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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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CARTAS DE CAMILO MARIA DE SAROLEA

 

Minha Princesa de mim:

 

    Não te falo agora, Princesa de mim, de um problema da consciência pessoal de cada um de nós, mas antes me preocupa a inspiração de uma atitude eclesial, isto é, o olhar da caridade sobre o justo e o injusto. E terei de te falar de uma questão insidiosa: a confusão corrente, que se pensa ser a da Igreja "oficial", entre crime e pecado. E, claro está, do embrulho mental e sentimental em que nos meteu tudo isso, pela  insistência em se manter uma intervenção jurisdicional da Igreja sobre o comportamento das pessoas, e em quase todos os aspectos das suas vidas. Entre amigos, como bem sabes, Princesa de mim, costumo dizer que a Igreja padece de um excesso de moralismo canónico e duma correspondente carência de esperança evangélica na acção do Espírito Santo... E esse moralismo começa assim que se considera qualquer ato mais importante do que a inspiração donde decorre ( A.-N. Bertrand, citado em A. Lalande: Vocabulaire technique et critique de la philosophie, 8ª edição, Paris, 1960). Caímos assim no domínio objetivo do direito positivo, a lei de Deus passa a ser lida mais como um código de conduta, com infrações textualmente identificadas, concretamente verificáveis por factos reconhecidos ou pelo reconhecimento, em confissão, dos seus próprios autores. Ora, parece-me que, em sentido ou espírito evangélico, o mandamento novo antes é uma vocação à santidade, um caminho de perfeição cujo prémio é a alegria da semelhança ao Pai (os nossos Padres até lhe chamavam regras de vida santa) do que uma regra totalitária que incessantemente nos ameaça com o inferno. O jugo de Jesus Cristo é suave, dá à nossa liberdade a oportunidade sempre renovada de cooperarmos com o Senhor Deus. Gosto muito daquela definição que o dominicano frei Jean Cardonnel dá do pecado: Le péché c'est la passion de nos limites. Na verdade, o pecado é essencialmente a desmesura do nosso contentamento com a nossa mesquinhez. É como querer fechar-se em casa, cerrando portas e janelas, em dia de sol e brisa mansa.

 

   A realidade do pecado não é catalogável, do mesmo modo em que o é, e tem de ser, pelo direito positivo, qualquer crime, com suas atenuantes e agravantes, como ato que é facto punível por pena objetivamente estipulada. Por isso mesmo, todos os crimes cometidos por gentes da Igreja - e a Igreja somos todos nós - devem ser devidamente denunciados e entregues ao juízo e sentença da justiça civil, pois que até a reparação possível de qualquer infração da lei e da violência sofrida por vítimas, ou da simples violação dos seus direitos, não pode ser isenta da norma que, por fundamento e definição, é, e deve sempre ser, equitativa, isto é, igual para todos.

 

   Outrossim, a Igreja não é um tribunal, nem humano nem divino. É, entre nós, a comunidade da misericórdia de Deus na terra dos homens. O seu serviço não é o de ameaçar ou punir, é o de nos chamarmos, uns aos outros, ao cumprimento da regra do amor, que conduz à visão de Deus. Pelo acolhimento na fé e pela esperança no amor misericordioso de Deus, pelo labor de lançar a ponte sobre esse abismo a que o diplomata e grande poeta francês Alexis Leger (conhecido como Saint-John Perse) assim se referia no discurso que proferiu quando lhe foi entregue o prémio Nobel, em 1960: O verdadeiro drama deste século está na distância que temos deixado crescer entre o homem temporal e o homem intemporal.

 

   E é certo:  a vocação, o risco e o compromisso da - chamemos-lhe assim - "aventura evangélica" de cada um não são sempre iguais, já São Paulo explicava bem como, no corpo da comunhão em Cristo, são muitas e diversas as funções, consoante os dons e o carisma, os serviços e as capacidades. E se a todos nos é pedido seguir Jesus na amoris laetitia, nem a todos é feita a mesma chamada a uma resposta absoluta, ou quase, que é renúncia a família e amigos, a bens e arbitrariedades... Por isso mesmo, a Igreja dos Apóstolos não exigia o celibato aos seus ministros, e o próprio São Paulo aconselhava a escolha dos bispos de entre homens casados e considerados bons pais de família. E o beato Bartolomeu dos Mártires, frade mendicante e dominicano (voluntariamente comprometido com os três votos: pobreza, castidade e obediência) enquanto arcebispo de Braga defendeu, no Concílio de Trento, que não se impusesse a obrigatoriedade do celibato aos padres católicos, pensando na dura vida dos seus párocos em serranias de Barroso.   

