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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

CRÓNICAS PLURICULTURAIS

 

20. DO DIREITO NATURAL E POSITIVO NOS DIREITOS HUMANOS

 

Primordialmente os direitos humanos apoiam-se no jusnaturalismo, que tem como denominador comum um sistema de princípios e normas que se designa por direito natural (aquele que o é por natureza), constituído por um conjunto de fundamentos e regras superiores ao direito positivo, valendo independentemente de qualquer enunciação e reconhecimento legal, ao invés do direito positivo, tido como artificial e de invenção humana, razão pela qual este se subordina àquele, que por natureza lhe é superior, se lhe antecede e antepõe.

 

Por exemplo, quando se diz que a pena de morte ofende e viola o direito à vida, defende-se uma realidade que não depende de estar ou não positivada na lei, embora nada impeça que a lei positive o direito à vida como direito humano inviolável, dado que, ao fazê-lo, exclui a pena de morte e torna mais eficaz a defesa e proteção desse direito humano.       

 

Teoricamente a posição mais favorável aos direitos humanos é a que reivindica a sua não necessidade de positivação embora, na prática, a mais eficaz, em termos de defesa e proteção efetiva, seja a que advoga a sua positivação. 

 

Daí tidos como direitos (humanos) naturais, inalienáveis, intransmissíveis, indisponíveis, inatos, imanentes e inerentes a todo o ser humano individualmente considerado, tendo como núcleo central o indivíduo na sua singularidade, único e  irrepetível, cujo sentimento de pertença comum existe com toda a humanidade.

 

Sendo também direitos que se antecedem e antepõem ao Estado, porque pré-determinados e pré-fixados ao poder estadual, ou qualquer outro, constituindo limites ao poder estadual e a quaisquer abusos de autoridade e poder, por maioria de razão legitimados na sequência dos horrores bélicos e crimes contra a humanidade das duas grandes guerras mundiais.     

 

Apesar de predominantemente positivista, laica e tecnicista a interpretação e aplicação do Direito na nossa civilização, isso não significa um total abandono do direito natural, tido como um ideal, sempre presente e recorrente, no sentido de um Direito  humanamente justo, gozando de uma “validade” supraespacial, supratemporal e suprapositiva, tendo como expoente máximo os direitos humanos, via exigência de respeito pela dignidade da pessoa humana, como decorre dos artigos 1.º, 16.º e 18.º da atual Constituição da República Portuguesa.

 

27.11.2018
Joaquim Miguel de Morgado Patrício

CRÓNICA DA CULTURA

A Matemática porque é também preciso resistir às simplificações grosseiras

 

O desinteresse pelo ajuste das impurezas do pensar quando lidamos com assuntos muitíssimo complexos, sobretudo quando, até mesmo as bolas da sorte, aparentemente escapam às leis da natureza e apenas contribuem para erros de raciocínio, o que daqui emerge não é particularmente abonatório para o retrato da humanidade.

 

Quem pensa que basta admitir que alguém possua a verdade e que, por esse facto, a possa impor aos outros, desconhecendo que nenhum de nós sabe isoladamente, e que vivemos numa rede de interdependências cognitivas, então desconhece que uma das características da Matemática é justamente a sua integração vertical no nosso raciocínio de modo a que ele não suba para o andar de cima sem ter entendido o andar inferior.

 

Recordo que me ensinaram que o algoritmo de Euclides fora um método eficiente para se calcular o máximo divisor comum, esse mesmo que hoje com pequenas pertinências é utilizado nos computadores.

 

Que mais não seja, há também que pensar que a Matemática é necessariamente uma questão de educação, e é sobretudo um processo, um processo para além da aldeia de pensamento que nos querem fazer crer que nos basta, que nos basta a ela aceder, e pronto! eis que já percebemos que um resultado matemático, tal como uma lei da Física, é verdadeiro ou falso independentemente das referencias culturais onde assim o constatemos.

 

E nada mais falso afinal do que se julgar que foi na aldeia murada que aprendemos esta realidade.

 

Em rigor o processo a que acima nos referimos referente à Matemática é um processo internacional, independentemente de existirem escolas de Matemática. Lamenta-se, de quando em vez, que, em Portugal, o lugar da Matemática seja um lugar onde se arrumam de vez os obstáculos e que as ambições de a conhecerem sejam meras tendências, na sua maioria.

 

Do pouco a que acedi no seu estudo e do tempo que ainda hoje me ocupa a sua Casa para que me sinta numa razão que muito assista à minha escrita, sinto cada vez mais que a Matemática é necessariamente uma liberdade para a qualidade de vida do pensar e para a higiene das ideias, e, é lugar por excelência onde se joga o jogo decisivo.

 

Confesso que sempre senti a Matemática como uma postura revolucionária indispensável no processo do pensar, e, confesso que sempre a vi – excecionando um caso – a ser transmitida, ensinada, exemplificada, não como quem conta uma história de amplo nexo, mas como quem conta que um país é pobre porque padece dos males x e y, sem alternativa de que, a soma destes dois, possa ser diferente de quatro, no sentido de dois x mais dois y.

 

Talvez o exemplo dos países que têm um ensino não superior exigente para todos, de mãos dadas com a seleção atenta, possa provar que o talento da perceção da Matemática reside na excelência de um sistema de ensino.

 

É com felicidade que hoje já vejo, até em programas dos meios de comunicação, a Matemática e as Artes, legitimarem casamentos, nos quais a Música, a Poesia, a Dança, a Arquitectura, a Pintura, o Diálogo, enfim tudo o que é essência, conferir e receber poder de entendimento ao papel-chave de um número, ou de uma letra de um ângulo de geometria espacial, ou de um simples sinal, função insubstituível para nos entendermos fora das simplificações grosseiras do pensar e do dizer, enfim, próximos da lógica do cerne.

 

Sei que não é possível melhorar qualquer área do saber individualmente sem melhorar a qualidade global do sistema escolar. Não douremos as pílulas. Se Pedro Nunes (1502-1578) foi um grande matemático, dos poucos portugueses que citamos nesta área, foi porque subiu acima da mediania e deu profundo contributo ao desenvolver a Matemática do seu tempo. Contudo, afirma-se que Portugal nunca produziu um génio matemático. Enfim, em Portugal, registe-se, que o ensino das ciências sempre foi deficiente. Ora, atualmente, publica-se a ritmo crescente, artigos científicos em revistas internacionais de referência. Assim sendo, estamos a tentar recuperar de um desenvolvimento da ciência que em Portugal terá tido mais de anos de decadência do que de anos de ouro, mesmo considerando a época extraordinária dos Descobrimentos.

 

Na verdade até na escrita, a investigação tem chegado bem pouco à grande passada de Pedro Nunes no seu contributo para a ciência náutica. Pretendo com isto dizer que o domínio da palavra tem de assentar na fantástica utopia do seu perfeito manejo e na correspondência com as infinitas realidades a que se pretende referir, sobretudo se na ascensão dessa escrita estiver a bússola que possa não ensinar a resolver a equação de segundo grau, mas a pressentir a vida dessa equação, o seu poder de agir sobre o Universo.

