Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

CARTAS DE CAMILO MARIA DE SAROLEA

 

Minha Princesa de mim:

 

   A dado passo (página 72) do meu Fomos em Busca do Japão, escrevi: Já referi Shusaku Endo, e com ele nos interrogámos sobre o porquê do cristianismo surgir, aos japoneses, como estrangeiro. E verificámos, com o professor Suzuki Norihisa, como o cristianismo progrediu no Japão em tempos de mutação social e subversão de valores, mas esses são, simultaneamente, períodos em que também se faz sentir uma maior necessidade de coesão nacional. Esta manhã, relendo este trecho e outros que adiante citarei, ocorreu-me ainda um passo do An 1000 An 2000 - Sur les Traces de nos Peurs, de Georges Duby (Textuel, Paris, 1995), livro que comprei e li em Tokyo, comparando a Europa medieval (aqui no século XIII) à presente: Também temos uma visão clara da evolução das mentalidades. Nesse período de forte crescimento, como atualmente, os filhos não pensavam como os pais. Apesar dessa sociedade muito hierarquizada cultivar de modo fundamental o respeito dos antigos. Qualquer súbito e novo modo de pensar é sinal, não só de mudança da circunstância económica, social, política e referencial (ou cultural), mas de um sequente salto para a frente de uma nova geração, seus modos de pensar e artifícios. O tempo e o modo: mudam-se os tempos, mudam-se as vontades.

 

   O tempo e o modo do Japão - escrevia eu então - à hora da chegada dos portugueses, será a circunstância em que se desenvolverá o chamado século cristão, com o progresso rápido da evangelização e, depois, com as perseguições, até ao martírio de muitos (sobretudo japoneses) e à expulsão de todos os missionários e dos portugueses mercadores. As rivalidades entre senhores feudais, a sua própria concorrência ao batismo cristão para obterem armas de fogo e o benefício do comércio dos portugueses (sobretudo este, posto que, quanto a mosquetes, depressa os japoneses os fabricaram em Sakai); o movimento de unificação conduzido pelos senhores da guerra Nobunaga, Hideyoshi e Yeasu, este vindo a ser o iniciador do shogunato Tokugawa; a influência política das seitas e mosteiros budistas (e falarei dos kenmon); a desconfiança dos bakufu, aliás alimentada por adventícios holandeses e ingleses, de que a evangelização católica visava objetivos de cruzada e conquista política... Tudo isto pesou no destino do cristianismo e dos portugueses no Japão! Diga-se, a talho de fouce, que a tal ideia de cruzada não era apenas pura invenção protestante: os próprios Xavier, Valignano e outros jesuítas tiveram muitas vezes de enfrentar pessoas e conceitos firmados nas cortes portuguesa e espanhola, que defendiam que o Japão deveria ser outro Peru, como terra de conquista espiritual e temporal!

 

   Claro fique que os concorrentes holandeses e ingleses exploraram quanto possível o receio semeado, servindo-se da sua qualidade de cristãos protestantes e adversários dos católicos ibéricos. Não esqueças, Princesa, que aquilo a que hoje se chama a primeira globalização - e foi a expansão, primeiro ibérica, logo europeia, pelos cantos do mundo - a toda a parte levou essa mistura política, traduzida em guerras, de rivalidades económicas, concorrências comerciais, e confrontos religiosos fratricidas. Aliás, lutas entre irmãos, e intrigas, não foram apanágio exclusivo de reformados contra tridentinos e vice-versa: no Japão, por exemplo, a partir do momento em que se relaxou o Padroado Português e, pela rota de Manila, foram chegando missionários de outras ordens religiosas, também os católicos entre si se foram pregando umas partidinhas... Não quero fazer alarde de investigação histórica (nem sequer historiador sou, muito menos investigador) e procuro não te dar aulas, mas tão somente propor-te uma leitura descontraída de coisas passadas. Portanto, passo a ilustrar o período de que te falo com textos respigados do The Christian Century in Japan (1549-1650) de Charles Boxer (University of Califórnia Press, 1951). Traduzo-te alguns:

 

   Um dos lugares comuns da história é que não há confrontações mais amargas do que as engendradas pelo odium theologicum, que parece inseparável de qualquer disputa doutrinal e, mais ainda, em religiões como o Cristianismo e o Budismo que teoricamente deixam tal tensão à paz e boa vontade. O registo da Igreja Cristã a este respeito até é mais negro do que o dos sequazes do Iluminado, e a calúnia mútua a que as ordens católicas romanas chegaram no Extremo Oriente foi uma das principais causas do relativo falhanço das suas missões na China e no Japão. Como observou o Professor Murdoch [cf. Murdoch, James, e Isso, Yamagata, A History of Japan during the Century of Early Foreign Intercourse, 1542-1651, Kobe, 1903], a simples verdade dos factos é que, entre 1564 e 1614, pelo menos, entre jesuítas e franciscanos, no Japão, se chegou quase à guerra à facada, tal como sucederia no Paraguai, poucos anos depois. Não há historiações da Igreja que cheguem para esconder tal verdade a quem queira dar-se ao trabalho de gastar algum tempo a analisar as cartas que as missões daquelas Ordem e Companhia enviaram às respetivas sedes.

