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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

A VIDA DOS LIVROS

De 12 a 18 de novembro de 2018.

 

Os seis ensaios que constituem a obra «As Artes do Sentido» de George Steiner (Relógio d’Água, 2017) põem-nos perante o tema do confronto e da ligação ente Humanidades e as Ciências, o que constitui questão crucial quando se fala da noção ampla de património cultural que comemoramos este ano de 2018.

 

 

MAIS DO QUE UM ACERVO DO PASSADO
O Ano Europeu do Património Cultural não celebra apenas um acervo europeu, uma identidade europeia ou um passado exclusivo. Falar de Património Cultural é falar de uma noção comum, universal, capaz de unir a humanidade e de criar condições para uma verdadeira cultura de paz, que a UNESCO tem proclamado. Estamos no centro do culto saudável das Humanidades. Este Ano Europeu situa-se na linha do que defende a Convenção de Faro, sobre o valor do Património Cultural na Sociedade Contemporânea (2005). Não se está a tratar de uma identidade europeia, fechada sobre si mesma, sucedâneo de identidades nacionais. O undamental é a referência ao Património Cultural, como realidade dinâmica e humanista. Recorde-se o que diz a Convenção de Faro: «O património cultural constitui um conjunto de recursos herdados do passado que as pessoas identificam, independentemente do regime de propriedade dos bens, como um reflexo e expressão dos seus valores, crenças, saberes e tradições em permanente evolução inclui todos os aspetos do meio ambiente resultantes da interação entre as pessoas e os lugares através do tempo» (artigo 2º, alínea a). E não esquecemos entre os objetivos deste instrumento do Conselho da Europa: “a preservação do património cultural e a sua utilização sustentável”, tendo por objetivo “o desenvolvimento humano e a qualidade de vida” (artigo 1º, alínea c), bem como a adoção das “medidas necessárias à aplicação do disposto na presente Convenção, no que se refere ao papel do património cultural na edificação de uma sociedade pacífica e democrática, bem como no processo de desenvolvimento sustentável e de promoção da diversidade cultural” (alínea d). É a prioridade à Cultura que está em causa, compreendendo-se esta ligada à Educação e à Ciência. Falamos do mundo da vida, das raízes, das aspirações, das atitudes e dos valores – do que recebemos e do que legamos. Eis por que razão quando Palmira foi destruída parcialmente na guerra da Síria, quando o diretor do centro arqueológico foi assassinado, ou quando qualquer parcela da humanidade e da sua cultura são atingidos é do património cultural no seu todo que está em causa. Não são os produtos do passado que devem ser repetidos – importa, sim, que o passado constitua uma base para compreender melhor o presente e para lançar as bases do futuro. E não esquecemos a lição de John Dewey quando falava da educação e da escola como realidades que pressupunham um “processo vivo”, um enriquecimento permanente pela experiência, uma sociedade aberta à inovação e à diversidade, uma democracia cooperativa. Neste sentido o cuidado do património cultural tem de ter um lugar especial na educação e na escola, na informação e na troca de saberes.

 

IDENTIDADE E PATRIMÓNIO
Longe da tentação de ver o património cultural como uma marca exclusiva ou própria de uma comunidade só, temos de estar conscientes de que as identidades e o património cultural só se enriquecem abrindo-se à diferença e à alteridade. Só assim poderemos enriquecer o que é próprio, dando-lhe dimensão humanista e universalista, em lugar da tentação uniformizadora e indiferente ou de simplificações folclóricas e de uma cultura de bricabraque. Nesse sentido, neste Ano Europeu, propus logo de início, e foi aceite, o reconhecimento da necessidade de dar às escolas, às comunidades educativas e às famílias um papel especial – de modo a lançar sementes para o futuro e como exigência de não deixar o património cultural ao abandono, compreendendo-se simultaneamente que um monumento e uma tradição que estão próximos, têm de fazer lembrar as referências culturais e patrimoniais que estão mais distantes. Por isso, os concursos que lançámos nas escolas tiveram sempre presente a escolha de um elemento próximo e de um outro exemplo europeu – de modo a entender que há uma dimensão de abertura à diversidade que não pode estar ausente, e que torna mais valiosa e aberta a nossa identidade, como fator de troca, de respeito e de enriquecimento mútuo. O património cultural tem múltiplas componentes: monumentos, museus, edifícios históricos, arquivos, referências artísticas e arqueológicas – o património material -, tradições, costumes, línguas e dialetos, romanceiros, artesanato, música e danças, relações interculturais – o património imaterial -, mas ainda o património natural, o meio ambiente, as paisagens, o património digital, e a criação contemporânea… esta enumeração abre inúmeras pistas que nos obrigam a uma especial atenção relativamente à criatividade humana.

 

ENTENDER A COMPLEXIDADE
Como tem ensinado Edgar Morin, importa compreender que a complexidade tem de ser entendida como chave do saber. Impõe-se que a informação de que dispomos se transforme em conhecimento e que o conhecimento se torne sabedoria. E que é a evolução das sociedades humanas senão uma sucessão de metamorfoses como as ciências naturais nos ensinam? Não é possível entender a importância das Humanidades sem ligar as culturas literária e científica, as artes e a matemática (como no-lo ensinou Almada Negreiros) – Sophia de Mello Breyner alertou-nos, deste modo, para que ler uma pauta de música ou distinguir um alexandrino ou uma redondilha obrigava a cuidar da numeracia. E se nos preocupamos com a relação com a natureza, temos de considerar a Ecologia, os recursos naturais em risco, as emissões poluidoras, o aquecimento global, do mesmo modo que os códigos genéticos, a ética suscitada pelo progresso científico e tecnológico como exigentes desafios para a Humanidade. E, se se fala da 4ª revolução industrial, temos de lembrar não apenas a microinformática ou as tecnologias de informação, mas também as novas fontes de energia e os progressos no domínio da saúde, como a imunologia e a evolução celular… O património cultural envolve, assim, um mundo fascinante, mas incerto e complexo. A cultura não é um luxo nem uma realidade supérflua, não é o último capítulo de um programa político, nem a cereja no cimo de um bolo – é uma prioridade absoluta e um tema transversal, que envolve a aprendizagem como fator decisivo do desenvolvimento humano, que reclama o espírito científico. A razão e os sentimentos estão intimamente associados, como nos ensina António Damásio, numa tradição antiga que encontramos desde os pré-socráticos até Montaigne ou Leibniz e à modernidade. A arte e a ciência reclamam o espírito criador e a necessidade de compreender como são incindíveis a continuidade e a inovação. A crise financeira que ainda sofremos desvalorizou a capacidade criadora e limitou-se à ilusão das economias de casino. A valorização do património cultural abre veredas atentas á dignidade humana. É a democracia que está em causa. Precisamos de instituições mediadoras nas quais os cidadãos estejam e se sintam representados, e em que participem. O património cultural liga-nos às gerações que nos antecederam e tornam-nos responsáveis pelo valor que formos capazes de criar, melhorando o que legarmos a quem nos vai suceder…

 

Guilherme d'Oliveira Martins
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