 

Talvez assim, possamos afirmar que daí, à dependência da curiosidade nossa face ao Saber, eis a Matemática, generosa, afinal prenha de ideias subtis que nos oferece a grande chave para a desencriptação do mundo que nos rodeia, e a mão da Filosofia vívida a expor o propósito e o sentido.

 

A linguagem e o pensamento têm uma capacidade fabulosa para representar a realidade. Todavia, somos irremediavelmente falíveis, mas podemos diminuir os riscos se nos confrontarmos em cadeia, e só desse modo, entenderemos que nem todas as realidades se submetem às nossas representações, carece que a sensatez judiciosa dos nossos raciocínios e dos nossos envolvimentos estejam à altura da tarefa que nos cabe.

 

Eis o repto de Gowers e Michael Nielsen

 

«quem poderia imaginar que o registo de trabalho de um projeto matemático fosse tão interessante de ler como um thriller

 

A Matemática e o Português, a História e a Filosofia, a Física e a Etologia, a título de exemplo, envolvem radiações de origem solar que só se esgotarão se se esgotar a nossa criatividade: que esta se não cristalize, é da nossa exclusiva responsabilidade.

 

Teresa Bracinha Vieira

A FORÇA DO ATO CRIADOR

 

Adolf Loos e a procura por uma arquitetura pura.

 

'My architecture is not conceived in plans, but in spaces (cubes). I do not design floor plans, facades, sections. I design spaces.', Adolf Loos, 1930

 

Adolf Loos (1870-1933) considerava o ornamento como o resultado evidente de uma cultura em declínio.

 

Loos ansiava pelo remover total de todo o tipo de camadas, de disfarces e de máscaras que pusessem em causa a verdadeira vocação da arquitetura - só assim o ser humano poderia ser mais honesto e profundo. Para Adolf Loos, a arquitetura deveria, acima de tudo, responder a necessidades físicas que garantissem o conforto e facilitassem as mais pequenas tarefas do quotidiano. 

 

'The house has to please everyone, contrary to the work of art which does not. The work of art is a private matter for the artist. The house is not.', A. Loos

 

Loos acreditava na fundação de uma nova verdade, assim que o ornamento desaparecesse - uma verdade que desse a ver todas as qualidades da forma com proporção claridade e medida e até talvez universalidade.

 

O advento da máquina e da produção em massa parecia só ter trazido o gosto pelo Kitch. Desde cedo, Loos refletia nos seus ensaios acerca de objetos simples do dia a dia. E antecipou Corbusier, ao assumir o fascínio pela estética da máquina e assim determinar os barcos, os carros, as máquinas a vapor e as bicicletas como os verdadeiros objetos da nova vida moderna - estes sim continham as exatas qualidades da forma pura.

 

Viena, e mais tarde Berlim e Paris, cultivavam reações contra a Arte Nova (que adquiria cada vez mais popularidade, sobretudo na primeira década do século XX). Esta reação  era alimentada em parte pelos ideais Arts and Craft socialistas de simplicidade e integridade; por outra parte pela conceção abstrata do classicismo (não tanto relacionado com o uso e significado das ordens arquitetónicas) mas sobretudo ligada a uma sensibilidade aos valores essenciais clássicos (de simetria claridade, proporção, austeridade, solidez); e por fim também ligada ao esforço do arquiteto em dar expressão aos valores do novo mundo moderno, através de soluções arquitetónicas francas, sinceras e diretas e que dão mais importância à função e à estrutura.

 

Loos permaneceu três anos nos Estados Unidos e aí familiarizou-se com as primeiras conquistas da Escola de Chicago e com os escritos teóricos de Louis Sullivan. Tomava como referência Karl Friedrich Schinkel assim como olhava com admiração para o interior informal e confortável anglo-saxónico. 

 

A Casa Steiner (1910) é o projeto mais arrojado até então e antecipa quase por uma década as primeiras obras cúbicas e brancas de Corbusier. O volume é reduzido ao mínimo, as superfícies são planas, o volume é monolítico, mas ainda se supõe algum valor de simetria. Algumas aberturas estão dispostas livremente e revelam já um interior complexo e diverso. Para atender a uma ideia de conforto personalizado, Loos interpenetrava constante todos espaços, que se construíam com alturas diferentes.

 

Adolf Loos ao afirmar o gosto pela integridade, pela materialidade (a pedra e a madeira assumiam, por vezes a monumentalidade e a singularidade necessárias) e pela espacialidade, ansiava por libertar eticamente a humanidade do ornamento e de todo o trabalho supérfluo - que implicava escravidão artesanal.

 

'A lack of ornamentation is a sign of spiritual strength.',

A. Loos



Ana Ruepp

SOBRE SARAMAGO E DEUS

 

O Centro de Literatura Portuguesa da Universidade de Coimbra e a Câmara Municipal de Coimbra organizaram nos passados dias 8, 9 e 10 de Outubro, no Convento de São Francisco de Coimbra, um Congresso Internacional: “José Saramago: 20 anos com o Prémio Nobel”. Carlos Reis e Ana Peixinho pediram-me uma intervenção sobre Saramago e Deus. O que aí fica é uma breve síntese da minha fala nesse Congresso.

 

1. Numa entrevista dada a João Céu e Silva, uma das últimas, se não a última, Saramago referiu-se-me com admiração por ter lido e gostado do seu livro Caim. “Até fiquei surpreendido quando ouvi um teólogo — uma coisa é um teólogo e outra um padre — Anselmo Borges, dizer que tinha gostado do livro”. Mas na Net também se diz, e é verdade, que fui crítico por causa de alguma unilateralidade com que Saramago leu a Bíblia. Assim, a minha intervenção quer ser essencialmente um esclarecimento sobre essa minha dupla visão.

 

2. Saramago foi à Academia Sueca dizer, no dia 7 de Dezembro de 1998, logo na primeira frase: “O homem mais sábio que conheci em toda a minha vida não sabia ler nem escrever”.

 

Quando me expresso sobre o diálogo inter-religioso, digo sempre, com escândalo de alguns, que desse diálogo também fazem parte os ateus, os ateus que sabem o que isso quer dizer — os crentes também só o são verdadeiramente, se souberem o que isso quer dizer. Fazem parte, porque são eles que, estando de fora, mais facilmente vêem as superstições, as inumanidades e até as barbaridades que tantas vezes infectam as religiões. Assim, à maneira de Saramago, também digo: foi com dois ateus que aprendi do melhor da Teologia: Ernst Bloch e o nosso homenageado, José Saramago. Mais com Bloch, porque, dada a situação da Teologia na Universidade alemã — em todas as Universidades, há duas Faculdades de Teologia, uma católica e outra protestante —, ele tinha profundos conhecimentos bíblicos. Neste enquadramento, refiro três pontos.

 

2.1. Também sou ateu em relação ao deus denunciado por eles. Porque é isso que se deve ser, se se quiser manter a dignidade humana face a um deus brutal, irresponsável, ciumento, mesquinho, tirânico, cruel, sádico, sanguinário... Neste sentido, estou de acordo com Ernst Bloch, quando escreveu que “só um bom ateu pode ser um bom cristão, só um bom cristão pode ser um bom ateu”.

