CARTAS DE CAMILO MARIA DE SAROLEA
Minha Princesa de mim:
Escreve Sylvie Courtine-Denamy em Trois femmes dans de sombres temps (Edith Stein, Hannah Arendt, Simone Weil): Para Arendt, o perdão é um conceito com função importante: «Se não fôssemos perdoados, libertados das consequências do que fizemos, a nossa capacidade de agir seria como que encerrada num ato único do qual nunca mais nos poderíamos levantar; ficaríamos para sempre vítimas dessas consequências, tal como um aprendiz de feiticeiro que, à falta de fórmula mágica, não poderia quebrar o encanto». O perdão surge assim como libertação possível da irreversibilidade da ação, «quando não sabíamos, não podíamos saber o que fazíamos». É a Jesus de Nazaré que ela aqui se refere, a Ele ter sabido suster que o poder de perdoar «não vem de Deus [...] mas deve, pelo contrário, trocar-se entre os homens que, só depois disso, poderão esperar ser também perdoados por Deus». As citações de Arendt aqui feitas por Courtine-Denamy são todas respigadas da versão francesa de "The Condition of Modern Man", publicada em 1961 e 1983, pela Calmann-Lévy (La Condition de l´homme moderne, tradução de G. Fradier, com prefácio de Paul Ricoeur). Mais adiante, observa: Por outras palavras, o perdão é libertador. Na verdade, só o amor pode perdoar, na medida em que «se desinteressa, a ponto de ser totalmente ausente do mundo, daquilo que possa ser a pessoa amada, das suas qualidades e dos seus defeitos, como dos seus êxitos, omissões ou transgressões». Eis porque é que o amor, sendo «estranho ao mundo» é, não só «a-político», mas «antipolítico». Temos, pois, de concluir que se Hannah Arendt muito perdoou a Heidegger, foi também por tê-lo amado muito. Está assim aqui resumido tudo o que, mutatis mutandis, eu te irei dizendo a seguir.
Comove-me aquela evocação do dito de Jesus Cristo sobre a origem do poder de perdoar, que reside no coração das pessoas humanas quando estas se deixam habitar pelo amor de Deus que, no cristianismo, não pode existir marginalizado do amor dos outros, nossos próximos. Será que, cultivados por gerações sucessivas de "mestres" (alguns deles lembrando a contrario o dito de Jesus : o mais pequeno entre todos vós, esse é o grande) - "mestres" esses mais inspirados pelo formalismo do rigor canónico, pelo resguardo da sua autoridade, ou pelo policiamento de adventícias "heresias", do que pela mensagem fulcral do cristianismo que é o mandamento do amor com toda a misericórdia de que ele é capaz - , já não nos conseguimos libertar o infinito que desafia cada extensão do nosso coração, isto é, a primazia ética de saber "perdoar não apenas sete vezes, nem sete vezes sete, mas setenta e sete vezes sete"? O perdão não pode ostracizar, ele é, como tão bem nos conta a parábola do Filho Pródigo, cujo Pai sai ao seu encontro para lhe abençoar o regresso, acolhimento por excelência. Quando refletirmos sobre casos de divorciados recasados e muitos outros, é bom que o nosso pensarsentir seja, primeiro, acolhimento e reconciliação. Quiçá essa reflexão também nos leve a reconsiderar a qualificação, como pecado, de divórcios e segundos casamentos. Até haverá casos em que sejam inevitáveis ou, mesmo, sejam a melhor solução para pais e crianças envolvidos. Parafraseando: "a instituição matrimonial é feita para o homem, não o homem para a instituição". E, ao interrogarmo-nos sobre qualquer repúdio de homossexuais (que, ainda por cima, para quem esteja ao corrente das ciências de hoje, de modo algum podem ser considerados deficientes, diminuídos, psicopatas ou, menos ainda, pecadores por natureza), deveremos lembrar-nos do ser humano, nosso igual irmão em Cristo, e esquecer preconceitos culturais insustentáveis. E ninguém se esqueça de que nenhum de nós é juiz do outro, verdade que o Papa Francisco tem lembrado: Quem sou eu para julgar? Entristece-me muito deparar com tantas situações em que ministros ao serviço da Igreja de todos, se atêm à ideia de que o poder de perdoar lhes vem de Deus - que lhes entregou não só códigos ou regras definidoras dos pecados, como ainda tabelas de classificação destes e das respetivas penas aplicáveis, para que eles, e só eles, possam exercer, por delegação do Altíssimo Juiz, o poder de absolver ou condenar - e se esquecem de que perdoar, reconciliar, é o dever fundamental da nova lei de Cristo, de cumprimento a todos exigível, ao ponto de ser inaceitável uma oferta presente no altar, enquanto não me reconciliar com meu irmão. Na Igreja Apostólica, a confissão dos pecados e a determinação da pertinente penitência era comunitária, como ainda hoje se pratica nos capítulos das antigas ordens monásticas e religiosas. E o pecado que cada um anunciava ao perdão dos seus irmãos não era uma acusação escrupulosa, ou mais ou menos narcísica de um ato individual, mas a apresentação, à correção fraterna de cada igreja ou comunidade, de intenções consentidas, atos praticados ou omissos que, de um ou outro modo, pudessem ser ou tivessem sido atentatórios da caridade comunitária, isto é, da justiça como direito de todos e de cada um. Donde o lema: "Deus habita a caridade".
