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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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A FORÇA DO ATO CRIADOR

Os Adaptativos de Franz West.jpg

 

   Os 'Adaptativos' de Franz West. 

 

'I like the idea that in picking up one of the 'Adaptives' there is a moment of not knowing what to do next, a moment of not knowing what to do with the audience. You make unplanned actions and gestures with the audience looking at you, and you wonder what you are doing with this. So the gestures become a little like art.', Franz West, 2007

 

A obra de Franz West (1947-2012), desde cedo, pôs em causa algumas das regras aparentemente estabelecidas no mundo da arte. Franz West assume-se como um artista anti-herói e anti-génio, um homem banal com qualidades e defeitos. As suas esculturas são matéricas e são feitas para serem tocadas - e esta premissa foi até bastante radical num meio artístico dominado pela arte conceptual. E a existência de um significado absoluto na obra (que o espectador tem de perceber para conseguir apreender a obra) deixa de fazer sentido para West. 

Cada peça da sua obra é um começo de um diálogo - não só mental, mas também físico (por vezes, uma conversa de corpo para corpo). Acima de tudo, o significado de cada escultura, só se completa e só se revela através da interação com cada indivíduo, que interage de maneira sempre diferente com a obra.

 

Ora, os 'Adaptativos', objetos criados a partir de meados dos anos 1970, feitos de pasta branca, são a génese da prática de Franz West. É uma arte em ação que exige do espectador, o seu físico e a sua interpretação. Não são objetos puros e limpos - porque ao serem usados sujam-se facilmente - e aparecem segundo várias formas e tamanhos. Os objetos parecem-se com bengalas ou tacos de golf; instrumento de música ou instrumentos médicos, alguns assemelham-se até com partes do corpo humano. O seu tamanho, apesar de variado, permite sempre a manipulação por parte do espectador. No início, não havia instruções de como manipular estes adaptativos - que aparecem encostado às paredes ou perdidos nos cantos. No início, alguns eram até pesados e difíceis de manobrar, sem uma clara orientação. Eram feitos de coisas que West encontrava nas drogarias, inspirados talvez nos moldes do consultório da sua mãe dentista ou talvez estejam relacionados com os objetos bizarros ('desencadeadores psicológicos') usados pelos Acionistas Vienenses, nas suas performances.

Na verdade, os adaptativos revelam nada a não ser quando usados. São em certa medida objetos genuínos, autênticos com uma identidade muito própria.  

Existe neles um desejo intrínseco em sublinhar o gesto, o comportamento do espectador perante o desconhecido. Para Franz West, qualquer comportamento, por mais pequeno ou insignificante que seja, determina a maneira de como o ser humano vê o mundo. E na maior parte das vezes o ser humano só consegue tocar nas verdades do mundo através de objetos/instrumentos.

Os adaptativos têm essa intenção de, sobretudo se adaptarem ou serem adaptados ao corpo humano. E à medida do tempo, West foi descobrindo que estes objetos eram um exercício mental, tal como um exercício físico - antes demais, o espectador (antes de adaptar o objeto ao seu corpo) tinha de compreender e imaginar o que fazer com ele, atribuir-lhe um propósito, um significado, um potencial. O resultado deste exercício é portanto muito individual. É uma experiência exclusiva de quem manipula o adaptativo e o reveste de um propósito particular. É uma experiência que pode nunca acontecer, porque depende exclusivamente da vontade, da disposição e do carácter do espectador em querer ou não interagir com aquele objeto. Os adaptativos tornam-se assim como que meios de expressão ativa e subjetiva, do artista e do espectador em simultâneo. São veículos físicos, de superfícies irregulares e rugosas, feitos para serem sentidos, tocados e por isso tornam-se objetos concretos humanizados.

A revelação da experiência individual sobre determinado objeto tocado ou visto tornou-se, ao longo do tempo a questão fundamental da obra de Franz West. 

 

'At the beginning, nobody interacted with them. It was the biggest disappointment. At my first exhibition only children picked them up - and smashed them into the walls. In a way to get around this untouchability and awe, I began to make the tables and chairs. (...) Instead of using the Adaptives, you just sit around, talk and think. Like putting a dream on Earth. The Adaptives would be the dream and the chairs and tables would be the Earth.', Franz West, 2007

 

 

Ana Ruepp

 

 

DOIS DIAS PARA A MORTE E O SENTIDO

 

Há muito que para mim é claro que, para perceber uma sociedade, mais importante do que saber como é que nela se vive é saber como é que nela se morre e nela se trata a morte e os mortos. Aí está: hoje a morte é tabu, mais: vivemos numa sociedade assente sobre o tabu da morte, tendo nele o seu fundamento. Da morte não se fala. Não é de bom tom. E o que é que isso revela? Que vivemos numa sociedade desorientada, que não sabe o que há-de fazer com a morte e, por isso, também não sabe viver na fundura ético-metafísica que o pensamento da morte dá e exige.

