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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

CARTAS DE CAMILO MARIA DE SAROLEA

 

Minha Princesa de mim:

 

   Continuo entrevado, aquieto-me no estaleiro cá de casa. Sempre me vou aliviando a escutar, de olhos mansamente cerrados, várias interpretações das sonatas de Mozart para violino e piano. Recorro com alguma frequência a esta forma de comunhão: o compositor é o mesmo, as pautas têm as mesmas linhas com as mesmas frases musicais, mas... mas, todavia, cada intérprete tem o seu jeito de percutir o teclado do piano ou de passar o arco pelas cordas vibráteis do violino... Tal como escolhe as suas cadências, e tem momentos diferentemente inspiradores de tempos e alongamentos... O músico e, assim também, o poeta e o prosador, sentem as notas e as palavras, pensamsentem-nas até em imprevistos modos possíveis. No fundo de si talvez queiram que sons, imagens e ditos, sejam tão infinitamente generosos quanto a mesma dádiva que são... Por isso mesmo qualquer arte humana nasce, dá-se e comunga-se, só não morre porque é essencialmente feita e animada de reticências... Assim será também a liberdade, desde a primeira Criação. Como se o ato de criar fosse, de por si próprio, o seu princípio e a sua suspensão...(reticências). Para que a liberdade seja chamada a dar os seus passos e a colaborar na multiplicação dos possíveis...

 

   Shmuel Trigano - de quem já te falei - é professor na Universidade de Paris X (Nanterre) e diretor do Collège des Études Juives de l´Alliance Israélite Universelle, autor de farta obra, onde distingo o livro Le monothéisme est un humanisme (Odile Jacob). Em 2005, publicou no nº39 da revista PRADÈS, que reunia estudos sobre "A Bíblia e o homem", um artigo intitulado Deux visages dans le même Être, que reli esta manhã e de que traduzo os três primeiros parágrafos, pela sua atinência ao que acima te escrevi:

 

   Não podemos considerar a perspetiva bíblica decorrente da proposição segundo a qual o homem é «à semelhança de Deus» sem refletirmos na sua condição de ser criado, de «criatura», que ele experimenta logo ao dealbar dessa sua mesma condição, pelo facto de ter nascido.

 

   A ideia de criação, criação a partir de nada, é eminentemente difícil de compreender, quando nos preocupamos com as suas implicações e os seus pressupostos. Ela é a rocha angular do monoteísmo. A criação desempenha o papel de «uma cena primitiva», que ressoa no conceito que fazemos do humano.

 

   Chamando ao Criador - único papel no qual o homem, enquanto ser criado, reconheceria a Divindade - «o Ser», YHVH, (o Tetragrama foi forjado sobre o radical do verbo ser conjugado no futuro: «Ele será») a Tora consegue um feito de armas. Se Deus é o Ser, efetivamente, e se é único e universal, levantam-se algumas questões para as quais já não há resposta mitológica, mas apenas filosófica, pois que, desde a Grécia, a preocupação da filosofia é o ser, To On.

 

   Parece-me interessante seguirmos, Princesa de mim, esse percurso inquiridor do filósofo e teólogo judeu que Shmuel Trigano é: Como é que um ser novo e suplementar pode surgir onde já está um ser único? Como é que o ser, que já concebemos ego-centrado, pode arranjar lugar para outro, distinto dele e dele saído? [...] Como pode o segundo vir do primeiro no mesmo ser e, contudo, separado e distinto, ao ponto de ambos se apresentarem um ao outro com rosto específico a cada um? Eis a questão absoluta do humano. O ser seria, de certo modo, fraturado, mantendo-se todavia único na sua dinâmica. A criatura, segundo o Génese, seria assim radicalmente diferente do Criador, mas «à sua imagem», de modo a partilhar com ele, sob diferentes modalidades, uma comunidade de ser. [A esta luz, qualquer leitura de Espinosa se torna mais entendível em si e bem mais reveladora das raízes judaicas do pensamento do sefardita português excomungado da sinagoga de Amsterdão].

 

   Vou repetindo a escuta das sonatas de Mozart, inspiradoras destas meditações a que te chamei. Quiçá mergulhando na contínua surpresa daquelas frases musicais, eu vá paulatinamente contemplando a infinitude do ser que é também o de cada humano. E traz-me luminosa alegria essa perene descoberta de um caminho que nunca saberia desenhar. Já nem sei se o percorro no tempo fragmentado que é o nosso, ou no outro nosso, nem curto nem comprido, pois que nele se confunde o fim e o princípio... Talvez ser humano seja ser em relação e em expansão... Dou a palavra a Trigano:

 

   Ao criar o homem embrionário, o ser declina-se no futuro. De si diz ao homem «Eu serei», simplesmente porque o homem ainda não está no presente, presente a si mesmo. O Tetragrama, YHVH, é formado por um presente (Hoveh) e um prefixo de futuro (Y). O mesmo é dizer que o presente do sábado é fugaz e intermitente, um tempo no qual o homem ainda não pode dizer, como Descartes, «Eu sou»... O presente só pode ser anunciado, ater-se ao futuro, na medida em que esconder a presença infinita, essa que não pode desdobrar-se no presente embrionário em que se encontra a criação inacabada e em que o homem ainda não nasceu, ou apenas nasceu «prematuro». É neste sentido que o homem ultrapassa a sua finitude. O tselem divino, «a imagem de Deus», trabalha o seu ser e o seu tempo, prometendo-lhe uma presença para além do presente, maior do que ele, e que tornará possível o cara-a-cara que a aliança lhe trará.

 

   Pensossinto, Princesa, vivo muito a música que me envolve os dias como caminho simultaneamente novo e inacabado até essa presença que todos os dias em mim é já, por ainda estar ausente! Talvez a graça dê muitos nomes à esperança ou muitas notas musicais que soam como se, em busca do inefável, as fôssemos tacteando...Mas persiste o mistério da criação, e esse é o que um Mozart e todos os seus intérpretes, todos os dias, nos podem recordar. A árvore genética do fruto proibido será então metafórica: o nosso castigo não é ganhar o pão com o suor do rosto porque, sendo o ser humano criatura, ele logo quis ser igual ao Criador; o nosso exílio não nos separa da dinâmica do ser vivo, antes nos desafia ao uso da nossa liberdade para que muito mais alegria se construa. Nos livros da Nova Aliança - a que chamamos Novo Testamento - o cara-a-cara, a transparente visão da Presença, começa já e perdura: amai-vos uns aos outros, para que seja completa a vossa alegria... 

 

Camilo Maria


Camilo Martins de Oliveira