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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

JÁ CEM ANOS…

 

TU CÁ TU LÁ

COM O PATRIMÓNIO

Especial. 11 de novembro de 2018

 

A imagem do vagão no Bosque de Compiègne em que o Marechal Foch encara o General alemão Maxime Weygand, representante alemão, fica na retina. A memória dos povos é curta, mas faz-se de grandes acontecimentos e de grandes tragédias. A primeira guerra mundial, que terminou com a assinatura do armistício, há exatamente cem anos, foi um desses acontecimentos marcantes, ainda que a esperança que então existiu depressa se tenha desvanecido pelo graves erros cometidos na Conferência de Versalhes, de que resultou a humilhação dos vencidos, em especial do Império Alemão, com as consequências conhecidas. Vinte anos depois a guerra regressaria mais mortífera que nunca. Os vinte milhões de mortos registados entre 1914 e 1918 não serviram de lição. Até 1945 tivemos, na continuação, uma tremenda Guerra dos Trinta Anos. E a segunda guerra registaria mais de sessenta milhões de mortos. A História da Europa e do mundo contemporânea foi marcada por esses acontecimentos, que agora se recordam. Porém, não basta a invocação formal. A União Europeia vive momentos de perplexidade e incerteza. Quando o Presidente Macron e a Senhora May aparecem a homenagear os soldados mortos há a estranha sensação de estarmos num filme de ficção, com o Brexit em fundo a marcar uma fragmentação perigosa. Depois, há outros elementos perturbadores. O Presidente Trump é a instabilidade em pessoa, a Itália demonstra uma evidente falta de coesão, a Hungria e a Polónia agem como crianças irrequietas numa loja de porcelanas, A Rússia convence-se mal de que não é mais do que uma potência regional, capaz de perturbar o cenário mundial, mas pouco mais… A China está num compasso de espera, ciente de que se tem de preparar para uma influência global. Os fatores somam-se terrivelmente. E a Senhora Merkel? Dir-se-ia que a Europa precisa mais do que nunca da ligação efetiva entre o Eixo Franco-Alemão e a Entente Cordiale! O Reino Unido é indispensável à Europa. E se é preciso fazer um acordo para o Brexit criem-se condições para que a defesa e a segurança sejam garantidos e que o tema das fronteiras não semeie um conflito imprevisível. Nesta celebração do Armistício de 1918 lembremo-nos de tudo isto. Não basta celebrar. É preciso tirar lições!

 

As papoilas de papel ou os pequenos capacetes militares da minha infância estão bem presentes para a minha geração. Mas a memória esvai-se e o horizonte do desastre pode reaparecer… Leia-se o poema do médico canadiano que tornou a papoila símbolo da memória da guerra. John Mc Crae (1872-1918) escreveu que as papoilas cresciam nos campos da Flandres entre as cruzes dos mortos:

 

In Flanders' fields the poppies blow
Between the crosses, row on row,
That mark our place: and in the sky
The larks, still bravely singing, fly
Scarce heard amid the guns below.

We are the dead. Short days ago
We lived, felt dawn, saw sunset glow,
Loved and were loved, and now we lie
In Flanders' fields.

Take up our quarrel with the foe;
To you from failing hands we throw
The torch; be yours to hold it high,
If ye break faith with us who die
We shall not sleep, though poppies grow  
In Flanders' Fields.

 

Agostinho de Morais

 

AEPC.jpg   A rubrica TU CÁ TU LÁ COM O PATRIMÓNIO foi elaborada no âmbito do 
   Ano Europeu do Património Cultural, que se celebra pela primeira vez em 2018
   #europeforculture

 

 

CARTAS DE CAMILO MARIA DE SAROLEA

 

Minha Princesa de mim:

 

   Prosseguindo na mesma linha de pensamento, ou de encadeamento de interrogações - mas noutro registo - falo-te nesta carta de uma resenha que Éric Zemmour, intelectual tenor da direita francesa, faz, em Le Figaro de 4/10/2018, ao livro de Régis Debray, figura da esquerda universal, intitulado L'Angle Mort (Éditions du Cerf, Paris, 2018). Este opúsculo, aliás, mais não é do que a reprodução de uma conferência do autor, proferida, a convite de Élie Barnavi, ex-embaixador de Israel em França, como lição inaugural do último encontro dos Rendez-vous du Bastogne War Museum, cujo tema foi, em março deste ano de 2018: Le Terrorisme: sommes nous en guerre? Traduzo alguns trechos do artigo do Zemmour:

 

   Há duas maneiras de ler a última obra de Régis Debray: ficarmos pelo que ele escreve, ou compreendermos - e adivinharmos - o que ele diz por meias palavras. Também há dois livros nesse texto: uma penetrante análise da confrontação entre djihadistas e as nossas sociedades ocidentais, através da relação - antagónica - de cada lado com a morte; e uma reflexão sobre a capacidade duma civilização - a nossa - sobreviver quando já não acredita numa vida depois da morte.

