismos. Na capital, os católicos serão uns 800 e, dispersos por toda a Coreia do Norte, uns 2 ou três mil; no entanto, é convicção de padres do Sul, que estiveram no Norte, que o número pode ser muito superior: haverá muitos homens e mulheres que continuam a viver a sua fé em Cristo de modo íntimo, sem possibilidade de exprimi-la publicamente. O regime é ateu, mas, a partir de 1989, com a queda do bloco comunista, reconheceu uma “Associação Católica” e uma “Federação Cristã”, que são duramente enquadradas e controladas pelo Governo. Alguns contactos informais têm tido lugar em Roma entre representantes norte-coreanos e diplomatas do Vaticano, revela o jornal La Croix, que também escreve que em 2017 um diplomata norte-coreano declarou expressamente a um seu enviado especial à Coreia do Norte que “as organizações humanitárias católicas faziam um trabalho muito bom na Coreia do Norte; são sérias, eficazes e nós confiamos, pois são mais honestas e sinceras do que outras grandes organizações laicas que nos enviam espiões”.
Como reagirá o Papa Francisco ao convite? Ele vai receber no próximo dia 18 o Presidente sul-coreano, Moon Jae-in, um católico fervoroso, que lhe entregará o convite oficial do líder norte-coreano. Nesse dia, o secretário de Estado do Vaticano, cardeal Pietro Parolin, um diplomata reconhecido e prestigiado internacionalmente, celebrará uma Missa na Basílica de São Pedro pela “Paz na península coreana”, na qual participará o presidente Moon.
Possivelmente o presidente sul-coreano, Moon Jae-in, é o grande artífice da presente situação cada vez mais distendida na península coreana, no quadro de uma nova ordem, que poderia estar inclusivamente a caminho de uma união entre as duas Coreias; para um dos encontros inter-coreanos convidou também o presidente da Conferência Episcopal Coreana, que esteve presente. O convite do líder norte-coreano ao Papa surge no contexto dessa reconfiguração geoestratégica, estando previsto que Kim Jong-un visite Seul, visitando também proximamente Moscovo, ao mesmo tempo que se espera uma visita do presidente chinês, Xi-Jinping, a Pyongyang, e outro encontro entre Kim e Donald Trump poderá acontecer em breve. Por outro lado, Kim, que é sabido ser um ditador cruel e que poderia correr o risco de uma sublevação por parte da população esfomeada, quererá mudar a sua imagem, agora uma imagem de homem pacífico; e que solução melhor para isso do que o convite a Francisco, líder político-moral global e símbolo do combate a favor do diálogo e da paz?
E se Francisco fosse visto em Pyongyang? Ele visitou a Coreia do Sul em Agosto de 2014. Aquando da cimeira histórica entre Trump e Kim a 12 de Junho passado em Singapura repetiu os vários apelos que tem feito a favor da paz entre as duas Coreias. O cardeal Andrew Yeom Soo-Jung, arcebispo de Seul, declarou a propósito do convite: “Dá-me satisfação e conforta-me saber que, durante a sua visita ao Vaticano na próxima semana, o Presidente Moon Jae-in levará consigo a mensagem do líder norte-coreano Kim Jong-un, que deseja convidar o Papa Francisco para Pyongyang. O Santo Padre preocupou-se sempre e preocupa-se com a paz na península coreana e incluiu nas suas orações os coreanos sempre que houve acontecimentos importantes na história recente. Espero que estes esforços ajudem a construir uma paz genuína na península da Coreia. Sobretudo como administrador apostólico de Pyongyang, rezo sinceramente para que em breve possamos enviar sacerdotes e religiosos e religiosas para o Norte e celebrar juntos os Sacramentos.”
Francisco tem a convicção de que o futuro do cristianismo se joga em grande parte na Ásia. Está prevista uma viagem sua ao Japão no próximo ano e não se deverá esquecer que este convite vem também na sequência do acordo de 22 de Setembro passado entre o Vaticano e Pequim sobre a nomeação em conjunto dos bispos da República Popular da China. Este acordo será o tema da minha próxima crónica.
Anselmo Borges
Padre e professor de Filosofia
Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN | 13 OUT 2018