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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

A FORÇA DO ATO CRIADOR

 

Breve introdução acerca de William Morris.

 

'Both shores had a line of very pretty houses, low and not large, standing back a little way from the river; they were mostly built of red brick and roofed with tiles, and looked, above all, comfortable, and as if they were, so to say, alive and sympathetic with the life of the dwellers in them. There was a continuous garden in front of them, going down to the water's edge, in which the flowers were now blooming luxuriantly, and sending delicious waves of summer scent over the eddying stream. Behind the houses, I could see great trees rising, mostly planes, and looking down the water there where the reaches towards Putney almost as if they were a lake with a forest shore, so thick were the big trees...', William Morris, News from Nowhere

 

William Morris (1834-1896) desde cedo acreditou na arte como um ofício que dá sentido à vida. A arte não é uma habilidade superior nem inatingível.

 

O ideal é criar uma forma total de arte, profunda em ideias e emoções, derivada diretamente da natureza.

 

A degradação do homem e da sua vida, por causa da existência da máquina, vinda com a Revolução Industrial, sem dúvida despoletou as ideias artesanais de Morris. Ao dedicar-se ao projeto da Red House (1859), com Philip Webb, Morris estabeleceu a sua principal preocupação - a integridade estrutural ou a arquitetura total (sem dúvida influência muito importante para alguns arquitetos de final do séc. XIX, como Adolf Loos e Henry Van de Velde). O projeto da Red House traz a forte necessidade em se ser autêntico, modesto e artesanal - no modo de integrar as construções à terra, ao lugar e no emprego adequado dos materiais.

 

William Morris acreditava que para se ser humano deveria encontrar-se um verdadeiro gosto por aquilo que se faz - e encontrar contentamento no trabalho moroso, manual, minúsculo e ínfimo. Só assim será possível abandonar a produção em série e em massa. Morris estava convencido de que a perceção do capitalismo industrial separa o ser humano das suas verdadeiras aspirações, e desvia os nossos desejos para necessidades vazias e falsas. Só ao esculpir-se o gosto do público mais vasto, se deixará de consumir em demasia. 

 

Por isso William Morris, após ter terminado o projeto da Red House, organizou uma associação/oficina de artistas pré-rafaelitas, que incluia Philip Webb, Dante Gabriel Rossetti, Edward Burne-Jones e Ford Madox Brown, que projetaria e executaria peças de mobiliário, papel de parede, murais, vitrais, bordados, trabalhos em metal e em madeira. O objetivo era criar, sob encomenda, uma obra de arte total de qualidade onde se  valorizava então o trabalho demorado do artesão e onde se eliminava toda e qualquer hierarquia entre as artes. 

 

William Morris dedicava-se igualmente à literatura - na década de 1870 estudou a Islândia medieval, talvez porque esse parecia ser o lugar pelo qual ansiava e que contrastava com a realidade industrial do séc. XIX.

 

Em 1875, a oficina de Morris ficou sob seu controlo exclusivo. Morris aumentou então o número de especialidades executadas por ele próprio - além de desenhar e produzir toda uma gama de papéis de parede e cortinados também executava trabalhos de tinturaria e de tecelagem de tapetes. 

 

É muito importante referir que William Morris lutava por causas políticas e ideais socialistas. Escreveu sempre ensaios sobre temas ligados ao socialismo, à cultura e à sociedade.

 

Em 1890 publica 'News from Nowhere', onde expõe em forma de romance uma visão utópica de Londres, onde a distinção entre a cidade e campo desapareceriam. A cidade densa e compacta deixara de existir como entidade física - o Estado e o parlamento tinham desaparecido; todas as realizações de engenharia grandiosas haviam sido desmanteladas; o vento e a água eram as únicas fontes de força; as hidrovias e as estradas eram os únicos meios de transporte; o dinheiro, o crime, o castigo e a prisão deixariam de fazer sentido. A ordem social dependia apenas da livre associação de grupos familiares e o trabalho, que era livre, baseava-se na oficina associada, em que a educação era também livre. Morris ansiava por uma humanidade que viveria em presença de uma constante revelação da Verdade e dos segredos do universo, através da criação. Pois a arte consegue a ligação entre a vida e a forma, entre o essencial e o universal, entre o tempo e o espaço, entre o artificial e o natural, entre o detalhe e o todo.

