CRÓNICA DA CULTURA
Viver na vulgaridade é banalizar-se como utensílio da sua rotina
A tentativa de ocultação do vazio e da própria morte cria um espaço de sombra no qual desejar é ser incapaz de desejo.
Li hoje o texto que escreveu para o DN e transcrito para o nosso blogue, de Anselmo Borges e desde já muito agradeço a Sua reflexão.
Curiosamente vou levando até um deserto uma especial estrela que me fala da morte desde há muito, e, que aos poucos, pela literatura e pela vida, me conduz ao discorrer sobre a razão do fundo turvo, puro ponto de negatividade, no qual, nos dias de hoje, o medo foge do medo, abraça a ignorância e uma hipotética arte de argumentação a respeito é equivalente a zero.
E não é de bom-tom como se afirma no texto que referi, falar da morte e do seu tabu, quando na nossa sociedade nada se sabe como se trata, o como se morre, e o tabu da morte impõe-se, já que esta também só bate à porta dos outros. Afinal o mundo que vale a pena é o do capital circulante dividido outrora por um tratado que demarcou os limites de um universo com desprezo pelos seres, separando-os, confiscando-os e desamando-se uns aos outros para que depois de torturados, após as confissões, possam perder o valor e serem eliminados. Aqui a morte?
Não! Aqui o seu rival.
Tudo se precipita como numa mise-en-âbime e surge uma parcela que simula o Todo quando a morte é um mistério, por óbvio, desconhecida dos vivos, e a fraude do desprezo por ela, inibe as condições da ideia como na caverna platónica. E lá vou com a minha especial estrela ao tal deserto no qual ainda me resta a pulsação do meu sentir pela dor dos outros que até hoje nenhuma des-razão venceu.
Contudo, aqui e além e muitas vezes sou espectadora dorida do irreversível e do insuperável quando a morte me alerta que me não sei despegar da minha consciência, e num cenário tão extremo volto a olhar para o tempo por viver e nele
«Um anão ressuscitado não é menos espantoso que um gigante, e assemelha-se mais a um gigante ressuscitado do que se lhe assemelha um gigante morto.»
Malraux
Enfim a morte de que falamos converge para uma disciplina de engenharia genética ou robótica para que lhe seja conferida a tarefa uniformizadora mais definitiva e assim a insensibilidade dos sentires realiza completamente o titanismo. E sim, a morte faz a triagem entre o que vale ou não a pena: a energia da minha estrela já mo fez saber.
«Para onde quer que nos voltemos, o nosso espírito não encontra senão o vazio, quando o espaço está repleto.»
Artaud
O abismo seduz quem se aproxima de uma partida definitiva que ainda pode ser impedida, e, se o faz, ou, se o consegue será sempre pelo poder da mercadoria ávida de enfrentar e derrubar a teia imensa do entendimento do amor pelos homens entre si; e, cada vez mais este abismo forma um novelo cego que aperta esfolando a fundo os braços da minha estrela: aquela, única, com a qual vou ao deserto desafiar a decifração da morte, e ela surpreende, se supera e exímia de tanta inocência me recorda
«(…) Na paz, os filhos enterram os pais; na guerra, os pais enterram os filhos.»
Heródoto
(fala Crespo)
E no confronto com a morte quando ela não é tabu, bem creio que se insinua um saber de liberdade no instante trágico e efémero dos homens, de saborearem o amor vivido sem o amparo da eternidade.
Afinal todos somos sem sandálias.
Todos somos a nossa impossibilidade ainda que viver na vulgaridade é banalizar-se como utensílio da rotina, esta é minha convicção.
Acresce que bem creio na clara impiedade de um mausoléu que tanto ajuda a petrificar uma vida quando qualquer coisa de dramático no peito aconteceu.
«Tu que no fundo dos tempos,
No Nada de uma noite,
na Não-noite, revi,
tu(…)»
Paul Celan
Teresa Bracinha Vieira