 

   A Igreja, hoje tão perplexa pelos escândalos de pedofilia no seu seio - sobretudo pelo envolvimento direto ou encobrimento dos mesmos por muitas das suas "Altas Patentes" (é minha a ironia da designação) - só tem todavia, como repetidamente disse, uma forma de tolerância zero para com os crimes cometidos: entregá-los ao poder judicial da sociedade civil, para que sejam julgados conformemente à lei comum. Aliás, tal gesto talvez inspire outros grupos sociais, confessionais ou laicos, todos, como a Igreja Católica, aí simplesmente cívicos, a diligenciarem o mesmo - pois sabemos bem quantos mais abusos de menores e sevícias sexuais, domésticas e não só, também fora da Igreja se vão cometendo... Esta deverá concentrar-se no exercício da misericórdia cristã para com todos os que, mesmo criminosos, para ela devem ser apenas pecadores. Evitando o disparate de pensar que, com absolvições e promessas de boas intenções se corrigem problemas deste gabarito. A César o que é de César, a Deus o que é de Deus. Lembra-te, Princesa de mim, da palavra de Jesus que bem distingue crime e pecado: quem consentiu no desejo ou vontade de o fazer, já cometeu pecado no seu coração. Aos olhos do deus cristão, o pecado não está nos factos, mas sim no mal que deixarmos habitar o nosso pensarsentir. Os feitos dos homens são certamente passíveis de chamadas de atenção e correção fraterna, sem prejuízo da sua ponderação pelo poder judicial civil, ou consideração pelas medicinas humanas. Mas a consciência, a casa do pecado, essa responde perante Deus, e a Igreja apenas deve abrir-lhe sempre a porta da conversão e reconciliação. A catalogação dos pecados, suas penitências e indulgências, até tem servido para que catecismos não tenham reparado que não se fala, por exemplo, de sexo, nas bem aventuranças, nem no Juízo Final. O que, neste, nos será perguntado é se acudimos e acolhemos quem precisava, que esperava. Revejam-se os catecismos e, já agora, debatam-se em sínodos mais participados questões como  a contracepção e o divórcio que, não sendo crime perante a lei civil, nem sempre serão pecado aos olhos justos de Deus... Para terminar esta carta - em que podia ter-te dito ainda muito mais - deixo-te um parágrafo dum artigo do teólogo americano Stanley Hauerwas, significativamente intitulado The Demands of a Truthful Story: Ethics and the Patoral Task , e publicado na revista Chicago Studies (nº21, 1982). Traduzo:

 

   A primeira tarefa da ética cristã implica uma tentativa de nos ajudar a ver. Porque apenas poderemos agir no mundo que pudermos ver, e só poderemos ver bem o mundo se formos treinados para ver. Não conseguiremos ver só a olhar, mas sim através de habilitações disciplinadas, que se desenvolvem pela iniciação a uma narrativa.

 

   O conceituado professor de teologia no King´s College, em Londres, Alister McGrath, diz (cf. Heresy, Society for Promoting Christian Knowledge, London, 2009) que aquele teólogo americano é um dos muitos escritores contemporâneos a enfatizar que tratar o Cristianismo simplesmente como uma colecção de doutrinas ou declarações de fé leva a uma grave distorção do seu carácter. Antes e mais, ele deve ser visto como diferente caminho de vida, tornado possível pela ação da graça do Espírito Santo, que orienta os seus fiéis para o Pai através de Jesus Cristo.

 

   Sobretudo em sociedades onde o clero se constitui em classe ordenada e "consagrada" pela segregação (com mais fundamentação canónica ou pseudoteológica do que evangélica), e é maioritariamente instruído pela aprendizagem de catecismos, mais do que por formação intelectual adequada a questões teológicas e pastorais, o clima necessário à meditação e reflexão entre a fé e o mundo parece ausente. E, todavia, o caminho da Igreja no mundo deve ser percorrido pela comunhão dos crentes, essa fé que interpela o mundo e deixa o mundo interpelá-la. 

 

Camilo Maria 

 

Camilo Martins de Oliveira