 

'The spirit of the new days... was to be delight in the life of the world; intense and overweening love of the very skin and surface of the earth on which man dwells...', William Morris, 'News from Nowhere'

 

Ana Ruepp

COM O CADÁVER DA ESPERANÇA ÀS COSTAS

 

Ainda sobre os dias 1 e 2 de Novembro:

Dois dias para a morte e o sentido

 

Por mais arrogante que se seja e se padeça do complexo da omnipotência, ninguém, a não ser que pense suicidar-se antes, pode dizer: Até amanhã, se eu quiser. Dada a constituição corpórea do ser humano e a sua consciência antecipadora, toda a pessoa adulta e consciente, que reflecte, sabe, embora com um saber paradoxal, pois ninguém se pode conceber a si mesmo morto, que é mortal e que a morte é o limite inultrapassável. Ninguém rouba a morte a ninguém, cada um morrerá na sua vez. E as sabedorias ancestrais e as religiões e as filosofias lembraram sempre a cada um: “lembra-te de que és mortal”; aos generais romanos vitoriosos, na corrida para a celebração do triunfo, havia um escravo que lhes ia sussurrando ao ouvido o dito, em latim: “memento mori” (lembra-te de que és mortal); “sic transit gloria mundi” (assim passa a glória mundana): lembrava ao papa na sua coroação o mestre de cerimónias enquanto queimava uma mecha de estopa; os gregos definiam os humanos frente aos deuses, imortais, como “os mortais”.

 

A consciência da morte caracteriza o ser humano e, confrontando-o com a ameaça do nada — aquele “nunca-mais-para-sempre” neste mundo, escreveu Vladimir Jankélévitch —, revela-o a si mesmo na sua fundura ético-metafísica.  Aí, sabe que é um eu, único, enfrentando perguntas de abismo sem fundo, inevitáveis: O que sou e quem sou? O que quero e devo fazer?

 

Na consciência antecipadora da morte, cada um é dado a si mesmo como totalidade, ainda que incompleta, pois ninguém sabe o que é morrer nem o que quer dizer exactamente estar morto. De qualquer modo, nessa antecipação, a pergunta decisiva é: Qual o sentido da vida, da existência, da História, de tudo? Vamos realizando sentidos, mas, perante a morte, impõe-se a pergunta essencial, final: Qual o sentido de todos os sentidos, o Sentido último? Para quê? Porque, se tudo se afunda na morte: bem, mal, dignidade, indignidade, justiça, injustiça..., então tudo é equivalente, vale tudo o mesmo e foi tudo para nada.

 

 Mas é tão natural o homem saber da sua morte como esperar para lá dela. A pessoa é constitutivamente esperante, assim: por mais que concretize e realize da sua esperança, ela nunca está plena e adequadamente concretizada nem realizada, pois há sempre um abismo entre o desejado e o alcançado, e, por isso, sempre um mais além, de tal modo que  nenhum homem, nenhuma mulher morre satisfeito, satisfeita (de satis-factus, satis-facta: feito, feita suficientemente). Todos morrem em aberto, o que leva à conclusão de que a realização plena só pode vir de Outro, de Deus; só a religião pode garantir a esperança total. Assim, a própria Escola de Frankfurt vivia atenazada. Por exemplo, Max Horkheimer, um dos seus fundadores, por um lado,  não acreditava, mas, por outro, ansiava pelo totalmente Outro: “Sem Deus, é inútil pretender salvar um sentido incondicional. (...) A morte de Deus é também a morte da verdade eterna”. “O anelo pelo totalmente Outro é um anelo que une os homens, de tal modo que os factos atrozes, as injustiças da história passada não sejam o destino último, definitivo, das vítimas”. Por isso, pensava que a moral assenta em última instância na teologia, significando teologia “a consciência de que este mundo é um fenómeno, que não é a verdade absoluta, que não é a ultimidade. Teologia é – exprimo-me conscientemente com grande cautela – a esperança de que a injustiça que atravessa o mundo não seja a ultimidade, que não tenha a última palavra (...) expressão de um anelo de que o verdugo não triunfe sobre a vítima inocente”. Theodor Adorno, outro fundador, escreveu que “o pensamento que se não decapita desemboca na transcendência; a sua meta seria a ideia de uma constituição do mundo na qual não só ficasse erradicado o sofrimento existente, mas também revogado o irrevogavelmente passado”. Também Jürgen Habermas se refere a toda esta problemática, concretamente a das vítimas inocentes e da dívida da História para com elas, trazendo à colação este texto de J. Glebe-Möller: “Se desejarmos manter a solidariedade com todos os outros, incluindo os mortos, então temos que reclamar uma realidade que esteja para lá do aqui e do agora e que possa vincular-nos a nós também para lá da nossa morte com aqueles que, apesar da sua inocência, foram destruídos antes de nós. E a esta realidade a tradição cristã chama-a Deus”.