 

O que aí fica, talvez intempestivamente, para os dois dias 1 e 2 de Novembro, que tradicionalmente eram consagrados à meditação sobre a morte e o seu sentido, que é o sentido da vida, são breves reflexões sobre este tema incómodo, mas sem o qual se deriva para o inessencial.

 

A morte é o mistério pura e simplesmente. Ninguém sabe o que é morrer. Ainda nenhum de nós, felizmente, morreu, e os mortos, esses, não falam. Não temos experiência do que é morrer nem do estar morto nem do Além. A morte escapa a todas as categorias. Como escreveu o filósofo Emmanuel Levinas, “a morte é o mais desconhecido de todos os desconhecidos. Ela é mesmo desconhecida de modo totalmente diferente de todo o desconhecido”. Perante o rosto morto de uma pessoa, concretamente  da pessoa amada ou de um amigo, sabemos que qualquer coisa de dramático e único aconteceu: o fim da existência no mundo, o “stop” definitivo e irreversível. Mas o que é que isto quer dizer verdadeiramente? “Nunca saberemos o que é que a morte significa para o próprio morto. Não sabemos sequer o que pode haver de legítimo na fórmula: para o próprio morto.” Em última análise, não é possível fazer um juízo definitivo sobre a vida de alguém, porque nunca nos é dado saber o que foi a sua morte. No confronto com a morte, é com a irrepresentabilidade total que deparamos. Só os vivos falam da morte. Os mortos, esses, calam-se definitivamente. Sigmund Freud também escreveu: “O facto é que nos é absolutamente impossível representar a nossa própria morte, e todas as vezes que o tentamos apercebemo-nos de que assistimos a ela como espectadores. É por isso que a escola psicanalítica pôde declarar que, no fundo, ninguém crê na sua própria morte ou, o que é o mesmo, que, nos seu inconsciente, cada um está persuadido da sua própria imortalidade.” No fundo, nenhum de nós acredita que há-de morrer: a morte é sempre a morte dos outros, só acontece aos outros, cada um de nós pensa que será excepção. Porque é impossível eu conceber a minha consciência, a consciência de mim, morta.

 

Por outro lado, paradoxalmente, no núcleo da própria existência, há uma experiência vivida da morte enquanto limite último insuprimível e insuperável. No centro da vida, a morte está presente como mistério, o impensável que obriga a pensar. A vida vê-se inevitavelmente confrontada com a morte enquanto barreira intransponível. Porque o ser humano é o ser da antecipação, toma consciência de que é inevitavelmente mortal: dada a sua condição corpórea, no horizonte da sua vida, antecipando o futuro, a morte surge-lhe como termo inescapável. E, se a morte enquanto totalização põe em questão não só o aquém, mas também o seu além, falar da morte humana enfrenta-se com a pergunta inevitável: e depois? Porque, se também o animal pode ter medo de morrer, só a pessoa humana, porque é autoconsciente, se angustia face à morte. O medo relaciona-se com um objecto concreto; a angústia é difusa, é esse temor único, em última análise, do nada, da morte enquanto dissolução do eu. Unamuno exprimiu-o com estas palavras: “O meu eu, ai que me roubam o meu eu!”

 

Hoje, predomina o tabu, o recalcamento, da morte. Nas nossas sociedades científicas e técnicas, urbanas e consumistas, hedonistas e invadidas pelo niilismo, a morte tornou-se realmente tabu. Ela é umas realidade quase obscena. Repare-se, neste sentido, como se inverteu a relação com o sexo e com a morte: nas sociedades tradicionais, tabu era o sexo; hoje, tabu é a morte, talvez o último tabu. Como é que uma sociedade que gira à volta da organização sócio-económica, determinada pelo individualismo concorrencial feroz e insolidário, onde os valores considerados são o prazer, o êxito, a juventude, a beleza, a eficácia, a produção, o lucro, acumulação de bens e fortuna, progresso e riqueza, pode ainda acompanhar afectivamente os doentes, os velhos e os moribundos (agora, diz-se “pacientes terminais”) e suportar o supremo fracasso da morte?

