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Blogue do Centro Nacional de Cultura

Um espaço de encontro e de diálogo, em defesa de uma cultura livre e pluridisciplinar. Estamos certos de que o Centro Nacional de Cultura continuará, como há sete décadas, a dizer que a cultura em Portugal vale a pena!

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UM ESCRITOR COMPLETO E ÚNICO QUE A HISTÓRIA DEVE REGISTAR: ANTÓNIO VIEIRA

 

Já tive oportunidade de escrever que António Vieira foi para mim um privilégio no partilhar Amizade, dedicação, obra, sorrisos e risos num mundo que antecipámos e dele falámos por hipóteses nebuladas de onde todas as partidas eram possíveis. A ele sempre o meu agradecimento. Que quem lê por ocasião da carpintaria, da marcenaria, do fabrico da literatura nunca o esqueça.

 

Hoje trago aqui E Ô S, um conto de um volume de contos que, a meu ver, é uma obra-prima breve e completa. Em 2002 a Editora Globo não descurou a hipótese de trazer à luz esta edição de essencial grandeza.

 

                                         Oh! Jeter le temps hors du temps!

                                                       Valéry, Tel Quel II (1943)

 

Quem fora e o que intentara?

 

Não sei se Títonos se propõe desconhecer a experiência do amor que idealizava por força da solidão que vivia, e assim desejava viver, arriscando mesmo, a totalidade de si nessa experiência de paixão, ou se se servia dela por intuir a solidão em que ficaria um dia, despojo estranho de um corpo áureo que habitara havia muito, e ainda assim nos provocaria ao expor-se do fundo das velhas órbitas, enrodilhado e rígido, não descuidando nunca a forma de um ponto de interrogação à nossa incredulidade.

 

Eôs era uma jovem e bela mulher ainda que bem mais velha do que Títanos, e que o rondava celebrando o tino que bem sabia nele incendiar. O olhar de ambos quando se cruzava era desejo magnético, insónia puxada por dois cavalos soberbos nomeados neste conto. Irromperam em Títanos todos os prodígios que do convite dela irradiavam diretos ao seu ser, e, medusado perante ela abandonou-se à tal viagem que tanto receava como desejava, qual sonho que o seu pensar excedia.

 

Quando ambos chegados ao palácio de Eôs, que, flutuava no mar alto, escutou Títanos uma cigarra que cantava em monótono coro com muitas outras, em rugidos secos como se por elas tivessem passado gerações. Eôs tendo reparado que Títanos se quedara com esta realidade, disse: “Todos as ouviram, mas poucos as olharam” e abriu-lhe a brancura do seu corpo deixando que todos os segredos lhe fossem tocados, e, Títanos descobre assim a experiência da duração.

 

Julgo que agora uma gravitação o agarrara. Julgo que ao ler e ao escrever a minha interpretação deste belíssimo conto, chegou aqui o meu momento de entender que afinal o arco-íris se pode fazer e desfazer, e digo-o afrontando a metáfora de John Keats.

 

Poderia escolher testemunhas do que acontecia entre ambos se as recolhesse entre terra, água, fogo e ar, todos sortilégio de um desejo que se adensava; e já Eôs à luz de um lampadário continha nas mãos a poção mágica que solicitara à indústria das armas, poder mesmo e único pertencente a Suze, a quem todos temiam pela falta de escrúpulos, pela maldade extrema de doar eternidade por morte e ainda assim Eôs por ele arrastava a sua sedução. Entendiam-se na raça e na linguagem da estirpe da primeira língua da humanidade. Julgamos.

 

Títonos começara a sentir-se arrastado por uma perdição que Eôs, de todo, não acompanhava. Deitou mão aos livros da biblioteca de Eôs e encontrava-os numa vitalidade de palavras perdidas. Amava ainda aquela mulher que lhe propusera a experiência da duração, mas o desejo, o ciúme, o desespero do desastre, o amor que declinava embaciado e sem remédio, abria-lhe horizontes tremendos de, nessa mulher, ser um estorvo, uma emoção de não-retorno para ela e para si.

 

Não sei se tudo o que li depois do que tento interpretar, representaria algum período de luto à tal seta que se despedira de Títanos, ou, se a decrepitude a que chegara num uivo quase impercetível, lhe dera a dimensão do tempo passado, e, esse tempo era tão só o vazio de um verbo ausente já da vida. A magia funesta da poção mágica não reparava o derrube total de uma juventude, antes a deixava envelhecer, carcomida a assistir ao novo escanção que sorvia o branco corpo de Eôs.

 

Então Títanos abrindo ligeiramente os lábios secos e obstinados da velhice, aceitou que Eôs com desprezo, lhe despejasse algumas gotas do liquido mágico, e, quando a metamorfose se operou, Títanos o amante da experiência da duração já caminhava, qual cigarra para junto das semelhantes e assim por entre elas se perdeu.

 

Se há aqui um ser humano que se converte em Jesus, desconheço. Se há neste conto uma inocência a compreender no desacordo do leitor: assim proponho. Se cada linha foi ponderada e limada: tenho a certeza. Se nas nossas mãos trazemos as cinzas dos esquecimentos, dos sonhos, dos dias das poções mágicas, da vigília ao homúnculo a que cada um será incrédulo: posso bem crer. E se não me engano, o tardio da descoberta de cada um, eis aqui.

 

Teresa Bracinha Vieira