 

Previno que a boa exegese mostra que nem sempre está no texto bíblico aquilo que o puseram a dizer e que passou à tradição. Por exemplo, o caso de Isaac, cujo significado é o contrário daquilo que frequentemente se ensinou: ao aparecer o cordeiro, Deus está a proclamar que não quer o sacrifício de seres humanos. Mas, de facto,  muitas vezes foi a outra tradição que passou, aquela a que se referiu o prestigiado biblista católico do século XX, Norbert Lohfink, quando constatou que a Bíblia judaica é “um dos livros mais cheios de sangue da literatura mundial”.

 

Como aceitar um deus que castigasse a Humanidade inteira por causa de os primeiros pais terem comido uma maçã? De qualquer modo, no quadro da evolução, quem foram os primeiros e como é que poderiam ter um acto de liberdade tal que arrastasse consigo todos os males do mundo, incluindo a morte? Que sentido pode ter um pecado original herdado, de tal modo que todas as crianças seriam geradas em pecado, do qual só o baptismo pode libertar?

 

E Jesus não foi enviado por Deus para ser morto e com a sua morte pagar a dívida infinita da Humanidade para com Deus e Deus aplacar a sua ira e reconciliar-se com a Humanidade. Que pai decente imporia isso ao seu filho querido, condenando-o à morte?

 

Caim, segundo Saramago, vai, castigado, pelo mundo, não sem perguntar a deus porque é que o não impediu de matar o irmão, Abel. Deus é, pois, co-responsável por esse acto...

 

Trata-se de um deus arbitrário, irresponsável, ciumento, pior do que nós.  

 

Ficamos arrepiados, quando lemos que Deus exigiu de Abraão que matasse o seu filho Isaac. O próprio filósofo Sören Kierkegaard, que propunha Abraão como modelo da fé incondicional, viu o horror da situação e diz que o miúdo voltou para casa e deixou de acreditar em deus e Abraão nunca disse uma palavra a Sara sobre o acontecido.

 

Sodoma e Gomorra. Lá também havia crianças inocentes. E deus não se lembrou delas?

 

Babel. Deus, em vez de castigar os homens pelo seu feito, deveria honrar-se com o êxito das suas criaturas. É ciumento, invejoso.

 

Também no Dilúvio, deus não teve compaixão para com os inocentes. A mesma acusação vale para a situação dos filhos primogénitos dos egípcios.

 

Ah, e, aquando do nascimento de Jesus, houve a matança dos inocentes e José não se preocupou. No regresso do Egipto nem sequer perguntou às mães pela sua dor...

 

Do pior: as guerras religiosas, pois é deus contra deus, e as vítimas são os homens e as mulheres e as crianças... Como é possível deus mandar matar, haver guerras em nome de deus?

 

2.2. Ernst Bloch foi mais longe. Sabendo Teologia e exegese, distinguiu muito bem duas camadas na Bíblia: a do deus dos senhores, do deus dominador, tirânico, imoral e opressor e a do Deus da libertação e dignificação de todos. Em conexão, viu também dois tipos de Igreja: a Igreja dos senhores, a Igreja do poder inquisitorial, opressora, e a Igreja dos pobres, do bem, da justiça, da paz. Para Bloch, há um duplo fio condutor na Bíblia: o sacerdotal, em que domina o deus opressor, dos senhores, e o profético-messiânico-apocalíptico, que anuncia o Reino de Deus, a herdar meta-religiosamente como Reino do Homem: “Esta vida no horizonte do futuro veio ao mundo pela Bíblia.”

 

Jesus agiu como um homem bom, escreve Bloch, “algo que ainda não tinha acontecido”. Ele personifica a bondade e o amor e nele exprime-se e realiza-se o melhor da esperança, o ainda não do que a Humanidade pode e deve ser. Ele não foi morto por Deus seu Pai, mas pelo religião do Templo, a religião dos sacerdotes, que viviam da exploração dos crentes.

 

O que devemos ao cristianismo? O próprio conceito de pessoa foi dentro dos debates à volta da tentativa de compreender Jesus Cristo que surgiu. Sabemos que nenhum homem pode ser “tratado como gado”: foi através de Jesus que o sabemos, porque nele, por ele e com ele, se proclama a dignidade infinita de todo o ser humano.

 

Onde é que nasceu a Declaração dos Direitos Humanos? Foi na China? Na Arábia?

 

Jürgen Habermas, o filósofo mais influente da actualidade, agnóstico, escreveu que a democracia não é senão a tradução para a política da ideia cristã de que cada homem e cada mulher são filhos de Deus. Isso, politicamente traduzido, dá um homem um voto, uma mulher um voto.

 

Não haveria o horror da pedofilia, também na Igreja, se se ouvisse a maior proclamação de sempre feita por Jesus sobre a dignidade das crianças: “Deixai vir a mim as criancinhas, porque delas é o Reino de Deus”, acrescentando logo a seguir: “Ai de quem escandalizar uma criança: mais valia atar-lhe uma mó de moinho ao pescoço e ser lançado ao mar”.

 

Tudo isto para repetir o que disse logo no início da minha fala: estou grato, muito grato, a Saramago, mas não aceito a sua afirmação: “A história dos homens é a história dos seus desentendimentos com deus, nem ele nos entende a nós, nem nós o entendemos a ele”. A sua leitura foi unilateral.

 

3. O que é ser ateu? Quando se diz que se é ateu, é preciso começar por perguntar o que se entende por isso e concretamente em relação a que Deus se é ateu.

 

Há dois modos de negação de Deus: a negação real e a negação determinada.

 

Por negação determinada entende-se a negação de um determinado deus, de uma certa imagem de deus. Foi o que Saramago fez. Como podia ele ou alguém intelectualmente honesto aceitar um deus cruel e sanguinário? Daí a inversão da oração de Cristo na Cruz, no Evangelho segundo Jesus Cristo.  Onde no Evangelho se diz: “Pai, perdoa-lhes porque não sabem o que fazem”, lê-se em Saramago: “Homens, perdoai-lhe porque ele não sabe o que fez”.

 

A negação determinada não significa negação real. A pergunta é, portanto, se Saramago negou realmente Deus ou se, pelo contrário, na negação do deus arbitrário e sanguinário, não está dialecticamente presente o clamor pelo único Deus verdadeiro, o do amor incondicional, o do Anti-mal.

 

De qualquer modo, segundo Saramago, “Deus é o silêncio do universo, e o ser humano o grito que dá sentido a esse silêncio”. “Esta definição de Saramago é a mais bela que alguma vez li ou ouvi”, escreveu o teólogo Juan José Tamayo. “Essa definição está mais perto de um místico do que de um ateu”.

 

4. No final da minha intervenção, a viúva de Saramago, Pilar del Río, aproximou-se, agradeceu e disse-me: Sabe qual foi o contexto desse diálogo entre o meu marido e Tamayo? Íamos os três pela Plaza de la Giralda, em Sevilha, e os sinos da catedral repicaram, e Saramago: “Os sinos tocam porque está um teólogo a passar”. E Tamayo retorquiu: “Não, os sinos repicam porque um ateu está prestes a converter-se ao cristianismo”.

 

Anselmo Borges

Padre e professor de Filosofia
Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN | 24 NOV 2018

UM DIA COM JEAN MONNET

 

TU CÁ TU LÁ
COM O PATRIMÓNIO

Especial. 27 de novembro de 2018.