 

Mas não se pense que se deixou de falar da morte por ela já não constituir problema. É exactamente o contrário que se passa: de tal modo a morte é problema, o problema para o qual uma sociedade que se julga omnipotente não tem solução que só resta a solução de ignorá-la, ocultá-la, reprimi-la. Aquilo que provoca dor infinda e para que não há solução é recalcado.

 

Mas, quando uma sociedade precisa de afastar a morte do seu horizonte, temos aí um sinal de desumanização e alienação. Paradoxalmente, essa sociedade torna-se mortífera, tanatocrática e tanatolátrica. Pode perguntar-se: ao contrário das aparências, não revelará a ocultação da morte precisamente um medo-pânico da morte que se pretende exorcizar? Viktor Frankl mostrou que “a angústia  perante o vazio existencial e a neurose noógena de sentido estão às portas de quem por medo foge ao medo.” O homem das nossas sociedades possui ingência de meios e bens materiais, mas vive no deserto de fins autenticamente humanos e de sentido que preencha a existência. Sofre por falta de orientação existencial, tendo, por isso, medo dos aspectos negativos da existência. As sociedades da opulência actuais satisfazem necessidades materiais, ma não a vontade essencial, constitutiva, de sentido.

 

Preso do prazer imediato, o homem actual perdeu o sentido da totalidade, pelo qual o confronto com a morte inevitavelmente pergunta. A consciência da inevitabilidade de morrer abala na sua raiz a existência enquanto totalidade, convocando o ser humano para a pergunta absoluta, que não é mera curiosidade: Quem sou eu? Que será de mim? Qual o sentido da minha vida e da História? O que é que, em última análise, habita no seu núcleo?

 

Sem a consciência da morte, haveria filosofia, religião e exigência ética? Com a ocultação da morte, o ser humano pretende viver na ignorância do futuro, e perde o seu ser. Então é fácil a ética dissolver-se no simples utilitarismo e hedonismo. Já Ortega e Gasset se queixava: “Esta é a questão: a Europa ficou sem moral”. De facto, é confrontados com a morte que somos colocados perante a urgência da decisão, a unicidade, dramaticidade, densidade e responsabilidade irrevogável da vida e a questão do sentido total da existência. Pela antecipação da morte, a vida é-nos dada como totalidade e no seu carácter de definitividade e ultimidade, numa só vida e com uma só morte, ambas irrepetíveis. Sem essa antecipação, o homem fica na situação do animal, para o qual tudo se passa em “aquis” e agoras” sucessivos, sem possibilidade de totalização, e, portanto, regido exclusivamente pelos impulsos de prazer e desprazer imediatos.

 

Perante a angústia da morte, o homem actual remeteu-se para a morte neutra e abstracta, como estratégia para continuar a viver na vulgaridade, na dispersão banalizante e na banalização dispersante, na existência inautêntica, para cuja ameaça nos alertaram os filósofos Martin Heidegger e Sören Kierkegaard. Por isso, é urgente reconquistar a sabedoria da meditação da morte, para que a existência readquira autenticidade, porque é a morte que faz a triagem entre o que verdadeiramente vale e o que realmente não vale, entre o decisivo e o banal, entre superficialidade e liberdade que liberta, entre ter e ser, entre o que verdadeiramente quero e o que é mera ilusão. Na antecipação da morte, capto o valor único da pessoa, que vale mais do que todas as coisas: as coisas são meios, só a pessoa é fim, insubstituível. Assim, o pensamento da morte impõe-se, não como veneno para a vida, mas como antídoto contra a vulgaridade vaidosa e vazia da existência inautêntica.

 

É verdade que a consciência da necessidade de morrer me pode atirar para o abismo da dissolução nos prazeres imediatos: “Comamos e bebamos, porque amanhã morreremos”. Muitas vezes também, o poder devastador da morte serviu satanicamente de instância fundadora de poderes totalitários, tanto na ordem temporal como espiritual. Mas é igualmente verdade que, na antecipação de todos os rostos mortos, se encontra talvez o único lugar autêntico da compaixão, da paz e da fraternidade, que, entretanto, se torna imperativo construir, evitando a catástrofe: Somos mortais: logo, somos irmãos, como viu até Herbert Marcuse, que, dois dias antes da sua morte, já no hospital, confessou a Jürgen Habermas: “Vês? Agora sei em que é que se fundamentam os nossos juízos de valor mais elementares: na compaixão, no nosso sentimento pela dor dos outros”.

 

Anselmo Borges

Padre e professor de Filosofia
Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN | 27 OUT 2018