 

   Não tenho bem a certeza de em quem é que o Professor Murdoch pensava quando empregou o termo "historiações da Igreja" [Church historianizing], visto que os coevos participantes em tão pouco edificantes disputas não tentaram esconder o que tinham por verdade histórica, nem tampouco o fizeram os protagonistas Jesuítas e Dominicanos da igualmente amarga querela acerca dos ritos chineses, que convulsionou a Igreja Católica no século seguinte. Pelo contrário, a franqueza e chã linguagem dos seus respetivos porta-vozes não deixam a mínima dúvida da sua sinceridade, pense-se o que se pensar dos motivos (muitas vezes irrisórios quanto baste) que inspiraram essas erupções de inveja, ódio, malícia e falta de caridade. Frailes idiotas era um termo de opróbio usado pelos jesuítas muito antes de se tornar num grito de guerra dos anticlericais espanhóis no século XIX.

 

   [Ainda que não te escreva esta para te falar de história, aproveito-lhe a oportunidade de abrir um trecho só para te dizer que, na circunstância do Padroado Português do Oriente, em que se incluíam China e Japão, e apesar da sede do paralelo Patronazgo Espanhol estar nas Filipinas, a norma estabelecida pela coroa dos Áustria espanhóis, que submetia a si os dois reinos (Espanha e Portugal) e seus impérios, ordenava que a administração ultramarina de cada um fosse independente da do outro, bem como separadas as respetivas áreas de missionação. Desse modo, a presença e atividade das missões espanholas de outras ordens religiosas no Japão era ilegal, visto que, desde Dom João III, o Padroado fora confiado aos cuidados da Companhia de Jesus. Mas não te será difícil entender como o mui lucrativo comércio triangular (luso-nipo-chinês) era naturalmente cobiçado pelos mercadores espanhóis estabelecidos em Manila, onde arribavam pela rota do Pacífico, vindos do Peru... E a ganância pode muito.]

 

   Fechado o parêntese, volto ao tema da distorção de outrem e do próprio, por força, não tanto de divergências ou de propostas alternativas, em si mesmas, mas da concorrência entre rivais e das consequentes ganas de cada qual ser superior aos outros. É interessante verificar como a ideia das virtudes da concorrência como indispensáveis fatores de progresso e, finalmente, de justiça, não só fez dela a palavra de ordem para a viabilização de qualquer sociedade política e económica verdadeiramente liberal e democrática, como até canonizaram a agressividade como virtude heroica, e a ambição de dinheiro e poder como causa efetiva de saúde social e fim último do esforço individual.

 

  Concomitantemente se esquecem os efeitos colaterais ou secundários decorrentes da degenerescência da competição em tirania concorrencial. Ou, se assim melhor entenderes, Princesa de mim, se olvida a parábola do barranco de cegos. Tal como os missionários cristãos, no Japão do século XVI/XVII, não aprenderam com a lembrança de que uma das razões do seu êxito inicial na conversão de japoneses estar precisamente na incerteza que os nipónicos experimentavam com a divisão e a concorrência agressiva das seitas budistas entre si, tal acontecendo, diria o professor Norihisa, em período de necessidade de coesão nacional. Assim também hoje, muito se fala de crise das democracias liberais, ameaçadas por populismos, nacionalismos estremes ou, ainda, por agressões de fundamentalismos islâmicos e sabotagens russas e chinesas... Mas pouco se faz uma nossa introspeção -  exercício que talvez nos conduzisse à perceção de revisões necessárias da nossa cultura e comportamentos. Ao correr da pena epistolográfica - que, neste caso, é um teclado de computador portátil - vou então desafiar-te a recordares comigo alguns exemplos das nossas correntes contradições e perplexidades. Não seguirei qualquer ordem preestabelecida, vai tudo ao jeito do Vitorino Nemésio, isto é, do meu se bem me lembro... E assim irá por etapas, isto é, por cartas várias.

 

Camilo Maria

 

Camilo Martins de Oliveira