 

Jean Monnet era um visionário. Começou a sua vida como comerciante de Cognac, e assim pôde conhecer o mundo e sobretudo a sua diversidade. Viajou muito, menos para passear do que para obter resultados. Um dia, já no ocaso da sua existência, passeava na sua herdade com o feitor. Parou e disse: “Aqui deveria haver um carvalho, este é o espaço ideal para o efeito”. O feitor concordou com o velho Senhor, mas foi dizendo que uma árvore dessas demoraria muito a crescer, e pela ordem natural das coisas já não seria vista no seu esplendor por Monnet. Nesse ponto, o ancião, cheio de sabedoria, disse determinado: “Então planta-se já antes de almoço”… A resposta caracteriza bem o espírito indómito de quem sabia que o querer e a determinação são sempre fundamentais, independentemente do calculismo. O importante era criar e fazer, a pensar nas gerações futuras. E foi assim que pensou a Europa, como uma construção de vontades, de esperanças, de valores e de sonhos… E foi a economia e a funcionalidade que o determinou. Como mercador dos tempos modernos, ele sabia que a paz exige confluência de esforços. E num século de guerras, o fundamental seria preparar o entendimento, a segurança e o respeito mútuo. As instituições deveriam convergir e representar os cidadãos. Os interesses comuns deveriam somar-se aos interesses próprios. A imperfeição das sociedades humanas deveria ser um forte incentivo ao gradualismo, no sentido de um mundo melhor. Sem a tentação do Admirável Mundo Novo de Huxley, haveria que recusar a ilusão e o imediatismo. O exemplo dessa árvore plantada ainda antes do almoço, ensina-nos a sermos a um tempo prudentes e audaciosos, para que os bons ventos nos ajudem. “Audatia fortuna juvat” – diziam os latinos… E temos de o entender com espírito positivo. Nunca Jean Monnet disse, porém, que, se voltasse atrás, começaria pela cultura. Foi sim Helène Arweiller que lançou a si mesma esse desafio numa Aula Inaugural na Sorbonne. Tratou-se de uma proposta especulativa. A cultura é por natureza diversa, plural e irrepetível. Zygmunt Bauman advogava, por isso, o método persistente do jardineiro, por contraponto ao do caçador. O jardineiro simboliza a cultura e a sabedoria – e, como tem afirmado Jacques Delors, o método comunitário obriga a passos seguros e à realização de três objetivos incontestáveis -  Paz e segurança. Desenvolvimento humano sustentável e Diversidade cultural. Eis por que o gradualismo obriga a pensar uma sociedade assente na diversidade enquanto comunidade plural de destinos e valores. A Europa vive hoje momentos difíceis e precisa de lutar contra a irrelevância. Ora, um homem do campo, como o autor destas linhas, escritas em Vila Nogueira de Azeitão, a pensar no meu padrinho Frei Agostinho da Cruz, tem de dizer que é chegado o momento de pensarmos mais longe do que um palmo à frente do nosso nariz. Fui e sou um fiel anglófilo, mas entendo cada vez menos os meus amigos britânicos. Estou muito preocupado, pois podem faltar peças para o meu querido MGA. Mas o pior não é isso. Os meus amigos súbditos de Sua Majestade Sereníssima estão em cada dia que passa a caminhar para o precipício. Muitos não compreendem que ao tempo dos Impérios sucedeu o tempo das interdependências. E alguém me dizia, num dos meus passeios matutinos, quando a humidade nos deixa caminhar, que depois de se terem destruído as fronteiras erigiram-se muros, incompreensões e tribalismos… Há receitas? Não há! Não tenho ilusões. O Brexit está condenado a prazo, mas vai haver um estranho e duro purgatório para todos. Ouvi ontem mesmo a voz do velho Winston, em Zurique. Ele falava de paz contra o ressentimento, e de cooperação em lugar do egoísmo. E eu não esqueço conversas antigas com o Embaixador Calvet de Magalhães, a dizer-me que a aliança luso-britânica levou-nos até à EFTA / AECL e às Comunidades Europeias – e que a Europa do futuro precisaria sempre de uma frente atlântica… Volto rapidamente a Jean Monnet. O carvalho plantado antes do almoço, a cultura como caleidoscópio de diferenças, a economia como convergência de valores e interesses, as instituições mediadoras construídas passo a passo. Eis o que não devemos esquecer… E agora vou ligar o meu MG, para que a bateria não vá abaixo… Mas antes deixo-vos com a primeira parte do poema «Europa» de Adolfo Casais Monteiro, lido aos microfones da BBC por António Pedro:

 

«Europa, sonho futuro!

Europa, manhã por vir,

fronteiras sem cães de guarda,

nações com seu riso franco

abertas de par em par!

 

Europa sem misérias arrastando seus andrajos,

virás um dia? virá o dia

em que renasças purificada?

Serás um dia o lar comum dos que nasceram

no teu solo devastado?

Saberás renascer, Fénix, das cinzas

em que arda enfim, falsa grandeza,

a glória que teus povos se sonharam

— cada um para si te querendo toda?

 

Europa, sonho futuro,

se algum dia há-se-ser!

Europa que não soubeste

ouvir do fundo dos tempos

a voz na treva clamando

que tua grandeza não era

só do espírito seres pródiga

se do pão eras avara!

Tua grandeza a fizeram

os que nunca perguntaram

a raça por quem serviam.

Tua glória a ganharam

mãos que livres modelaram

teu corpo livre de algemas

num sonho sempre a alcançar!

 

Europa, ó mundo a criar!

 

Europa, ó sonho por vir

enquanto à terra não desçam

as vozes que já moldaram

tua figura ideal,

Europa, sonho incriado,

até ao dia em que desça

teu espírito sobre as águas!

 

Europa sem misérias arrastando seus andrajos,

virás um dia? virá o dia

em que renasças purificada?

Serás um dia o lar comum dos que nasceram

no teu solo devastado?

Saberás renascer, Fénix, das cinzas

do teu corpo dividido?

 

Europa, tu virás só quando entre as nações

o ódio não tiver a última palavra,

ao ódio não guiar a mão avara,

à mão não der alento o cavo som de enterro

— e do rebanho morto, enfim, à luz do dia,

o homem que sonhaste, Europa, seja vida!»

 

 

Agostinho de Morais

 

 

AEPC.jpg   A rubrica TU CÁ TU LÁ COM O PATRIMÓNIO foi elaborada no âmbito do 
   Ano Europeu do Património Cultural, que se celebra pela primeira vez em 2018
   #europeforculture

 

 

A VIDA DOS LIVROS

 

De 26 de novembro a 2 de dezembro de 2018.

 

Em boa hora, a Universidade da Beira Interior decidiu promover um Colóquio em torno da obra de Miguel Real. Foi uma excelente oportunidade para a realização de uma reflexão e um diálogo aprofundados em torno da obra de um dos mais persistentes e fecundos ensaístas e críticos no panorama português.

