UM OUTONO FLORIDO…
TU CÁ TU LÁ
COM O PATRIMÓNIO
Nova série. 23.10.2018
Poderá parecer estranho, mas um dia destes, caminhando pela cidade, eu que sou campestre, descobri algo que já conhecia, mas não com a exuberância deste ano. Já escrevi algures que as árvores têm memória – e que os jacarandás, originários da América do Sul, nos surpreendem no Outono com uma estranha e inesperada floração. Do que se trata é da lembrança de que a Primavera brasileira ocorre agora e que a exuberância floral é deste tempo. Pois bem, todos os anos dou-me ao cuidado de descobrir uma leve floração nos meus queridos jacarandás. Mas este ano a surpresa ultrapassou o que eu alguma vez supusera. Com os calores inusitados do início do nosso Outono encontrei casos de floração autêntica e exuberante, como se estivéssemos na verdadeira Primavera… Nunca tinha presenciado este fulgor, esta força… Serão talvez efeitos do aquecimento global… O certo, porém, é que os jacarandás deram neste Outono um ar especial da sua graça, confirmando a etimologia da palavra – há dias recordada por José Tolentino Mendonça – como um tempo criador, em que os frutos exprimem em si a força própria da natureza.
Caem as folhas, é certo, mas a natureza assume uma metamorfose criadora. Fiquei deveras feliz ao sentir a vitalidade do património genético. E corro ao meu jardim onde as romãs me chamavam. Começaram a abrir lentamente, o que significa que estão maduras… Depois da alegria dos jacarandás, é a força dos frutos do jardim… E em bom rigor compreendi, como antes e sempre, que esta é a estação da maturidade, que é o corolário de tudo o que foi o ano… Dentro em breve começará a invernia. A natureza entrará em letargia, para ganhar novas forças. Os ursos hibernarão com toda a natureza, e o seu ritmo cardíaco reduzir-se-á para que as energias se não percam… Ah! Quão bela é esta natureza… E quão acolhedor é o jardim quando recupera forças…
E tomo em mãos a obra de António Ramos Rosa. É, de facto, a verdade que está em causa… É “o sopro, a falha e a sombra fascinante”…
A verdade é semelhante a uma adolescente
vibrante, flexível, em radiosa sombra.
Quando fala é a noite translúcida no mar
e a esfera germinal e os anéis da água.
Um apelo suave obstinado se adivinha.
Ela dorme tão perfeitamente despertada
que em si a verdade é o vazio. Ela aspira
à cegueira, ao eclipse, à travessia
dos espelhos até ao último astro. Ela sabe
que o muro está em si. Ela é a sede
e o sopro, a falha e a sombra fascinante.
Ela funda uma arquitetura volante
em suspensas superfícies ondulantes.
Ela é a que solicita e separa, delimita
e dissemina as sílabas solidárias.
António Ramos Rosa, in "Volante Verde"
Agostinho de Morais
A rubrica TU CÁ TU LÁ COM O PATRIMÓNIO foi elaborada no âmbito do Ano Europeu do Património Cultural, que se celebra pela primeira vez em 2018 #europeforculture |