 

Claro que ninguém se pode gloriar, diz I. Kant, de saber que Deus existe e que haverá uma vida futura: se alguém o souber, escreveu, “esse é o homem que há muito procuro, porque todo o saber é comunicável e eu poderia participar nele”. Mas é razoável acreditar em Deus e esperar para lá da morte. Na sua obra Was ich glaube (O Que Eu Creio), resultado de uma série de lições, aos 80 anos, na Universidade de Tubinga, a cada uma das quais  assistiram mil pessoas, pergunta, com razão, o célebre teólogo Hans Küng: ”O ateísmo explica melhor o mundo? A sua grandeza e a sua miséria? Como se também a razão descrente não encontrasse o seu limite no sofrimento inocente, incompreensível, sem sentido!”

 

A curto, a médio, a longo prazo todos iremos estando mortos. A nossa vida e a realidade do mundo estão em processo e a História lê-se do fim para o princípio. Só no fim se poderá saber, mas, sem Deus, nunca poderíamos sequer saber quem somos nem o que pretendia a realidade e a História, porque não estaríamos lá e tudo teria sido para nada.  Lá, no final, só há, portanto, uma alternativa.

 

Claude Lévi-Strauss conclui assim o seu L’homme nu: “Ao homem incumbe viver e lutar, pensar e crer, sobretudo conservar a coragem, sem que nunca o abandone a certeza adversa de que outrora não estava presente e que não estará sempre presente sobre a Terra e que, com o seu desaparecimento inelutável da superfície de um planeta também ele votado à morte, os seus trabalhos, os seus sofrimentos, as suas alegrias, as suas esperanças e as suas obras se tornarão como se não tivessem existido, não havendo já nenhuma consciência para preservar ao menos a lembrança desses movimentos efémeros, excepto, através de alguns traços rapidamente apagados de um mundo de rosto impassível, a constatação anulada de que existiram, isto é, nada.”

 

A Bíblia, no seu último livro, Apocalipse, que quer  dizer revelação, conclui assim: “Vi então um novo céu e uma nova terra. E vi descer do céu, de junto de Deus, a cidade santa, a nova Jerusalém. E ouvi uma voz potente que vinha do trono: ‘Esta é a morada de Deus entre os homens. Ele habitará com eles; eles serão o seu povo e o próprio Deus estará com eles e será o seu Deus. Ele enxugará todas as lágrimas dos seus olhos; e não haverá mais morte, nem luto, nem pranto, nem dor. Porque as primeiras coisas passaram.”

 

É preciso relembrar esta alternativa final, concretamente neste tempo de inesperança em que, ao contrário de todas as aparências de euforia, se avança, citando um poeta galego, “com o cadáver da esperança às costas”.

 

Aqui chegados, alguém poderá objectar que a esperança no Além é alienante, porque retira força ao compromisso com a luta por um mundo mais humano no aquém. Mas, se se pensar mais fundo, é o contrário. A inesperança está a infectar a vida, porque se ama pouco. O amor autêntico quer eternidade e é o combate comprometido com um mundo mais justo, mais humano e mais feliz que reforça a esperança no Além. Como disse Immanuel  Kant de forma lapidar: “A praxis tem de ser tal que se não possa pensar que não existe um Além”.

 

Anselmo Borges

Padre e professor de Filosofia
Escreve de acordo com a antiga ortografia
Artigo publicado no DN | 3 NOV 2018