 

 

ENSAÍSTA ATENTO
Se refiro o ensaísta, não esqueço o romancista, com provas dadas e justos prémios alcançados, porém sendo um cultor da língua e um fino leitor e autor do romance, notamos (e essa é uma qualidade incontestável) que nunca deixa de pensar a cultura e a identidade, como realidades complexas que não podem passar despercebidas. Ora é a perspetiva do ensaísta que ocupará as linhas que se seguem. E as recentes iniciativas levadas a cabo, aquando do centenário do Padre Manuel Antunes, permitiram um reencontro com as reflexões de Miguel Real, até porque o autor do indispensável Repensar Portugal apontou muitas vezes no sentido de compreender a cultura portuguesa não em termos fechados ou retrospetivos, mas em termos integradores de uma complexidade, incompatível como estereótipos ou simplificações. O humanismo universalista é tudo menos uma marca redutora ou providencialista. Aliás, quando hoje lemos o Padre António Vieira da Clavis Prophetarum, tendo em consideração as mais recentes investigações nesse domínio, percebemos que as ideias de povo eleito ou de uma vocação imperial caem por terra – abrindo caminho ao reconhecimento da dignidade humana como património comum e como objetivo a partilhar pela humanidade… E Miguel Real nos vários registos da sua escrita e da sua reflexão tem procurado demarcar-se da tentação de uma certa predestinação de um povo ou de uma existência… Deste modo, a leitura marcadamente crítica sobre a mediocridade nacional insere-se na tradição das correntes de pensamento que desde tempos imemoriais olham a nossa realidade numa perspetiva crítica, com a preocupação de assegurar uma séria articulação de esforços, capaz de negar o fatalismo do atraso e de criar condições para podermos viver uma melhor defesa do bem comum. Fala-se do escárnio e maldizer, do picaresco, do não nos levarmos demasiado a sério, mas também do querer viver ao ritmo do mundo civilizado – os elementos são vários e as personagens da nossa cultura apresentam-se com características contraditórias, o que as leva a não se eximirem ao sentido fortemente crítico, que não deve ser confundido com puro negativismo.

 

HUMANISMO UNIVERSALISTA
António José Saraiva falava do “estar-se onde não se está”, o que leva os portugueses a serem religiosos e heréticos; ortodoxos, mas heterodoxos; emigrantes mas não colonizadores (por força da miscigenação); aventureiros, mas radicados (como na Diáspora); pobres mas generosos; e atrasados, mas crentes num destino (messianismo). De Gil Vicente a António José da Silva, de Garrett a Camilo e Eça de Queiroz encontramos a exigência crítica como contraponto à indiferença ou ao conformismo. E que é o país de suicidas de Unamuno, que hoje já não seria assim entendido, senão a manifestação séria de um inconformismo, que apenas visa combater a passividade e a irrelevância? A abrir “Portugal – Ser e Representação” Miguel Real cita, sintomaticamente, o Padre Manuel Antunes: “Reencontrar o antigo, por vezes mesmo o mais antigo para criar algo de novo (…). A nossa história multissecular de Povo independente é feita de espaços de continuidade e de espaços de rutura, de períodos de deterioração e de períodos de recuperação, de anos de sonolência e de momentos de crítico despertar, de estados de descrença e de instantes largos de esperança quase tão ampla como o universo”… Uma história antiga, com raízes culturais múltiplas, as alternâncias entre continuidade e recusa, entre altos e baixos (numa ciclotimia de euforia e pessimismo) e o encontro entre vontade e destino – tudo se soma, numa Ibéria em que a nossa “maritimidade” se contrapõe à “continentalidade” de Espanha, projetando nos dois símbolos contrapostos – Fernão Mendes Pinto, como personagem múltipla no mundo, e D. Quixote, como imaginação e sonho. A multiplicidade da aventura da Peregrinação sublima-se na vontade do povo que Herculano encontra como explicação da independência e da unidade. O Brasil é a imagem grandiosa da frente marítima europeia de Portugal, enquanto as Espanhas projetam-se na América em múltiplos países, em razão das autonomias metropolitanas…

 

A DEMANDA DE PORTUGAL
A Portugal, segundo Eduardo Lourenço, faltou mentalidade europeia desde a segunda metade do século XVI. E o que nos ensinou Antero? A não nos escondermos no nosso passado (o Messias de Portugal é o seu próprio passado). O sebastianismo, além de prova póstuma da nacionalidade, é uma alucinação mental delirante, sentimentalmente verdadeira e racionalmente falsa (segundo Miguel Real). “Como nó central do imaginário português, o mito sebastianista sintetizou os quatro complexos culturais recorrentemente sofridos pelos portugueses: o complexo de Viriato ou viriatino, o complexo de Padre António Vieira ou vieirino; o complexo do Marquês de Pombal ou pombalino e o complexo canibalista, vinculado à inveja individual e à intolerância coletiva. Assim, ainda que de origem histórica profundamente negativa, o sebastianismo constitui igualmente uma espécie de motor ético dos portugueses, forçando-os a acreditarem dever ser o futuro melhor do que o presente, mesmo para que tal se sintam obrigados a fugir da medíocre elite portuguesa, que do País se apodera como uma coutada sua e emigrar como o fazem hoje” (o autor escrevia em 2013 na Nova Teoria do Sebastianismo). Aqui se encontra como que uma síntese, que explica, afinal, a severa crítica, em que Miguel Real aprofunda a exigência de termos de fazer mais do que meramente nos adaptarmos e que está bem presente no universo romanesco do autor... Como José Mattoso ou Eduardo Lourenço têm dito, não somos nem melhores nem piores que outros – somos um país médio, com responsabilidades e oportunidades significativas, mas na senda de Herculano tudo depende do que formos capazes de fazer. Um messianismo larvar, a sombra sebástica, a tensão permanente das contradições do nosso código genético, o uso crítico dos nossos mitos para os podermos superar em emancipação – tudo isto constitui pano de fundo do nosso ser… Esta a base para a célebre “psicanálise mítica do destino português”, publicada em primeira mão na revista “Raiz e Utopia”. Miguel Real não é, porém, catalogável. Nós somos realmente uma mistura de fatores contraditórios. E neste ponto, não podemos deixar de recordar a importância que Matias Aires (1705-1763) teve no pensamento do nosso autor. Para o filósofo luso-brasileiro, a verdadeira felicidade não é a ilusória: do poder, da riqueza e da fama; é, sim, a “da aproximação incessante à verdade, exigindo o desmascaramento da vaidade individual e social, findando no estado interior de serenidade de quem sabe (…) que tudo é vaidade”…

 

Guilherme d'Oliveira Martins
Oiça aqui as minhas sugestões - Ensaio Geral, Rádio Renascença

CARTAS DE CAMILO MARIA DE SAROLEA

 

Minha Princesa de mim:

 

