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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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AO CORRER DA PENA

 

Miguel Torga, pseudónimo literário do médico Adolfo Correia da Rocha, em homenagem a Miguel de Cervantes, Miguel de Molinos e a Miguel de Unamuno, bem como a um arbusto, de nome torga, que nasce entre as inóspitas pedras da terra onde nasceu, S. Martinho de Anta, em 1907, vindo a falecer em 1995, a 17 de janeiro, em Coimbra onde exerceru a sua profissão na especialidade de otorrinolaringologia.

 

Na sua extensa obra literária dividida entre poesia, teatro e o romance, destaca-se um pessoalíssimo Diário, em prosa e verso, com dezasseis volumes publicados e onde se encontra de tudo: crítica social, polémica, esboços de contos, reflexões de moralista e muito frequentemente textos da mais elevada poesia.

 

É notório, ao lermos a sua obra, que o seu fundamento impregna uma religiosidade ou melhor dizendo uma espiritualidade visto que não se vislumbra uma obrigação inadiável, sentindo-se por alguns momentos uma inspiração fora de qualquer confissão religiosa.

 

A escrita de Miguel Torga poderá dizer-se “se situa nela própria”, excluindo a participação de qualquer Ser Supremo. Todavia, nota-se na realidade, uma capacidade subjetiva para recerber as “impressões e capacidade do sentir”.

 

Na sua espiritualidade observa-se uma postura hierática. O problema fundamental na sua construção literária não é Deus mas o Homem na relação com o “Deus Supremo” onde simultaneamente se cruzam.

 

No seu poema Legado, o homem é um produto da busca escatológica: “O que eu espero, não vem./Mas ficas tu, leitor, encarregado/De receber o sonho./Abre-lhe os braços como se chegasse/O teu pai, do Brasil,/ A tua mãe, do céu,/ O teu melhor amigo, da cadeia./(...)Não lhe perguntes por que tardou tanto/ E não chegou a tempo de me ver./Uns têm a sina de sonhar a vida,/ Outros de a colher.”

 

A espiritualidade em Torga, divide-se entre S. Martinho de Anta (a terra que o criou) e a sua vida. Isto nota-se no poema Prece: (...) “Sou sete palmos de lama:/ Sete palmos de excremento/Da terra mãe que me chama.(...) Senhor, acaba comigo/ Antes do dia marcado.”

 

Nota-se neste, um grito de revolta, de angústia e a sua crença. Miguel Torga procura dentro de si próprio uma liberdade que se prende à terra que confere o poder de lhe conceder os momentos de inspiração. O autor não ignora que a terra se encontra plasmada na sua obra tem o valor maior de que quanto maior é a sua angústia, revolta e inspiração, será sempre maior a liberdade para a qual ele não encontra uma liberdade possível: “Livre não sou, que nem a própria vida/ Mo consente./ Mas a minha aguerrida/ Teimosia/ É quebrar dia a dia/ um grilhão da corrente./ Livre não sou, mas quero a liberdade./ Trago-a dentro de mim como um destino. (...)

 

M.T. sente em Deus um poder absoluto que limita a ação humana e, por isso, ele próprio busca, no mais fundo de si, a liberdade. Pode com algum rigor dizer-se que não acredita na existência  de Deus embora a sinta.

 

Pelo conjunto dos poemas retirados do seu Diário, alerta-nos para a presença de o homem ser um deus absoluto da própria terra, ser a causadora da angústia e teimosia ditando deus para o ser humano uma penitência para a eternidade. Trabalha de forma árdua tentando indireta mas subjetivamente substituir-se a Deus.

 

E que espiritualidade é esta que aproxima Deus dos homens e não os homens a Deus?

 

Carlos Rosa