E porque o acolhimento é desígnio de Deus, a igreja não se fecha à chave [conclave, só cardeais para eleição do papa, o que diz muito sobre o clima de conspirações e intrigas, e as movimentações de influências que tiverem de ser controladas], mas é bom pastor aquele que deixa o rebanho no redil para ir lá longe buscar a ovelha transviada. Ou que, a exemplo de Jesus, acolhe La Traviata, a transviada. Conta-nos o Evangelho de Lucas (8, 36-50), em tradução de Frederico Lourenço:
Convidou-o um dos fariseus para comer consigo e, entrando em casa do fariseu, tomou o seu lugar à mesa. E eis que certa mulher, conhecida naquela cidade como pecadora, ao saber que ele estava à mesa em casa do fariseu, trouxe um frasco de alabastro com perfume. E colocando-se por detrás dele e chorando, começou a banhar-lhe os pés com lágrimas; secava-os com os cabelos e beijava os pés dele e ungia-os com perfume.
Vendo isto, o fariseu que o convidara disse para consigo: «Se este homem fosse profeta, saberia quem e que tipo de mulher é esta que lhe está a tocar, porque é uma pecadora.»
Então Jesus disse-lhe em resposta: «Simão, tenho uma coisa para te dizer.» Ele disse: «Fala, Mestre.» «Dois devedores tinham um prestamista: um deles devia-lhe quinhentos denários e o outro cinquenta. Não tendo eles com que pagar, perdoou aos dois. Qual deles o amará mais?» Simão disse em resposta: «Aquele a quem perdoou mais dívida, creio eu.» Jesus disse-lhe: «Julgaste bem.» E, voltando-se para a mulher, disse a Simão: «Vês esta mulher? Entrei em tua casa e não me deste água para os pés; ela, porém, banhou-me os pés com as suas lágrimas e secou-os com os seus cabelos. Não me deste um beijo; mas ela, desde que entrou, não deixou de beijar-me os pés. Não me ungiste a cabeça com azeite, e ela ungiu-me os pés com perfume. Por isso, digo-te que lhe estão perdoados os seus muitos pecados, porque muito amou; mas aquele, a quem pouco se perdoa, pouco ama.» Depois, disse à mulher: «Os teus pecados estão perdoados.»
Começaram então os convivas a dizer entre si: «Quem é este que até perdoa os pecados?» E Jesus disse à mulher:
«A tua fé te salvou. Vai em paz.»
À atenção e ao cuidado de qualquer pecador e de qualquer "mestre", entre os muitos que todos nós somos, deixo a nota observadora do professor Frederico Lourenço: «estão perdoados os seus muitos pecados, porque muito amou; mas aquele a quem pouco se perdoa, pouco ama» -a formulação da frase em grego (hai hamartíai hai pollaí) sustém a interpretação de que foram perdoados todos os pecados da mulher. O amor, como circunstância mitigadora do pecado («porque muito amou») - faz pensar em I Pedro, 4, 8: «acima de tudo mantende entre vós um amor intenso, porque o amor cobre a multidão dos pecados. Curiosa é a ideia de que aqueles que têm poucos pecados por perdoar são pessoas que pouco amam. Nesta última frase, o tempo verbal é o presente; no caso do amor da pecadora, é o aoristo (égapêsen: amou pontualmente no passado); e no caso dos pecados perdoados, temos o perfeito, permitindo a tradução «os teus pecados foram e continuam perdoados», em virtude da força semântica do perfeito grego como resultado presente de uma ação passada.
Esta afirmação de que «os teus pecados foram e continuam perdoados» parece apontar para um amor misericordioso sempre ativo e sem repouso, uma vocação à conversão que, como diria Hannah Arendt, nos liberta das consequências do que fizemos e restaura a nossa capacidade de agir. O repúdio da pena de morte fundamenta-se no respeito da vida até às suas próprias capacidades de renovação, a misericórdia do Deus dos vivos não se seca, não é juíza impositora de sentenças e penas, é, sempre e só, um apelo à metanoia... Escrevo-te a 21 de setembro, dia de festejar São Mateus, o cobrador de impostos e a sua pessoa nova que seguirá Jesus como seu apóstolo. E leio um passo do Evangelho do seu homónimo (nada, em verdade, nos permite identificar o apóstolo com o evangelista), trecho que está em Mateus, 9, 11-13:
E os fariseus disseram aos discípulos dele: «Porque razão come o vosso mestre com cobradores de impostos e com pecadores?» Jesus, porém, ouviu e disse: «Os saudáveis não têm necessidade de um médico, mas sim os doentes. Mas ide e aprendei o que é isto: quero misericórdia e não sacrifício. Não vim chamar os justos, mas sim os pecadores».
Aqui chegada esta carta, sei que deixarei para outras o quase tudo que tenho ainda para te dizer. Porque, na verdade, não é fácil agir com justiça, nem superar a nossa perplexidade, sempre que nos deparamos com o dilema que contrapõe o rigor do juízo à misericórdia do pensarsentir. E bem sabemos que não há vida social possível sem ordenamento jurídico, nem direitos de todos e cada um sem justiça.
Camilo Maria
Camilo Martins de Oliveira