   Neste dia mais alegre do novembro deste ano, a luz animando os campos que daqui avisto já nos aconchega mais - corpo e alma que, dizia S. Tomás de Aquino, fazem uma só pessoa - do que a cinza monótona que nos vinha pintando o ar em Outono chuvoso e sombrio. Hoje, como em dia de festa, das minhas janelas descubro manchas claras de luz, quinhões de amarelo e verde pálido ali, e outros, acolá, já da cor de fogo que nos anuncia lareiras e a mim recorda passeios antigos em longínquas paragens, desde o upper-state New York ao Kyomizudera, em Kyoto, quando as árvores outonais (como os momiji) bacantemente nos oferecem ramos com chamas de oiro e vinho. Menos melancólico, volto à leitura abandonada de vários jornais empilhados; reparo em duas entrevistas que, talvez por terem sido feitas a duas pessoas heterodoxas, eu emparelhei no meu ruminante pensarsentir. Duma delas tiro para aqui apenas duas declarações, ambas curtas, mas incisivas: à pergunta Acha que os portugueses têm sentimento de superioridade?  -  Vasco Pulido Valente responde Têm! Com certeza que sim!; e à Como é que vê a direita portuguesa hoje? - contesta: A direita portuguesa hoje não existe. Existem pessoas de direita, não existe direita. [Cf. Público de 21 de outubro]. Da outra, respigo uma resposta mais longa, de Romain Gary a Jacques Chancel, em junho de 1975, no programa da France Inter intitulado Radioscopies, uma espécie de confessionário mediático e laico para escritores, artistas, filósofos, etc., que eu costumava ouvir quando morava em Paris e Bruxelas. As Éditions du sous-sol publicam agora uma antologia escrita dessas conversas. À pergunta Você parece ter muito interesse pelo tema mulheres, que, em sua opinião, não são suficientemente consideradas. Mesmo na hora presente, em que tanto se fala nelas... Resposta: Mesmo sem nos metermos pelo domínio do feminismo propriamente dito, há uma assustadora ausência de feminilidade na nossa civilização. Não quero entrar por propósitos religiosos, até porque sou incréu, mas se olharmos para a palavra de Cristo, ela é essencialmente feminina. A voz de Cristo era uma voz de mulher, pelo menos no sentido tradicional desse termo. Ternura, piedade, amor, bondade, perdão. Mas essas virtudes estão totalmente ausentes de dois mil anos da nossa civilização. Além da igualdade homens-mulheres, que é evidente, é necessária uma transformação dos valores ditos «masculinos» em valores femininos. É por isso que não compreendo os movimentos feministas que se reclamam duma espécie de masculinidade, em partes iguais com os homens. Deviam, pelo contrário, entrincheirar-se cada vez mais, e elaborar valores femininos para com eles fecundar a nossa civilização. Mas talvez seja uma visão demasiado idealista das coisas...

 

   Como sabes, Princesa de mim, também vivo de sonhos e gosto de utopias. E as utopias que alimento sustentam este meu fado de estar dentro e além do mundo, insatisfeito no insatisfatório. Sentir-me em busca de um consolador eterno feminino é mais do que desejar a doçura da condição regressada de ser "maternado" (que, aliás, inspira o sentimento japonês do amae, essa saudade do leito materno): é procurar a mulher como futuro do homem (evocando Aragon), aspirar ao amor da criação inicial, como condição e estrela da vida... Nada há de machista nisto, uma mulher também poderá falar do homem como seu futuro, sem feminismo. Refiro-me ao livro, recentemente publicado, da autoapelidada intelectual católica de esquerda, escritora e jornalista, chefe da redação de Témoignage Chrétien, Christine Pedotti de seu nome. Com o sugestivo título de Jésus, l´homme qui préférait les femmes, retrata - cito a autora - um homem vertical, sábio, pregando a boa nova; descobri-o debruçado, atento, à escuta. Via-o seguro do que dizia, sage e severo, enunciando afirmações poderosas; espantava-me achá-lo perturbado, emocionado, admirativo, mas sabendo também brincar com humor, cheio de piada e de prontas respostas... E a mulher que sou, lenta e seguramente, deixava seduzir-se pelo trintão galileu. Dei-me conta de que, até então, tinha "amado" Jesus projetando sobre ele uma falsa imagem ; via-o com os olhos dos homens que me tinham precedido ao longo dos séculos. Ao fim dessa primeira experiência, soube que era preciso voltar aos textos evangélicos, de modo a prestar particular atenção ao que se passa entre Jesus e as mulheres.

 

   A primeira descoberta da sua nova leitura dos evangelhos, segundo a própria Christinne Pedotti, surge pelo seguinte trecho do de São Lucas (13, 10-17), aqui na tradução de Frederico Lourenço: Jesus estava a ensinar numa das sinagogas. E eis uma mulher com um espírito de cansaço havia dezoito anos; andava curvada e não conseguia endireitar-se completamente. Vendo-a, Jesus chamou-a e disse-lhe: «Mulher, foste liberta do teu cansaço.» E impôs-lhe as mãos. No mesmo instante, ela endireitou-se e começou a dar glória a Deus. Reagindo, o chefe da sinagoga, indignado por ver que Jesus fazia uma cura ao sábado, disse à multidão: «Seis dias há durante os quais se deve trabalhar. Pois nesses dias vinde para serdes curados - e não em dia de sábado.» O Senhor, respondendo-lhe, disse: «Hipócritas, não solta cada um de vós, ao sábado, o seu boi ou o seu burro da manjedoura e o leva a beber? E esta mulher, sendo filha de Abraão, presa por Satanás há dezoito anos, não deveria ser libertada dessa prisão a um sábado?» Dizendo isto, envergonhavam-se todos os seus adversários e a multidão alegrava-se com todas as maravilhas que ele realizava.

 

   O comentário da escritora francesa vai pertinentemente revelar a singularidade deste passo da Boa Nova: A maior parte dos comentários falam da relação de Jesus com o sábado e, portanto, com a Lei. E ninguém repara no nome que Jesus dá a esta mulher: «Filha de Abraão». Ora, ao investigar um pouco mais, descubro que nunca tal expressão antes foi empregada em todo o texto bíblico. Até ali, só havia «FILHOS» de Abraão. Só os homens pareciam abrangidos pela promessa feita ao patriarca, só eles recebiam na própria carne a circuncisão como sinal de aliança. Ora Jesus faz dessa mulher endireitada uma filha de Abraão. Faz parte da aliança em nome próprio e não como filha de seu pai ou esposa de seu marido. Como é possível que ninguém tenha jamais reparado nisso?

 

   E eu, que tampouco me dera conta de tão revelador pormenor, devo reconhecer o sentido e a razão do remate daquele comentário de uma cristã atenta: É a própria personalidade de Jesus que surge sob novo dia. A par e passo da leitura, torna-se claro que nunca Jesus remete as mulheres a papéis reservados ao seu sexo. As mulheres não são virgens, nem mãe, nem esposa por «natureza». Antes pelo contrário, elas são discípulas, parceiras de conversa, por vezes profetas, nunca submissas nem silenciosas. Talvez fossem precisos olhos de mulher para o descobrir. Mas era também necessário que esse olhar fosse o de uma mulher que beneficiara de várias décadas de combates das mulheres pela liberdade e a emancipação.

 

   Historicamente, sem dúvida, tratou-se, tem-se tratado, de uma luta pela emancipação. E hoje ainda, um pouco por todo o mundo e muito em certas zonas dele, há ainda muito a fazer pela libertação das mulheres, sujeitas a jugos absurdos. Mas, sempre focado na busca da essência das coisas em cada um de nós, prefiro chamar-lhe reconhecimento. Não só no sentido de regressarmos ao conhecimento fundamental da nossa unidade ontológica - até no sentido claudeliano de connaissance= co-naissance ou "nascimento com" - mas como atualidade de nos vermos num espelho.