 

   Zemmour observa atentamente essa distinção diamantina, cortante, que Debray firmemente traça assim: onde nós vemos vazio, eles vêem plenitude...   ... desde que rompemos com a origem, apenas poderíamos perder o fim...   ... para que haja um paraíso prometido, é preciso que haja um paraíso perdido. Sou, como sabes, leitor fiel de Régis Debray, já várias vezes de falei do seu Dieu, un itinéraire - de que há tradução portuguesa (Deus, um itinerário, Ambar, Porto, 2002) - e lembrei que o filósofo francês faz, entre outras, a distinção entre religiões com clero e sem clero, com o propósito de demarcar as que, pela autoridade da interpretação eclesial de textos sagrados, asseguram, como a Igreja Católica, uma unidade de doutrina, em oposição às que deitam fogo à pradaria, como movimentos do fundamentalismo islâmico ou, já nos séculos XVI/XVII, do sectarismo de confissões protestantes. Sendo eu - tal como tu e tanta gente sabe - anticlerical (isto é: contra o clericalismo como regime de poder de classe) sou insuspeito quando afirmo que não pode haver serviço de igreja sem clero, o que não significa que este, como classe, tenha qualquer poder exclusivo discricionário e pouco atento à vida eclesial. Pois antes deve ser parte da organização do ministério necessário à comunidade dos crentes. Também aprecio um retrato de Debray por Zemmour: Debray é um progressista contrariado, tal como há canhotos contrariados. Ele acreditou nos amanhãs que cantam, nesses 1789 e 1917, todas essas novas alvoradas da humanidade que nos prometiam futuros radiosos, todas essas versões laicizadas do messianismo judeo-cristão. A experiência e a História sempre o desembriagaram um pouco. Mas prefiro, até por essa experiência, que iniciada na sua juventude, foi refletidamente evoluindo, a sincera descoberta ou novidades de Régis Debray: Progressismo, cientismo, socialismo. A perda do Deus futuro fez do futuro o nosso Deus...   ... Quem poderá ainda duvidar de que a pós-modernidade será cada vez mais arcaizante? Arcaico não é o que está caduco, é o enterrado que remonta à superfície em caso de crise geral, visto que o mais resistente, num indivíduo como numa coletividade, é o que nele é mais antigo.

 

   Eis palavras luminosas na busca de um sentido para a vida humana, seja no oriente ou no ocidente, no tempo circular ou no tempo escatológico. Não nos falam de uma relíquia, algo que resta ou sobrou, mas de algo vivo, alma que, no fim do percurso, se reconhece no princípio de tudo.

 

   E vamos vendo, cada vez mais, em comunidades e escolas do Islão, um número crescente de crentes que buscam na leitura dos seus textos fundamentais a visão do Deus Vivo dos vivos, já não o castigador deus dos mortos, mas o Misericordioso. Infelizmente, a nossa generalizada ocidental cultura ainda largamente reserva, no seu seio, desconfianças agrestes e fobias de outras culturas e expressões religiosas, o que muito dificulta o exercício da saída para o encontro e o diálogo, este nunca sendo possível sem um esforço de escuta atenta dos outros para se iniciar o cultivo cooperante dos campos do entendimento e da paz. Bíblia hebraica, Novo Testamento cristão, Alcorão - todos esses livros e coletâneas têm várias leituras possíveis. Se assim não fosse, talvez não tivesse havido tanta guerra religiosa, menos ainda tantos cismas que ainda hoje dividem cada confissão em diferentes igrejas, sinagogas, madraças, seitas e escolas... Parece-me, e tanto o tenho dito, que não há cultura da paz possível sem essa entreajuda cooperativa, não só das religiões, como de todos os seres humanos de boa vontade, no sentido apocalíptico da descoberta da dignidade e da misericórdia de todos e cada um, e a todos comum, em cada uma das diferentes expressões de que se reveste. Mais vale apoiarmo-nos na busca da paz do Deus misericordioso de tantos muçulmanos, do que fechar-lhes a porta do diálogo, só pelo receio ou o ódio que nos suscita o fanatismo religioso de muitos outros. Sem saída e caminho não há encontro possível.

 

   Para já, o fanatismo suicidário, por exemplo, dos que se fazem explodir para atentar contra outros, apesar da repugnante desumanidade que também é sua, pode também levar-nos a outra interrogação. Esta, igualmente assustadora, por nos confrontar com o nosso comodismo materialista - e, consequentemente, com a fraqueza relativa da nossa civilização num hipotético cenário de choque, à Samuel Huntington - deixo-ta aqui, para nossa reflexão, nas palavras de Régis Debray:

 

   Abismo negro e escancarado, o terrorismo de invocação divina merece, nos nossos países, para além de uma resposta musculada e sem hesitações, ser cada vez melhor localizado e perseguido. Mas que tal nos não faça fugir de um leal regresso sobre nós mesmos. O ato frequentemente suicidário do terrorista força-nos a pensar no que já não queremos, e até, com a ajuda da habituação, naquilo em que já não podemos pensar: o lugar da morte na nossa vida. Ou, mais precisamente, no facto de que ela já não tem esse lugar. Nunca nos saberemos explicar com esses "loucos de Deus", sem nos explicarmos com a nossa própria situação, nós que, como parece, nos tornámos sages ao ponto de já não acreditarmos em qualquer vida futura.

 

   Façamos o esforço de não confundir a árvore com a floresta e, sobretudo, de vermos primeiro as traves que nos tapam os olhos...

 

Camilo Maria

 

Camilo Martins de Oliveira