MEDITANDO E PENSANDO PORTUGAL
8. NÃO CULPEM NEM SACRALIZEM O MAR (II)
Mas há quem culpe o mar:
“Mas o mar, o Atlântico, desequilibrou-nos. Ao pé da sedução e do mistério do mar, tudo é relativo. Tudo é pouco. A dificuldade de motivação que os Portugueses têm e a sua dependência do carisma motivador de alguém vêm daí”.
“Faz-nos olhar para o fim das coisas sem olhar para o princípio ou para o meio delas”, pelo que “Os Portugueses, de uma forma geral, confundem desejo com vontade, fantasia com ambição, improvisação com genialidade, esforço com método, impunidade com tolerância”.
Daí a culpa, em todo o caso, ser do mar e, por contraditório que pareça, “O mar tem sempre razão, diz-nos a nossa identidade”[1].
Ter como caraterísticas duradouras, senão mesmo como carateres intrínsecos dos portugueses, por exemplo, uma alegada dificuldade de motivação, falta de método e incapacidade de planeamento aliada ao talento para improvisar, em consonância com o mistério do mar, que nos atrai e torna difícil distinguir o sonho da realidade, é redutor, simplificando, em demasia, o que é complexo. Tê-las como resultantes do modo de ser português, em que a culpa é do mar, que torna tudo pouco, indiferente e relativo, é esquecer que aquelas são sempre suscetíveis de modificação, em razão de condições culturais, económicas, sociais, ou outras, alterando os nossos carateres comportamentais à medida que se altera a natureza estrutural de tais condições.
Se o mar “desequilibra” na sua imensidão avassaladora e misteriosa, como se justifica que não vingue igual raciocínio, em paralelo ou por analogia, em relação a países como a pequena e rica Dinamarca, com uma única fronteira terrestre (como nós), por sinal com a poderosa Alemanha? E por que não quanto a outros, também confrontados com a relevante componente marítima, realçando o que lhe devem em competitividade, liberdade, individualidade, riqueza e soberania, como Singapura, Japão, Canadá, Islândia, Inglaterra e Estados Unidos? Embora influenciando-nos, nunca foi, nem é, culpando-o que nos redimimos, tornando-nos mais europeus através do desejo de dissolução em espaços mais “civilizados” e “desenvolvidos”, mas antes, e sempre, em conjunção com ele.
Há que afastar tendências para hipostasiar o mar como componente da realidade portuguesa, quer culpando-o ou exaltando-o.
Não é culpando-o através de teorias culpabilizantes, endeusando-o, idolatrando-o ou sacralizando-o, através de teorias míticas e messiânicas sobre o seu inexplicável “mistério” e consequente singularidade e universalidade do povo português, que melhor o compreenderemos como fator essencial da nossa identidade e em termos de estratégia.
Para além de um dos maiores ativos que possuímos, a par da língua, é ainda, à semelhança desta, uma realidade óbvia e consensual, que não se restringe a um interesse nacional claro, evidente, manifesto, permanente e irrenunciável, mas também a uma realidade e a um interesse permanentemente estratégico.
Se o critério é a objetividade, há que não qualificar abusivamente como realidade absoluta, inferior ou ter como culpável algo que o não é, havendo que normalizar o mar, objetivando-o racionalmente. Embora saibamos, pela experiência comum, que também tudo é subjetivo, se tivermos como referência que os nossos conhecimentos e pensamentos são consequência da perceção pessoal de cada um de nós, tornando discutível a mera objetividade como critério total.
23.10.2018
Joaquim Miguel de Morgado Patrício
[1] Pinto Leite, António, Portugal, a culpa é do mar, crónica de imprensa publicada e reunida no livro Qual é o mal?, Sopa de Letras, 1.ª edição, Novembro 2002, pp. 31 a 33.