 

   [Há dias, lendo diagonalmente uma entrevista dada pelo superior nacional de uma congregação religiosa, deparo com uma tremenda justificação do facto de limpezas, arrumos e demais serviços domésticos das residências dos seus numerários masculinos serem funções atribuídas a numerárias femininas, por Deus ter dado às mulheres a graça e o dom de tratar da casa... Só me ocorreu, na altura, enviar ao senhor padre superior um lembrete daquele passo do evangelho em que Jesus responde a Marta que, ocupada em lides domésticas, lhe pede para admoestar Maria que, quieta e silente, o escuta ensinar : "Maria escolheu a melhor parte, que não lhe será tirada"...

 

   Sempre defendi, e defendo, que a distinção social entre homem e mulher é eminentemente cultural: no seu tempo e no seu modo, cada cultura atribui, na sua circunstância, estatutos femininos e masculinos, define e estatui valores próprios a cada sexo e género. Assim, só aceito que a voz de Cristo, enquanto expressão de "ternura, piedade, amor, bondade, perdão" (diz R. Gary) seja uma voz feminina, no "sentido tradicional desse termo". Masculino ou feminino, o nosso ser é originalmente humano, o próprio Eros é o amor em busca da união inicial (lembra-te de L´érotisme do Georges Bataille).

 

   Até a narrativa bíblica do Génesis consagra tal união ontológica em ambos os relatos da criação do ser humano: num, o segundo, mais imaginativo, diz que Deus adormeceu o homem para lhe retirar uma costela da qual fez a mulher; no outro, o primeiro, mais assertivo, limita-se a afirmar que Deus criou o ser humano, criou-o homem e mulher. Naquele, o ser humano resulta da argila que recebe um sopro de Deus, que lhe dá vida própria, muito embora o retire da mesma terra. No primeiro relato, todavia, o ser humano, na unidade inicial do casal, é o ser vivo criado à semelhança e imagem de Deus. Indivisivelmente: Deus criou o humano à sua imagem / à imagem de Deus o criou / homem e mulher os criou... E, neste presente contexto, ao evocar a Bíblia, não o faço invocando um texto religioso. Apenas recordo que, milénios atrás, já prosa de humanos registava essa consciência da unidade ontológica dos géneros.

 

   Sobre o alegado sentimento de superioridade (machista ou não) do português comum e da inexistência de uma direita política em Portugal - que Vasco Pulido Valente referia - falaremos em próxima carta.

 

    Até lá, Princesa.

 

Camilo Maria

 

Camilo Martins de Oliveira

A GRANDE GUERRA – ESTUDOS, DEBATES, ESPETÁCULO

 

Realizou-se recentemente em Lisboa um ciclo de conferências e debates intitulado “A Grande Guerra (1914-1918): Memória e Consequência”, iniciativa e organização de entidades muito marcantes da vida cultural portuguesa: Academia Nacional de Belas-Artes, Academia de Marinha, Sociedade de Geografia de Lisboa, Academia Portuguesa da História, Academia das Ciências de Lisboa e Comissão Portuguesa de História Militar.  Tivemos o gosto de participar nessa iniciativa com uma intervenção sobre Portugal na Conferência de Paz, que precisamente descreveu e analisou a estratégia, as posições e as negociações da delegação portuguesa nesse complexo ciclo de negociações diplomáticas, na sequencia das Atas da Delegação Portuguesa, que estudamos e publicamos em 2009 numa edição da Fundação Luso-Americana.

 

Ocorre que no ano passado fizemos aqui referência a um interessante estudo de Maria José Oliveira, intitulado “Prisioneiros Portugueses da Primeira Guerra Mundial – Frente Europeia – 1917-1918”, onde se historia com desenvolvimento e qualidade literária e científica a participação de Portugal na Guerra de 1914-1918 e os prisioneiros de guerra.  (ed. Saída de Emergência – 2017).

 

Damos novamente notícia desse estudo, pois nele se refere a realização de um espetáculo teatral pelos prisioneiros de guerra portugueses, no campo de Breesen. Trata-se de um texto dramático da autoria de Alexandre José Malheiro, denominado “O Amor na Base do CEP” (Corpo Expedicionário Português).

 

Tal como refere Maria José Oliveira, «a comédia estreou no campo, a 27 de outubro de 1918, e foi interpretada por 15 prisioneiros, dos quais sete representaram personagens femininas. Foi um divertimento que pretendia sobretudo reabilitar o “moral” dos expedicionários.»

 

Este espetáculo de prisioneiros de guerra é referido por outro oficial, Bento Esteves Roma, que escreveu um diário e mais recordações da sua participação na Guerra e do período de reclusão nos campos alemães. Designadamente “Os Portugueses nas Trincheiras da Grande Guerra” e “Algumas Passagens do Diário de Bento Roma como Prisioneiro de Guerra”, ambos citados no estudo aqui analisado.

 

E precisamente: na segunda das obras citadas, Bento Esteves Roma recorda a peça de Alexandre José Malheiro mas engana-se no nome do texto, chamando-lhe “A Guerra na Base do CEP” e não, como efetivamente Alexandre Malheiro a denominou, “O Amor na Base do CEP”.

 

Escreveu então Bento Esteves Roma:

 

«Foi hoje a inauguração do teatro com a peça “A Guerra na Base do CEP” escrita pelo Tenente Coronel Malheiro e que quer ser uma charge sobre a base do CEP. A ação desenrola-se em torno de uma aventura amorosa havida entre uma artista francesa que se encontra no Tréport a passar a época calmosa e um médico português.»

 

Mas o comentário  de Bento Esteves Roma é duro, e revela detalhes sobre a vida no campo de concentração:


«A peça não vale nada. Sem movimento, com diálogos enormes, figuras suplementares metidas à força. O desempenho foi horroroso. E gastou-se dinheiro com isto. Foi uma peça que custou 500 e tal marcos. Cada vez provamos mais o nosso pouco juízo. Adiante.”».

 

E tal como então referimos, este espetáculo marcou pelo ineditismo do local: o “teatro” era um estrado no campo de soldados portugueses do Corpo Expedicionário Português presos na   Alemanha em 1918.

 

 

DUARTE IVO CRUZ

CRÓNICAS PLURICULTURAIS

 

19. O QUE É LEGAL NÃO É NECESSARIAMENTE ÉTICO

 

Há quem defenda que a Ética precede e antecede o Direito, porque antes das leis positivas, feitas pelo ser humano, há as leis naturais, leis comandos, inerentes e consubstanciais à essência da razão humana.   

 

Por exemplo, as Tábuas de Moisés, consubstanciando os Dez Mandamentos, ao consagrarem o não matarás e o não roubarás, representam valores éticos eternos, universais e intemporais, fonte legal de inspiração de todas as leis positivas, que ainda hoje são válidos. 

 

Também os direitos humanos fundamentais, como o direito à vida, integridade física, saúde, entre outros, são tidos como inspirados em pretéritos valores éticos que se antepõem e antecedem o Direito.

 

Nesta perspetiva, sendo a ética um estado de consciência que nos permite distinguir o bem do mal, a submissão da lei a tais valores permite uma vida melhor. 

 

Porém, nem sempre o que é legal é necessariamente ético.

 

A legalidade tem a ver com a conformidade com a lei.   

 

A lei é uma regra categórica que emana da autoridade soberana de uma certa sociedade, impondo a todos os indivíduos, seus destinatários, a obrigação (coativa) de se submeterem a ela, sob pena de sanções.   

 

O que pode não coincidir com uma avaliação ética.   

 

É legal não pagar uma dívida prescrita (extinta juridicamente), dada a ausência de um dever ou obrigação jurídica de o fazer, mas é eticamente condenável não a liquidar, dado haver uma obrigação natural (e moral) de a pagar. 

 

É legal vender uma casa em mau estado pelo preço que ela vale, mas não é ético o vendedor esconder do comprador o estado do imóvel. Mesmo acima do seu valor é legal, mas é eticamente censurável deixar o comprador convicto que está a adquirir uma coisa por um preço muito baixo, quando não está. 

 

A ética é mais restritiva que a lei.   

 

A ética não é contornável, por definição, enquanto a lei não pode prever todas as possibilidades de ser contornada.

 

A ética não aceita que os meios justifiquem os fins, porque a natureza ética de um ato não decorre de este produzir ou não resultados positivos.

 

À pergunta se é aceitável matar ou torturar uma só pessoa para salvar muitas mais, responde-se que se medirmos a ética pela utilidade máxima para a sociedade, pouco contam os direitos das pessoas ou das minorias, desde que o conjunto, no seu todo, beneficie com o sacrifício delas.

 

Esta máxima utilidade tem servido de argumento aos norte-americanos apologistas da tortura ou da morte na guerra contra o terrorismo, colocando-os no mesmo nível ético dos terroristas. 

 

Mesmo se legal, o recurso à tortura, por exemplo, quando eficaz, é antiético.   Concluindo, a natureza ética de um ato não decorre de este produzir ou não resultados positivos, usando o benefício da utilidade máxima para a sociedade, uma vez que o teste decisivo acontece quando ao observá-la, cumprindo-a, não traz vantagens.


20.11.2018
Joaquim Miguel de Morgado Patrício

UM ESCRITOR COMPLETO E ÚNICO QUE A HISTÓRIA DEVE REGISTAR: ANTÓNIO VIEIRA

 

Já tive oportunidade de escrever que António Vieira foi para mim um privilégio no partilhar Amizade, dedicação, obra, sorrisos e risos num mundo que antecipámos e dele falámos por hipóteses nebuladas de onde todas as partidas eram possíveis. A ele sempre o meu agradecimento. Que quem lê por ocasião da carpintaria, da marcenaria, do fabrico da literatura nunca o esqueça.

 

Hoje trago aqui E Ô S, um conto de um volume de contos que, a meu ver, é uma obra-prima breve e completa. Em 2002 a Editora Globo não descurou a hipótese de trazer à luz esta edição de essencial grandeza.

 

                                         Oh! Jeter le temps hors du temps!

                                                       Valéry, Tel Quel II (1943)

 

Quem fora e o que intentara?

 

Não sei se Títonos se propõe desconhecer a experiência do amor que idealizava por força da solidão que vivia, e assim desejava viver, arriscando mesmo, a totalidade de si nessa experiência de paixão, ou se se servia dela por intuir a solidão em que ficaria um dia, despojo estranho de um corpo áureo que habitara havia muito, e ainda assim nos provocaria ao expor-se do fundo das velhas órbitas, enrodilhado e rígido, não descuidando nunca a forma de um ponto de interrogação à nossa incredulidade.

 

Eôs era uma jovem e bela mulher ainda que bem mais velha do que Títanos, e que o rondava celebrando o tino que bem sabia nele incendiar. O olhar de ambos quando se cruzava era desejo magnético, insónia puxada por dois cavalos soberbos nomeados neste conto. Irromperam em Títanos todos os prodígios que do convite dela irradiavam diretos ao seu ser, e, medusado perante ela abandonou-se à tal viagem que tanto receava como desejava, qual sonho que o seu pensar excedia.

 

Quando ambos chegados ao palácio de Eôs, que, flutuava no mar alto, escutou Títanos uma cigarra que cantava em monótono coro com muitas outras, em rugidos secos como se por elas tivessem passado gerações. Eôs tendo reparado que Títanos se quedara com esta realidade, disse: “Todos as ouviram, mas poucos as olharam” e abriu-lhe a brancura do seu corpo deixando que todos os segredos lhe fossem tocados, e, Títanos descobre assim a experiência da duração.

 

Julgo que agora uma gravitação o agarrara. Julgo que ao ler e ao escrever a minha interpretação deste belíssimo conto, chegou aqui o meu momento de entender que afinal o arco-íris se pode fazer e desfazer, e digo-o afrontando a metáfora de John Keats.

 

Poderia escolher testemunhas do que acontecia entre ambos se as recolhesse entre terra, água, fogo e ar, todos sortilégio de um desejo que se adensava; e já Eôs à luz de um lampadário continha nas mãos a poção mágica que solicitara à indústria das armas, poder mesmo e único pertencente a Suze, a quem todos temiam pela falta de escrúpulos, pela maldade extrema de doar eternidade por morte e ainda assim Eôs por ele arrastava a sua sedução. Entendiam-se na raça e na linguagem da estirpe da primeira língua da humanidade. Julgamos.

 

Títonos começara a sentir-se arrastado por uma perdição que Eôs, de todo, não acompanhava. Deitou mão aos livros da biblioteca de Eôs e encontrava-os numa vitalidade de palavras perdidas. Amava ainda aquela mulher que lhe propusera a experiência da duração, mas o desejo, o ciúme, o desespero do desastre, o amor que declinava embaciado e sem remédio, abria-lhe horizontes tremendos de, nessa mulher, ser um estorvo, uma emoção de não-retorno para ela e para si.

 

Não sei se tudo o que li depois do que tento interpretar, representaria algum período de luto à tal seta que se despedira de Títanos, ou, se a decrepitude a que chegara num uivo quase impercetível, lhe dera a dimensão do tempo passado, e, esse tempo era tão só o vazio de um verbo ausente já da vida. A magia funesta da poção mágica não reparava o derrube total de uma juventude, antes a deixava envelhecer, carcomida a assistir ao novo escanção que sorvia o branco corpo de Eôs.

 

Então Títanos abrindo ligeiramente os lábios secos e obstinados da velhice, aceitou que Eôs com desprezo, lhe despejasse algumas gotas do liquido mágico, e, quando a metamorfose se operou, Títanos o amante da experiência da duração já caminhava, qual cigarra para junto das semelhantes e assim por entre elas se perdeu.

 

Se há aqui um ser humano que se converte em Jesus, desconheço. Se há neste conto uma inocência a compreender no desacordo do leitor: assim proponho. Se cada linha foi ponderada e limada: tenho a certeza. Se nas nossas mãos trazemos as cinzas dos esquecimentos, dos sonhos, dos dias das poções mágicas, da vigília ao homúnculo a que cada um será incrédulo: posso bem crer. E se não me engano, o tardio da descoberta de cada um, eis aqui.

 

Teresa Bracinha Vieira

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